29 maio 2008

Sínteses (II)

Saudade:
fantasma perfumado
de uma rosa
que já secou

D’après Juliana


“O canto
da sala
cujo pó guarnece
vê o sol que desce
da vidraça entreaberta
desabitado ouve
a passarada o jornaleiro
o cachorro a piazada.”

(Juliana Meira)


O encanto da sala,
onde eu canto uns versos,
cujo som me aquece
e desce até a calçada.
Cala o cão
e, sorrateira,
a passarada ouve.
Houve um silêncio?
A vida passa.

26 maio 2008

Vale a pena ler de novo (I)

STF e Células Tronco

O Menezes, que é Dereito,
moço munto do escorreito,
vai botá orde na casa.
Já ligô pro Vaticano
- que que ocêis está pensano? -
pra sabê como se embasa.
“Teje carmo, num te avexe,
que comigo ninguém mexe
esse tema não me escapa.”

Foi o que dixe o pontife
nesse momento difice:
“Eu ainda sô o Papa.
Quem mexê com embrião
não irá pro céu mais não,
vade retro satanais."

Só pra enquadrá o Ayres Brito
arterô, gesto isquisito,
os sete pecados mortais.

A. Cerviño - SP

(Migalhas 12.03.08)

Hvordan har du det? (primeira parte)


Quando fui convidado, relutei entre aceitar ou não aceitar o honroso convite. Na realidade, meu conhecimento a respeito da Escandinávia não era tão pequeno, mas dispor-me a enfrentar o desconhecido, qual um viking contemporâneo, exigiria algum esforço. Ponderei os prós e os contras e lá fui para a Noruega participar de um congresso de escritores.
A primeira providência, claro, foi ter alguma noção da língua ali falada, que eu sabia ser uma mistura de inglês e alemão. Mas, diga francamente, quem fala norueguês fora da Noruega? Se nem os noruegueses falam! O jeito foi comprar, pela internet, o Practical Norwegian Grammar, do Rolf Strandskogen; o Enkel Norsk Grammatikk, da Liv Astrid Greftegreff, e um Norwegian Dictionary, e seja o que Deus quiser. Ou Odin. Se até as crianças norueguesas e aquelas brasileiras que eles adotam acabam falando a língua deles, por que eu não conseguiria?
Em primeiro lugar, aprendi que a pronúncia é sempre mais ou menos como a inglesa. O 'o', for example, resembles the 'oo' in 'fool', but with for more rounded lips and further back in the mouth, diz o livro de gramática. Easy, isn´t?
A coisa era meio desanimadora. The sound of 'ø', in 'søt', is similar to the 'i' in 'sir', but more rounded. In 'søtt', it is like the long 'ø', but shorter and more open. The 'å' in 'båt' is similar to the 'a' in 'call', but more rounded. By the way, in 'fått' it is like the long 'å', but shorter and more relaxed. Nor the regular vocal 'u' is out of a special rule: is similar to the 'ue' in 'true', but has a closer and more frontal pronunciation. The 'y', in 'syk', is like the long 'i', pronounced with rounded lips, continua a brochante gramática aberta diante de meus olhos pasmos.
Have you learned? So know that: in 'sykle', it is more relaxed. How to know, reading, what is a relaxed pronounce? Como se diz relaxe e goze em inglês? Ou em norueguês?
Aquilo que em toda parte é escrito com 'c', ali é escrito com 's'. E tome sentrum, sigar, sivilisasjon e que tais.
E os tais 'falsos cognatos', aquelas palavras cujo significado nós pensamos que sabemos? Por exemplo, você que entende inglês entra numa butikk, compra um suco de appelsin da jente que o atende. Entendeu? Acontece que butikk é loja, jente é moça e appelsin não é suco de maçã, mas laranja!
E há muito mais: side é página, fire é quatro e tide é tempo. Saber inglês, portanto, ajuda pouco e atrapalha muito.
Curioso mesmo é o que acontece com certas palavras, que nos parecem complicadas quando tentamos ler, até o momento em que são pronunciadas por eles. Por exemplo, para saber o que quer dizer miljø, sjåfør e adjø é só pronunciar como se fossem palavras francesas: milieu, chauffeur e adieu. Ou seja, meio-ambiente, motorista e adeus. Sacou?
Isso para não falar nos três gêneros. In general, the form of the noun gives no clue as to its gender, neither are there logical rules. In most cases the gender must be learned for each separate noun. Algo como aprender cada ideograma de uma língua oriental, em suma.
O primeiro impacto ao descer do avião em Oslo é a recepção que se tem no aeroporto local. Como se pode ver da ilustração acima, eles não primam pela delicadeza quando querem dizer que são pessoas de paz. Chamar isso de 'recepção calorosa' é por em dúvida minhas preferências sexuais. Nada contra, sou daquele tipo que chamam de 'mente aberta', mas daí a generalizar a coisa vai um pulo.
Chamar essa escultura (cujo nome oficial e o do autor não consegui obter, por mais que eu tentasse junto ao serviço turístico que eles mantêm em Oslo) de objeto fálico é negar toda teoria freudiana. Se o falo (e ninguém melhor do que um viking com sua espada sempre em riste para demonstrá-lo) se relaciona com a procriação, ou pelo menos, o prazer sexual, o descanso do guerreiro, como poderia chamar-se essa escultura, diz mais com uma deposição de armas do que com sua utilização. Não me surpreenderia se algum brasileiro pusesse uma gigantesca caixa de Viagra ali ao lado dela.
Sejam bem-vindos! é o que ela quer dizer a todos aqueles que ali chegam. Ou, sob o dantesco ângulo do poeta italiano, lasciate ogni speranza, voi ch'entrate!
Não sei o que as pessoas do sexo feminino acham disso. Quanto a mim me pareceu muito adequado a quem vem em missão de paz como eu. Quanto sacrifício nos impõe a vida de escritor!

