30 junho 2008

Cristo Hoje


"Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem e segue-me."
Mat 19,21


Andou só por andar, como se fosse autômato;
num banco de jardim, permaneceu estático.

Pensar, já não pensava. O pensamento, errático,
voava, além de si, como de um ser sonâmbulo,
que traz atrás de si como visões oníricas.

Chorou gotas de dor tendo um sabor insípido;
co’a manga da camisa recolheu as lágrimas;
sentiu dentro de si um mal-estar famélico;
a cara transmudou-se num rostinho angélico
e foi pro barracão, pra tapear as vísceras.

Sonhou matar a fome, então, nuns seios túrgidos.
No catre remendado ele se achou um príncipe:
por manto de arminho ele vestiu a túnica,
que fora do seu pai, quando servira o exército,
morrera e lhe deixara como herança única.

Buzinas na avenida ressoaram lúgubres:
do sonho não voltou porque morrera eufórico;
no rosto inda se via um como riso cínico,
no gesto inda se via uma postura cívica.
Viveu só por viver, como se fosse autômato.

Sonhou sonhos de cor, tendo visões angélicas;
no catre remendado o pensamento errático
voava além si, pra tapear as vísceras.

Pensar já não pensava, pois morrera eufórico.
Morreu como viveu: permaneceu estático.

Num banco de jardim ele se achara um príncipe.
Passara pela vida como fosse sândalo:
aos golpes da miséria sucumbira impávido

Morreu só por morrer: como se fosse errático.

27 junho 2008

Vale a pena ler de novo (III)

Viagem

Gaúcho é bom na promessa,
mais convite mermo, nada!
Lá no Sur tem boi à beça
pra fazê uma churrascada.
O pobrema é o avião:
quem garante que ele avoa?
Eu vou mermo é polo chão,
levando minha patroa.
Saio daqui na segunda
chego lá na sexta-fêra.
A questão é minha bunda
que não agüenta cansera.
Isso é coisa que não ligo:
paulista tem resistênça,
se for pra encontrar um amigo
cometo essa imprudênça.

A. Cerviño - SP

(Migalhas 10.08.07)

24 junho 2008

Ó poeta enganador


“Tenho do amor profundo e do uso proveitoso dele
um conceito superficial e decorativo.”
(Do Livro do Desassossego de Bernardo Soares)

Esse poeta é impostor,
com que cinismo nos mente
a fazer versos de amor,
coisa que ele não sente.

Ó poeta enganador,
com teu semblante tão triste,
como podes falar de amor
se isso jamais sentiste?

Se máquina tens no peito
- comboio fora do trilho –
teu caso não tem mais jeito,
por mais que esbanjes teu brilho.

Ó guardador de cordeiro,
ó meu prezado Fernando,
disse o vate brasileiro
que amar se aprende é amando.

23 junho 2008

Hvordan har du det?


(Terceira parte)

