29 novembro 2008

Vernissage

Vernissage, dizem os nossos dicionários, é aquela festa que indica a inauguração de uma exposição de obras de arte. Um autêntico galicismo, diriam nossas avós. Francesismo, se quiserem. Por extensão, creio que se poderia empregá-la para designar o dia em que se dá o lançamento de um livro. Por que não?

O dia em que se abre uma exposição de fotografias pode ser chamado de vernissage? Sim, me direis, culto que sois. E de uma exposição de esculturas? Idem, haveríeis de retrucar-me, digo-o eu em português bolorento. Pois saiba, se ainda não o sabe, que a palavra francesa decorre de um fato pitoresco: no dia da inauguração de uma exposição de pinturas a óleo, ainda se sente no ar o cheiro do verniz, que muitos artistas usam (ou usavam, vá lá) para conservar a tela. Daí nasceu a palavra vernissage, francesa, com certeza. Logo, como as fotografias, as gravuras e as esculturas não são, normalmente, envernizadas, não se poderia falar em vernissage quando a inauguração diz respeito a gravuras, fotografias e esculturas. Entretanto, se se usa, como de fato se usa, dessa palavra também para referir-se à inauguração de uma exposição dessas, por que não haveríamos de utilizá-la para designar a chamada noite de autógrafo? Eis minha proposta.


Pois o jornal internético Migalhas vem de informar a seus mais de 300.000 leitores que no dia 10 de Dezembro, a partir das 19 horas, na livraria FNAC, situada na Avenida Paulista, fundos com a Alameda Santos, haverá a vernissage relativa ao lançamento do livro Justiça & Caos, da autoria de um certo migalheiro, cujo nome não me ocorre no momento. Julgo ter sido uma temeridade essa informação.

Pensem comigo. Que dos mais de 300.000 destinatários do festejado jornal eletrônico, apenas metade dos leitores tenha tomado conhecimento daquele aviso. A outra metade é composta daqueles leitores que naquele dia tiveram um TPM que os impediu de ler o anúncio. Refiro-me ao terror de advogadas e advogados: um Texto Para Minutar, seja Apelação, Agravo ou um REsp. Ou tem hora marcada no dentista, ou seja lá o que for. Ainda assim, 150.000 pessoas tomaram conhecimento daquela informação.

Digamos que a metade desse número corresponda a leitores que não vêm com bons olhos o autor do livro. Ou porque se convenceram de que ele não sabe escrever, ou porque ele é pernóstico, ou porque cuida de temas irrelevantes, ou. Nosso número já baixou para 75.000 pessoas.

Admitamos que esses remanescentes não tenham maiores restrições ao autor, para sermos otimistas. Ou pessimistas, não sei bem. Mesmo assim, metade deles não está disposta a enfrentar o trânsito de São Paulo para dirigir-se à Alameda Santos, onde fica a ampla garagem da livraria FNAC, livraria na qual, como noticiado pelo Migalhas, em data de 10 de Dezembro haverá o lançamento do livro Justiça & Caos. Resta a outra metade, nada menos do que 37.500, se me não falha a matemática, mais gente do que a maioria dos torcedores que se dispõem a ver um Fla x Flu ou um San-São. Ou um Come-Fogo, para homenagearmos a brava gente de Ribeirão Preto.

Se todo esse público se dispuser a vir à tal vernissage, que seria do já caótico trânsito daquele trecho da cidade de São Paulo? Se passeata de professores, que reúne uma ínfima parte disso, já rende homenagens às mães deles, imagine o que será das orelhas da falecida mãe do autor daquela obra literária em tais circunstâncias?

Pensemos, por tudo isso, em um número mais factível: 10%. Não me refiro a 10% do número de leitores que receberam aquele exemplar do Migalhas, mas à décima parte do último número levado em consideração para expressar o meu estado de quase pânico. Ou seja: 3.750 pessoas.

Façam as contas. Uma fila de 3.750 pessoas exigiria qual espaço para acomodá-las todas ao mesmo tempo no mesmo lugar? Calcule, otimisticamente, 30 centímetros quadrados por pessoa, vá à máquina de calcular e terá a resposta em metros. Ou quilômetros, não sei bem. Talvez será melhor falar em pessimisticamente. Isso, porém, não é problema meu, mas do DSV. Ele que destaque para lá tantos marronzinhos quantos necessários forem para a boa ordem do tráfego. Meu problema é muito outro.

De fato, qual a rotina em uma cerimônia dessas? Segundo minha pessoal experiência, o futuro leitor vai até o caixa com o livro que havia pego na prateleira, paga o livro e vem até a fila de autógrafo. O autor do livro lhe dá um sorriso e uma breve saudação, o que consome alguns preciosos segundos. Em seguida o candidato a leitor estende o livro, que é recolhido pelo autor, que o abre naquela página onde a moça do caixa havia posto um papelzinho com o nome do comprador, contando que o autor, naquela idade, não vai estar a lembrar o nome de toda pessoa que, no devido tempo, lhe dirá “Lembra-se de mim? Quanto tempo, hein? Você não mudou nada!”. Mesmo que seja o irmão do escritor. E outras frases semelhantes que servem para inflar o ego do conceituado escritor e atrasar a cerimônia programada.