( continua )

20 maio 2008

Cidadania e Fé


“Se, como é infelizmente o caso de nossa época, a moral evangélica parece evaporada, a condição de seu renascimento não residiria nesta redescoberta de suas raízes naturais? Será que não quisemos, até agora, fazer cristãos onde não se tinha ainda conseguido fazer homens? O resultado não é dos mais brilhantes: não temos mais nem homens nem cristãos”.
Paul Eugène Charbonneau

Temos todos a convicção de que a escolha dos governantes seja algo de grande importância. Os nomes dos nossos partidos não dizem muito e sua ideologia diz menos ainda. E a biografia dos candidatos são, de modo geral, de desanimar. Como proceder?

Houve tempo em que os governantes tinham contato direto com o Criador, que lhes transmitia as regras a serem impostas aos súditos. Hamurabi e Moisés foram alguns que se valeram desse contato direto. Coisa muito mais fácil do que isso de democracia, que o Churchil disse ser a pior forma de governo, mas ainda não haviam encontrado outra melhor. Democracy is the worst form of government, except for all those other forms that have been tried from time to time. O rei Henrique VIII, porém, colocou em dúvida a certeza de que os soberanos tivessem sangue azul, ao mandar decapitar em público suas incômodas esposas. E olhe o sangue vermelho escorrendo quando a cabeça da executada foi separada do corpo.Muitos filósofos têm chamado a atenção para um fato preocupante, que não surgiu ontem. Enquanto na primeira metade do século passado os intelectuais discutiam a respeito da natureza de Deus, neste século a questão não está em acreditar ou em não acreditar. O que predomina é uma indiferença, é o “tanto faz quanto tanto fez”. Para Hans Küng isso tem muito a ver com a crise de valores que permeia o mundo todo, pois “não existe ação moral, humana, incondicionalmente obrigatória, nem uma ética também incondicionalmente obrigatória, sem religião”.

O argumento é discutível, pois pode levar ao entendimento inverso: basta haver religião para que esses tais valores sejam observados. Basta verificar que um Estado comprometido com a religião, como Israel, teve no Líbano uma conduta que muitos equiparam à “limpeza étnica” pretendida pelo nazismo. Aliás, o próprio padre Küng arrola as atrocidades cometidas em nome do cristianismo ao longo da História, muitas delas voltadas contra os judeus. Quando Albert Einstein declarou que não acreditava em um Deus pessoal, pois seu Deus era de outra espécie, a cosmic God, caiu o céu sobre sua cabeça, pois já morava nos Estados Unidos, onde até mesmo os ateus confessos são obrigados a jurar sobre a Bíblia, quando vão depor em Juízo, ou a ler nas notas de dólares que in God we trust. Coisas da democracia capitalista, certamente. “Todos têm o direito de acreditar naquilo em que eu acredito”, como deve ter dito o W. Bush aos muçulmanos.