Como pude verificar mais tarde, o sanduíche é uma instituição nacional. No ônibus, no bonde, no metrô, no barco, na rua, na ante-sala dos cinemas, no páteo da universidade, nos jardins é comum eles abrirem sua skulder veske (uma bolsa que carregam nas costas, outra instituição nacional, que os transforma numa espécie de marsupiais, e que, além do lado prático, talvez explique a inexistência de senhoras nem senhores corcundas, já que a espinha, na infância e na juventude, vai-se cristalizando em linha reta) e dali retirarem as coisas mais inimagináveis, em especial um embrulho contendo o matpakke, um sanduíche que pode ter os mais variados recheios, em especial o delicioso camarão local cozido.
Os restaurantes, claro, fazem concessão ao turista e lhes exibem as refeições completas a qualquer hora do dia. Em especial as universais pizzas, que os jovens compram por fatia e saem comendo pela rua, sem a menor preocupação.
Nos restaurantes quase não se come carne vermelha, cujos preços são proibitivos. Além da carne de alce, há carne bovina, importada adivinha de que país? O café vem da Colômbia, a banana vem da África mas a carne bovina vem do Brasil. Em compensação, há mil tipos de pão, nenhum deles o pão fresco, que tanto me empanturra o estômago e foi proibido por meu médico. Ponto para eles.
E há os doces. E os queijos, que, certamente, serão minha perdição. Adeus regime!
Finda a refeição, servem-me um café. Em lugar do corto, como se bebe na Itália, eles o tomam em uma caneca que mais seria apropriada a uma chocolatada quente. E a economia de pó é visível até na cor da bebida, cujo sabor lembra, remotamente, um chá de rubiácea.
No parque, lá estavam algumas vovozinhas saboreando seu matpakke. O que, mais que depressa, fiz registrar ad perpetuam rei memoriam, tanto quanto as mais de duzentas esculturas do meu colega Vigeland.
Paga a conta, circulamos pelo belo parque, onde o famoso foetus não poderia deixar de ser registrado. Não conheço outro artista que tivesse tido a idéia de registrar esse momento de nossa vida. Depois de uma boa caminhada, seguimos para o hotel, onde as pessoas sempre me recebem com um sorriso que me faz sentir um marajá. Estão todos certos de minha generosidade na hora da gorjeta, por certo. Ele mais uma vez me corrige: Essa cordialidade você vai encontrar em todo lugar aqui, mesmo por parte de pessoas desconhecidas. Mais tarde conferi que, nos ônibus, o motorista não tem a menor dúvida em abrir um mapa para indicar a um passageiro onde fica o lugar procurado, por onde não passa aquele veículo, que o passageiro havia tomado por engano.
A belíssima atendente do hotel me pergunta se quero aproveitar o sol da tarde para um banho na piscina. Aquecida e coberta?, indago ingenuamente. A moça positivamente jamais ouvira tal pergunta. E meu guia me informa que, com tal temperatura (eu estava vestindo casaco) é comum os noruegueses nadarem no mar. Aquele sol de fim de verão é coisa rara por aqui e é preciso aproveitá-lo. Rejeito delicadamente o convite, despeço-me de meu guia e sigo para o quarto, para um merecido repouso, que os dias próximos serão de muito trabalho, pois tenho de estudar a programação do congresso.
Antes de fechar a porta, porém, acho adequado fazer-lhe uns esclarecimentos. Não pretendo ser um desses turistas deslumbrados, como há muitos. Os melhores restaurantes, os hotéis mais confortáveis, os recantos mais visitáveis. Tudo isso também me atrai, é claro. Gosto de conhecer locais bonitos, de comer calmamente e, se possível em boa companhia, uma boa refeição, tomando uma boa bebida, e também prefiro hospedar-me num hotel de qualidade, em lugar de ficar numa espelunca. Ser turista não quer dizer ser perdulário, mas também não pode significar viver miseravelmente, assim penso eu. A sempre oportuna virtus in medio cai bem nesse momento. Got it?
Entretanto, minhas observações sobre a Noruega não serão, certamente, as de um simples turista. Espero que sejam mais amplas, com um toque pessoal que eu não poderei evitar. Talvez até vire um livro. Ou vários, diz ele. Veremos.
À medida que for me aclimatando no país, começarei a fazer alguns amigos noruegueses, a quem, certamente farei observações que lhes causarão espanto. Sobre o narizinho das moças, por exemplo. Já viram nariz mais bonito do que o das norueguesas? indagarei. Não, eles nunca repararam nisso. Convivendo com elas no dia-a-dia, eles certamente não percebem a graça daquele nariz arrebitado, porque, ilhados em seu país, não têm parâmetro para comparar. Sugerir-lhes-ei, então, que visitem o museu Kon Tiki e comparem o nariz delas com aquele das estátuas de pedra que lá estão, trazidas da Ilha de Páscoa pelo extraordinário navegador Thor Heyerdahl. E se darão conta da beleza das moças nativas. Aliás, Kon Tiki era o nome de uma balsa construída como uma cópia de um barco pré-histórico. Feita com nove troncos de madeira leve e uma tripulação de apenas seis pessoas, partiu em 28 de abril de 1947 de Callao, no Peru, chegando à Polinésia depois de 100 dias. Tudo está devidamente documentado e exibido naquele museu.
E assim ficou a idéia de que um estrangeiro poderia registrar sua opinião sobre pessoas, coisas e costumes locais, enquanto aguardo o tal congresso de escritores.
Não me move o propósito de fazer um simples registro, digo-lhe desde já. Como dizia o Fernando Pessoa, por um de seus heterônomos, o poeta (e todo artista) é um fingidor, que finge tão completamente que até finge que é amor o amor que deveras sente. Ou seja, o leitor, o apreciador de qualquer obra de arte, não saberá jamais onde está a reprodução da realidade e onde está a contribuição pessoal do artista.
Atrevo-me a dizer que todo artista é um inconformado com a obra do Criador. O que Deus fez foi muito pouco. É preciso acrescentar algo a ela. Pendurar um quadro numa parede de uma casa ou plantar uma escultura numa praça pública não é isso? Com o escritor acontece o mesmo. Até onde o historiador é alguém neutro nas descrições que faz? Um ponto de vista é sempre uma visão a partir de um ponto. E esse ponto é o olhar de quem vê. Ao escrever, utilizo-me da realidade, acrescentando-lhe, porém, algo que me parece cabível. Ou crio eu mesmo essa realidade, que, pelo fato de existir apenas na imaginação do autor, não deixa de ser realidade.
Ou você acreditou que alguém iria me convidar para um congresso de escritores?
( Fim )