Um dos que lhe caiu de santo porrete na cabeça do Einstein foi o conceituado Cardeal Fulton Sheen, autor de livros como A Vida de Cristo, que fez pilhéria: “acho que o Deus dele tem um s a mais”. Os cardeais norte-americanos, aliás, são mestres em comicidade, como se viu quando acobertaram um número inimaginável de colegas pedófilos, pois puni-los acabaria levando a Igreja à bancarrota, tais as indenizações que as famílias exigiriam em Juízo. Não é para rir?

Eu poderia citar o padre jesuíta e teólogo Teilhard de Chardin e sua irrespondível afirmação de que a religião deve acompanhar as descobertas científicas e rever os conceitos que ela havia formulado quando tais descobertas ainda não haviam sido feitas. Só uma criança acreditaria que Deus fazia bonecos de barro, disse ele, curto e grosso. Prefiro, porém, ficar com o outro padre, também teólogo, e ainda vivo. Hans Küng passou por maus bocados quando, a exemplo do nosso Leonardo Boff, resolveu dizer que seus superiores hierárquicos demonstram, por sua conduta, acreditar pouco em Jesus Cristo e sua mensagem de paz e tolerância. Não posso acreditar, diz ele, que Jesus, que advertiu os fariseus por causa da carga insuportável que estavam a lançar sobre os ombros das pessoas, declarasse hoje ser pecado mortal a utilização de todos os meios anticoncepcionais artificiais. Nem imaginar que Ele, que convidava para sua mesa justamente os que haviam falhado, proibisse para sempre o acesso à Sua mesa a todos os divorciados que voltassem a casar.

Quer mais? O padre Küng tampouco consegue supor que Jesus, que constantemente se fazia acompanhar de mulheres, que cuidavam de sua manutenção, e cujos apóstolos, com exceção de Paulo, eram todos casados e assim permaneceram durante seu ministério, proibisse hoje aos homens ordenados o casamento e proibisse a todas as mulheres a ordenação. O homem não tem papas na língua, se me permitem o trocadilho.

Na célebre pintura feita por Michelângelo Buonarrotti na Capela Sistina, por determinação de seu carrasco, o papa Júlio II, Deus veste um camisolão, tem barba e cabelos brancos e toca seu indicador no indicador do primeiro homem, feito de barro, como sabemos. Considerando que o papa era um tirano, que havia escravizado o artista até que este erigisse na praça São Pedro uma tumba faraônica que lembrasse para sempre o nome daquele Sumo Pontífice, torna-se claro que aquela figura antropomórfica contava com o apoio papal. Além de antropomórfica (isto é, Deus tem cabeça, tronco e membros, como se fosse humano), a figura de Deus ainda é, para muitos, antropopática, isto é, sente, pensa e age como se fosse humano.

Küng, homenageando nossa inteligência, nos adverte que, em realidade, é impossível falarmos de uma entidade tão superior, a não ser utilizando nossa linguagem humana. “Desse Deus e a esse Deus nós, certamente, só poderemos falar utilizando conceitos, imagens e idéias figuradas, códigos e símbolos.” É ele o Deus bíblico, “que pode ser percebido sob uma nova visão do mundo, segundo Copérnico, Galileu e Darwin”. Quem diria? Fico aqui a imaginar o que pensaria quem não conhece o jogo de tênis se visse, a certa alguma de uma partida, um dos jogadores segurar duas bolinhas amarelas e levantá-las, mostrando-as ao adversário. Que quer dizer isso? Que ele agora vai usar bolinhas? Mas eles vinham jogando com bolinhas até ali! Que vai usar agora bolinhas amarelas? Mas as bolinhas com que vinham jogando eram amarelas. Mistério! Subamos alguns degraus. Alberto Einstein ensinou-nos que E=Mc2. No mundo todo há certamente pessoas que sabem o que isso significa e a relevância disso para a ciência e para o mundo. Eu, no entanto, não tenho a menor idéia daquilo que está por trás dessa famosa fórmula. Você é capaz de me explicar o que se contém nela? Cartas para a redação.