20 junho 2008

Ciranda


Eu vi
o viado
na rodovia
Eu vi o via
do na rodovia eu
vi o viado na ro
dovia eu vi
o viado na rodovia
do trabalhador eu
vi o viado na ro
dovia do trabalhador
viado trabalhador
trabalha
a dor
viado trabalha a dor
Eu vi

18 junho 2008

Trova (IV)

Não me queres, não me olhas,
por que sou tão desprezado?
Meu travesseiro tu molhas
pois não estás ao meu lado.

16 junho 2008

Gralhas


“Love not! Love not!
Ye hopeless sons of clay;
hope's gayest wreaths are made of earthly flowers,
things that are made to fade and fall away,
here they have blossomed for a few short hours.” (*)
Caroline Elizabeth Sheridan Norton


A escola ficava na Bigdoy Allé, rodeada das residências dos embaixadores estrangeiros, que talvez preferissem a calma de Bergen e seus fjords à agitação de Oslo e a invasão dos estrangeiros que tanto descaracterizavam o aspecto da capital. As crianças passavam todos os dias junto ao muro da casa grande, onde tremulava a bandeira colorida, que despertava a atenção daquele bando de gralhas, grossitando todas ao mesmo tempo. Stars and stripes forever, como se dizia além do oceano, lá onde Leif Ericson estivera muito antes de ali chegar Cristóbal Colón.
Na classe não lhes haviam advertido que além daquele muro era território estrangeiro, pois não lhes ensinavam ainda essas coisas de direito internacional e outras bobagens que os adultos inventam para criar barreiras entre si. Sabiam apenas que as árvores em seu país não tinham dono, pois o allemannsretter (1) assegura a todos poder entrar no terreno alheio e colher o que a natureza ali plantasse. Res nullius, res omnium, diriam elas, se soubessem aquela língua estranha que jamais haviam ouvido alguém falar por ali. E da qual ninguém necessitava para ser feliz.


Naquele dia, na classe, a colega morena exibira ao menino loiro um sorriso diferente daquele que costumava entregar aos outros colegas, sempre gentil e tímida. Era preciso retribuir-lhe a especial atenção. Mas como?


Ali estava agora a oportunidade de mostrar sua valentia, andando sobre o muro alto da casa grande, à maneira de um nefelibata, palavra que ele jamais ouvira na vida. E jamais ouviria.


Sob os olhos espantados das demais gralhas, o menino atravessou a rua, veio correndo e conseguiu, com salto felino, alcançar o cimo do muro pretendido. Com algum esforço pôs-se de pé lá em cima, abriu os braços em cruz e digeriu gostosamente o aplauso dos colegas. E, mais do que aplauso, o sorriso especial da menina morena.


E o sorriso foi o estimulante que o fez caminhar, lentamente, o estreito caminho que escolhera para mostrar à menina que era, de todos aqueles machos, a gralha que a natureza havia reservado para ela. Que ainda não havia visto toda sua valentia, pois tinha ainda de alcançar o cetro comprobatório de seu triunfo. Saltar do muro para dentro do terreno, colher frutas silvestres e, supino esfoço!, com o troféu na mão, galgar de novo o muro, trazendo à rainha o butim de sua pilhagem, viking romântico.


A vida, porém, é feita de surpresas, aprendeu ele, ao perder o equilíbrio e cair do lado de lá do muro, despertando um oh! dos colegas e um ar de preocupação no rosto da menina morena.
Do outro lado do muro, o receio dos adultos diante de questiúnculas que vinham ocorrendo além, muito além daquelas terras geladas e que poderiam vir a molestá-los algum próximo dia, fê-los cercarem-se de cuidados desdobrados. E aquilo que se mostrava bosque era, na verdade, um campo minado, preparado para o pior.


O fato é que as gralhas não souberam explicar aos policiais chamados, falando todas ao mesmo tempo, se o grito veio antes ou depois da explosão. O menino loiro, única pessoa autorizada pelas circunstâncias a esclarecê-lo, jamais poderá fazê-lo. E isso era o que importava.


E a menina morena ficou sem as frutas silvestres, substituídas por uma dor profunda que lhe agulha o peito sempre que vê, na classe, aquela cadeira vazia.
_________________________

(*) Em tradução livre:
“Jamais ame alguém! Jamais ame alguém!
Ó inúteis seres de barro,
as alegres grinaldas da esperança são feitas de flores efêmeras,
coisas destinadas a esmaecer e morrer
e que florescem por apenas insignificantes horas.”
(1) Na Noruega, toda pessoa pode colher frutos silvestres em qualquer terreno, desde que seja para consumo imediato.

12 junho 2008

Trova (III)

Uma rosa orvalhada

caiu da sua janela.

Mas que orvalho que nada;

deve ser lágrima dela.

Filhos e Netos


Filhos, melhor nós termos.
Nascem-nos num repente,
somente pra nos deixarem velhos.
Que importa?
E crescem, parecendo gente,
acho que somente
para preocupar-nos.
Aonde vai?
Com quem?
Não demore!
Leve a chave.
Feche a porta.

Inda ontem ela mal falava,
engatinhava pela casa toda,
foi-se levantando,
foi-se embonecando,
criando corpo e jeito.
Até peito!
Um caso sério.

E vem um sujeito,
sem qualquer demora,
nos leva ela embora.
Com que direito?
E ela engravida
e dá-nos netos
pra toda a vida.
Como fizeram?
Quem lhe ensinou?
Mistério!

Netos, melhor não tê-los!
Como são chatos eles,
reles choramingas,
que reivindicam tudo,
ou permanecem mudos;
não nos desejam perto,
querendo, por certo,
longe a nossa filha
do paternal abraço.
Fracasso!
São só aborrecimentos,
imaturos, ciumentos.
Quer levá-los? Maravilha!

Bisnetos? Eu ouvi "bisnetos"?

09 junho 2008

Sínteses (III)

É capital
termos força interior.

Voyeurismo inocente


Na rua, me chego à janela
e a bela, que ilumina a sala,
não fala. Ela lê somente.
Pressente que eu estou tão perto?
Decerto ela me ignora,
embora isso eu jamais saiba
nem caiba a mim descobri-lo.

Aquilo então me inspira versos
diversos, falando da vida,
da lida, mas também de amores
e dores, que deles decorrem.
Não morrem os apaixonados.
Coitados, mas que vida insana!

Juliana, que parece ausente,
somente está tramando versos
dispersos, compondo poesia,
que um dia ela trará a lume.
Resume tudo num hai kai
e sai agora de seu canto.