Eu poderia subir alguns muitos degraus e tentar mostrar se acredito num Deus pessoal ou num Deus cósmico. Mas, e daí? “Tanto faz como tanto fez” dirá o leitor. “Não estou nem aí”, dirão outros. Note que essa frase é empregada por muitos também quando falamos em eleição de governantes. Pensar dói.A questão, como diz Küng, não está em discutir conceitos. Qualquer um de nós afirmaria o que ele afirmou em seu livro Por que ainda ser cristão hoje?, de que me vali para estas reflexões: “Não deixo absolutamente de reconhecer o fracasso histórico do cristianismo”. Nem por isso ele deixa de propor que continuemos a cristianizar a sociedade em que vivemos.

O desafio é: será possível salvar o nosso planeta sem fazermos da religião algo mais concreto, mais“terreno”, algo menos preocupado com conceitos e mais comprometido com ações tendentes a fazer imporem-se aqueles valores que nossa inteligência, limitada que seja, concorda serem atributos desse Criador de tudo? O também perseguido frei Leonardo Boff segue esse mesmo caminho, tanto que escreveu um livro chamado Ecologia - Grito da Terra, Grito dos Pobres. Será possível escolhermos governantes que pensem menos em si e mais no serviço que os aguarda, no respeito à dignidade humana, na luta contra todo tipo de opressão, num projeto de um Poder Judiciário minimamente eficiente, em programas que estimulem a solidariedade e a cidadania?

Eu creio que sim. Se meu testemunho vale alguma coisa, eu posso dizer: por incrível que possa parecer, isso tudo já foi pior do que é hoje. Não é de hoje que político furta, nem é de hoje que muito juiz merece algema e xadrez. E se alguma coisa melhorou, é porque pessoas não ficaram reclamando na escuridão porque a lâmpada se apagou. Elas preferiram acender um palito de fósforo.

15 maio 2008

Tristeza

Segue o rio e nele o barco,
segue o barco e nele a gente,
segue a gente e nela o sonho,

segue o sonho e nele eu rio.

13 maio 2008

O Tempo


“Todos querem viver para sempre. Mas têm horror à velhice.”

(Cícero)

Se você reparar bem, o tempo não existe. Qual o cientista que conseguiu defini-lo? Nenhum. Dizer que o tempo é uma relação entre o antes e o depois é apenas trabalhar a partir de duas palavras, cujo conceito foi estabelecido pelo ser humano. Que é o antes? Que é o depois? Antes de quê? Depois de quê? O agora é esse momento que acaba de passar. Ou seja, que não existe mais.

Ouço pessoas dizerem “farei tal coisa quando tiver tempo”. O tempo, portanto, para essas pessoas, é uma coisa que se tem ou não se tem, como uma frieira ou um automóvel. Onde se adquire? Como se conserva? Onde se guarda? É evidente que uma frase dessas não quer dizer coisa nenhuma. Ou quer dizer: eu não vou fazer agora. Esse “eu não vou fazer” deveria ser “eu não quero fazer” ou “eu não posso fazer”. Entretanto, como somos todos uns covardes, inventamos circunlóquios, palavra que nem sei bem o que significa, para não dizermos que temos medo de tentar. Ou que estamos convencidos de que não temos capacidade para fazer aquilo que ousamos imaginar que poderíamos fazer.

Disse-me o psiquiatra Paulo Gaudêncio que uma cliente foi procurá-lo para falar do complexo de inferioridade que a atormentava e não lhe permitia ousar em nada. Ela queria, em suma, que ele desse um jeito na acomodação dela. “E quem disse à senhora que isso é apenas um complexo?” Acho que ele perdeu a cliente. Azar o dela. Ele certamente lhe demonstraria o mau uso que ela estava fazendo do tempo, o que quer que fosse isso.

“Quando as crianças crescerem eu me separo de meu marido” ouve-se com freqüência. Não seria mais adequado dizer “eu não tenho coragem de assumir a minha vida”? O tempo de decidir é agora. É claro que há quase sempre variáveis que devem ser levadas em consideração. Uma mulher, cliente do mesmo Paulo, casada, começou, por nada, a fazer curso de inglês. Mas, com um casamento complicado, sem filhos, ela resolve estudar inglês? “É para espairecer o espírito”, dizia ela ao marido. Quando ela conseguiu dizer “I love you” e “goodbye, my dear” ela comprou uma passagem de avião, a prestação, só de ida, e se mandou para os Estados Unidos, onde construiu uma vida sem aquele chato do seu marido, que até hoje não entendeu nada. Evidentemente, quando ela se decidiu a fazer o curso de inglês não tinha consciência de que já havia decidido abandonar o marido e o país para recomeçar a vida longe. Assim são tomadas muitas de nossas decisões. Só tomamos consciência delas depois de muito tempo. Eis aí mais uma prova de que o tempo não existe.