Espanto-me junto à janela.
E se ela agora me descobre?
Pobre de mim aqui sem eira,
e o Meira, seu ciumento pai,
já vai correr-me da cidade.
Quem há de vir então salvar-me?

Sou verme, mas eu sou poeta.
Por preta que seja esta sina,
menina, releve o pecado.
Cansado, agora eu vejo a lua.

Na rua, fujo da janela:
Juliana se debruça nela.

05 junho 2008

Hai kai (II)



O galo

xinga o sol

por acordá-lo.

Hvordan har du det? (segunda parte)


Estás vendo esse simpático senhor aí ao lado, procurando alguma coisa na algibeira? Pois ele também está na história.
Algo que chama a atenção do visitante é a falta de outdoors na cidade de Oslo, coisa que o prefeito de São Paulo acabou imitando. No primeiro momento, parece que você chegou a um cenário cinematográfico, com aquelas fachadas muito limpas, quase todas da mesma altura, e que serão retiradas assim que acabarem de fazer o filme. E nada de propaganda nas ruas nem na frente das casas. Nada de grafites pelas paredes brancas, emporcalhando-as, como se vê em tantas capitais. Nada de papéis colados em postes, especialmente com a cara de algum candidato a cargo público, como vi certa vez no Panamá, onde cada candidato era representado por um símbolo, coisa mais prática do que erradicar o analfabetismo. Algo digno de um país civilizado.
Outro espanto resulta do fato de todos os veículos trafegarem com as lanternas acesas, o que fazem numa velocidade mais adequada a uma parada militar. E olhe que as avenidas são largas! Com o tempo se descobre que, como o dia pode mudar de aspecto a qualquer momento, é melhor, por segurança, deixar a lanterna acesa, mesmo ao meio-dia de um dos raros dias de verão, criando-se o hábito desde já. Prático, não?
A pessoa indicada para me receber no aeroporto me diz um ‘Hvordan har du det?’. Eu, previdentemente, havia trazido meu dicionário de bolso e vou traduzindo palavra por palavra: ‘como’ ‘tem’ ‘você’ ‘isto’? Digo-lhe que minha bagagem foi adquirida com meu dinheiro. E quase lhe pergunto se ele é funcionário da alfândega e coisa e tal. Ele ri muito e repete a pergunta. Eu volto a conferir no dicionário e continuo a dizer-lhe que tudo o que eu tenho é fruto do meu trabalho pessoal e que posso mostrar-lhe minha declaração de renda, se ele me demonstrar que está autorizado a examiná-la.
E ele continua a rir desatadamente. Passo a provocá-lo: ¿Usted habla español? Ele balança a cabeça negativamente. E continua a rir. Parla italiano? Parlez vous français? Sprach sie deutsch? Cá entre nós, eu também não falo alemão, mas é sempre bom impressionar o adversário. E ele, rindo cada vez mais, balança a cabeça negativamente. Do you speak english? E ele: Sure! I do! E por que não me disse isso desde logo?, indago furioso, em inglês, é claro. ‘Simplesmente porque não me perguntaste, homem’. E ri sem parar o bom homem.
Agora que nos apresentamos, pergunto-lhe que curiosidade é aquela a respeito de minhas posses. Ele então me explica que, ao contrário do inglês, que pergunta como está você, o norueguês quer saber se está tudo bem com você. Como vão as coisas. Hvordan går det? Ou como vai isso. Num sentido mais amplo, além de mera preocupação material, fica: Hvordan har du det? Em suma: How are you? I´m fine, takk, bare bra, digo-lhe para mostrar que nem tudo ali me surpreende. Ele mostra satisfação pelo meu interesse por sua língua. Que lhe asseguro ser veldig vanskelig. Muito difícil, digo eu. As a russisk I understand this.
Não preciso de dicionário para entender que o homem deve ter vindo a pé da Sibéria até aqui.
Aliás, a presença de estrangeiros em certos tipos de atividades por ali faz lembrar o que ocorria nos anos 70 em relação a portugueses e espanhóis, que se bandevam para além da fronteira. Certa ocasião, em um desses países de língua arrevesada, eu e minha mulher entramos numa loja em Praga, para comprarmos um par de botas. E como se diz bota em checo? Discutíamos para ver se descobríamos isso quando o senhor que instalava uma lâmpada no teto da loja diz alguma coisa à atendente que vai lá dentro e volta com dois pares de botas nas mãos. Mistério! Seria adivinhação? Coisa do além, de que tanto gosta minha mulher? A coisa era muito mais prosaica: o homem no alto da escada era espanhol e acompanhou toda nossa discussão! E transmitiu, gentilmente, à vendedora o nosso recado. Identificou-se, falou de sua terra, de sua família e nós lhe agradecemos a gentileza da salvadora intervenção.
Mas, que fazia um espanhol em terras tão distantes? ‘Mi padre tenia unas tantas ideas muy particulares sobre el generalísimo’ foi sua compreensível e gentil explicação.
Hoje, com a unificação da Europa, o lugar dos portugueses e espanhóis passou a ser ocupado por africanos e asiáticos. E a cor parda deles acaba produzindo um apartheid na Noruega, mesmo porque, além da língua e da cor da pele, há o abismo representado pela cultura e, mais especificamente, pela religião. Roupas espalhafatosamente coloridas, corpo à mostra e outros atrevimentos próprios da juventude? Nem pensar. São mulheres e homens com roupas escuras, que por vezes cobrem até a cabeça das senhoras mais velhas. E algumas não tão idosas adotam o mesmo figurino, com o chador a cobrir-lhes a cabeça. Assim é a vida!
Voltando ao meu amigo russo, como estou com fome, ele me leva a um shopping da cidade, onde também a recepção não é das mais calorosas. Em um enorme pôster, um cidadão, com ar debochado de ébrio, me faz uma saudação estranha, que eu retribuí registrando em fotografia, como se viu lá em cima.
Não sou homem dos mais pudicos, muito ao contrário. Mas, convenhamos, saudarem-me assim, com tanta falta de finesse, não me parece algo muito aceitável.
Mostro a cena a ele, que volta a deliciar-se com minha reação, rindo a mais não poder. E me leva para ver outro local, para conhecer a esposa do tal homem, segundo me diz.

( continua )

02 junho 2008

Num templo chinês


Um chinês,
de passos lentos,
cuidadosos,
demorados,
caminha em calma
no corredor
do enorme templo,
como se pisasse
em borboletas
.

Vale a Pena Ler de Novo (II)

O STF e os Embriões

(Ad magnam gloriam Dei
atque perpetuam rei memoriam)



Cerso de Melo mostrô
que nem a Ingreja se entende.
Digo isso com pavô
pois tem gente que se ofende.

Aristóte diz que a arma
demora pra aparecê.
Na muié, que é mais carma,
são dois meses, podes crê.

Nus hómi nun é ansim não,
óia aqui como se conta:
um mêis da concepissão
e a nossa arma tá pronta.

Uns Papa fala que sim,
já otros dizem que não.
Mas se eles age ansim
que dizê de nóis, irmão?

Não querendo sê prolicho,
o Cerso é que tem razão:
será justo pô no lixo
os imprestave embrião?

O Supremo decidiu
uma causa munto dura
e tanta gente sorriu
vendo em breve a sua cura.

Antes dele ir embora
ele dixe pros presente:
este causo é a aurora
pra milhares de doente!

Chegado esse momento,
o clima ficô confuso,
quis mudar o jurgamento
o Ontonho Cézar Peluso.

Sabe o qui ele queria?
- é coisa de que discordo –
que a tese da minoria
fosse a minuta do acórdo!

Coisa feia, eu lhe diria,
onde arguém já tentô isto?
Ganhá na secretaria?
Isso é coisa de ministro?

O Cerso antão fica bravo,
bota o colega na linha:
“samos nóis da lei escravo,
não me venhas com gracinha.

Nosso povo isso merece:
que o juiz seja prudente.”

E o resurtado foi esse:
a ação é improcedente.

A. Cerviño - SP