Lembro-me de uma mulher de pedreiro que me procurou, nos tempos do Departamento Jurídico do XI de Agosto, dizendo o diabo do marido, aquele imprestável. Eu, embora ainda sem a experiência que o tempo, mesmo inexistindo, nos traz, disse-lhe mais ou menos isso: a senhora não é obrigada a morar com ele. “E se Deus o livre ele cair do andaime, para quem vai ficar a aposentadoria dele?” disse-me ela, pragmática a mais não poder. Quantas mulheres não diriam a mesma coisa se dissessem o que pensam de fato quando fingem estarem preocupadas com os filhos e o futuro. Que é o futuro?
Aliás, quem foi ou é juiz de família conhece bem o que se esconde por trás do interesse do pai ou da mãe em ter a guarda do filho, que será, quase sempre, cuidado pela empregada ou pela avó paterna ou materna, pois o detentor da guarda não tem tempo para a criança. “Quem efetivamente ama o filho pensa primeiro nele” eu disse a vários pais e mães que tentavam convencer-me de que estavam criando mil dificuldades para o ex-marido ou a ex-esposa em nome do bem-estar da criança e não por mera vingança, como é a regra. Não me lembro de ter visto um único caso em que o casal estava, de fato, empenhado em construir um futuro melhor para o filho. O fato é que, em nome desse momento que ainda não veio e nem sabemos se virá, deixa-se de preocupar com o momento presente. É isso bem próprio do cristianismo: sofra agora e resigne-se hoje porque no futuro haverá a compensação. Ou seja, você, velhinha e caquética, encontrará finalmente o homem de seus sonhos e será feliz para sempre. Num asilo.

Mas eu falava do tempo, e ele, que não existe, vai passando e logo a crônica chega ao fim. O amigo Cleanto me presenteia com a gravação de uma música belíssima, que fala das coisas simples. E lá pelas tantas, diz a letra que “El amor es simples y las cosas simples las devora el tiempo”.
A imagem do tempo como um devorador é bem própria do budismo. Repare na conhecida figura da deusa de quatro braços, esposa de Shiva. Nos pés de Kali há um ratinho, que significa o tempo, o que devora as coisas. É isso um convite à nossa reflexão, pois o cristianismo também nos adverte que seremos idiotas se nos preocuparmos com o futuro. Tanto orgulho, tanta ambição, tanta sacra auri fames. Entretanto, quem garante que amanhã você acordará?

Está na carta de Tiago, capítulo 4, versículo 14: “Vós dizeis que hoje ou amanhã iremos a tal cidade, lá ficaremos um ano, negociaremos e ganharemos dinheiro. No entanto, não sabeis o que sucederá amanhã Que é a vossa vida?” E Mateus, no versículo 34 do capítulo 6 diz o mesmo: “Não vos inquieteis pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo”. E acrescenta a famosa frase, popularizada por ninguém menos do que o Renan. Falo do senador brasileiro, não do autor da Vida de Jesus. Eis a frase renaniana: “Basta a cada dia suas atribulações.” Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã; porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo, completa o evangelista.

Tempus fugit nos dizia um belo relógio de pé situado na sala das becas do Tribunal de Alçada Criminal, uma sala curiosa cuja parede era coberta com armários individuais, cada um com o nome do respectivo juiz numa plaqueta. Quando era promovido, morria ou se aposentava alguém, a plaqueta do juiz que ocupava posição de antiguidade imediatamente inferior à dele, caminhava uma casa, passando a ocupar o local que era antes ocupado pela plaqueta do juiz agora ausente. E esse caminho da plaqueta tinha a direção da porta, junto à qual ficava o armário relativo ao juiz mais antigo na casa, a indicar que o próximo passo o levaria à rua. Ou à morte. Os dois pêndulos, de certa forma, diziam isso, naquele movimento de ir daqui para lá e vir de lá para cá. Várias vezes parei diante dele, que não sei se ainda estará lá, e indaguei dele o que ele queria dizer ao lembrar-nos disso. Ele, filosoficamente, se limitava a repetir tempus fugit, tempus fugit, tempus fugit.