Ato seguinte, o autografante lança no livro uma frase com letra ilegível, lança uma rubrica e a data, fecha o livro e o devolve ao futuro leitor. Com essa onda de telefone celular que mais parece um bom bril, tantos são os mil e um instrumentos que abrigam, e como fatalmente haverá um ou uma acompanhante, a quem o futuro leitor ou futura leitora pedirá: “Benhê, pode fotografar a gente?”, mais tempo a ser considerado. Aí o autografante levanta-se, fica ao lado do ou da adquirente da preciosa obra literária e fala ”xixi”, para aparecer sorrindo na foto. Se se cuidar de leitora, ele fatalmente encerrará aquela mini-cerimônia com um respeitoso ósculo na fase esquerda. Mediram o tempo?

Pois minha experiência mostra que é impossível dedicar a cada leitor menos do que um minuto de tempo, isso em média, considerando as moçoilas beijoqueiras num extremo e os senhores de rosto grave e ar de crítico literário no outro da curva de Gauss, como diria a Maria Helena.

Se a minha bexiga nesse dia se comportar como não costuma fazê-lo, eu não terei de levantar-me a cada meia hora para ir depositar a água que vou tomando enquanto fico ali sentado naquela prazerosa sauna que geralmente são as salas de autógrafo de livros, temeroso de uma desidratação. Isso significa que deverei valer-me de 3.750 minutos até que o último leitor, já com olheiras e barba crescida, seja por mim atendido. “No céu os últimos serão os primeiros” será a piadinha que lhe direi, para tentar compensar aquele tempo de espera. Qual tempo?

Se a minha calculadora não me trai, 3.750 minutos equivalem a mais de 40 horas. Ou seja, o primeiro leitor já foi para casa, deitou-se na cama dele, dormiu, acordou no dia seguinte, tomou banho, barbeou-se, foi trabalhar, voltou para casa e eu ali, com um massagista ao meu lado, como se fosse aquilo uma partida de tênis de Roland Garros, a contornar as sucessivas câimbras na mão direita que tanto me atormentarão.

Tomado de pânico, ante a absoluta falta de condições físicas para uma partida desse jaez, se me permitem a má palavra, estou pensando em reduzir meus cálculos, para que, chegando a uns 25 leitores, se tantos, minha saúde não corra os riscos que já me preocupam. Pensem nisso, antes de pensarem em atender ao convite que lhes foi precipitadamente feito.

Escrevo isso, estejam certos, exatamente para mostrar a todos a irresponsabilidade de quem resolveu divulgar que no dia 10 de Dezembro, a partir das 19 horas, na FNAC da Avenida Paulista, haverá o lançamento do aguardado livro Justiça & Caos.

Se puder, não vá.



26 novembro 2008

Vale a Pena Ler de Novo (X)




Supremo eu gosto é o de frango,

um tantinho apimentado,

boto o regime de lado,

e caio de boca no rango.


Confusões, já não sei quantas,

aprontou o tal ministro.

Com seu aspeto sinistro,

pôs na rua o tal de Dantas.


Estava armado o salseiro!

O juiz, bem descontente,

diz que o outro é incompetente

e o Dantas tem é dinheiro.


O juiz, bravura imensa,

mandou prender novamente,

ofendeu-se o presidente,

segundo lemos na imprensa.


Formou-se angu de caroço

e o tempo foi esquentando.

'Que que ele está pensando?

Vou processar esse moço!'


Meu parecer eu vou dar,

pra delicada questão.

o juiz tá co'a razão:

o presidente agil mar.

( Migalhas 15.07.08 )

19 novembro 2008

Per Baco!



Vinhas tu da vinha,
alquebrada e triste,
nem mesmo sorriste,
quando me fitaste.

Vendo-te sozinha,
tentei um contato,
nem sorri, de fato,
quando me miraste.

“O que te aporrinha?
Que tristeza é essa?
Aonde vais com pressa?
Diga lá, mocinha.”

E o semblante azedo,
ar aborrecido.
Que teria havido?
Estará com medo?

Não me importa a uva,
o vinho é que importa.
Se a casa tem porta,
fuja-se da chuva.

“Cale-se” me dizes,
com ar arrogante,
e um jeito pedante.
Imitas atrizes.

Essa não és tu.
Te conheço bem,
deixa de desdém.
Tomemos um cru.

Tu bebes, pressinto.
A vida é tão curta,
então, vamos, curta
um copo de tinto.

Brindemos a vida,
com taças de vinho,
talvez um beijinho
antes da partida.

Pra que não apanhes
tu um resfriado
aceita um bocado
deste meu champanhe.

Já vejo um sorriso
surgir-te no rosto.
Foi-se o teu desgosto,
voltou-te o juízo.

Não sou adivinho,
sei que voltaria
a velha alegria,
graças ao bom vinho.

16 novembro 2008

Vale a Pena Ler de Novo (IX)

Juíza na rua

"RJ - juíza que decidiu trabalhar no meio da rua
corre o risco de ser demitida" (Dos jornais)

A juíza foi pra rua,
pra mode de trabaiá.
É um comportamento novo,
querê se ingualá c'o povo,
mais num deve injagerá.

Dexe disso, minha santa,
quixotismo num adianta,
um senta déis alevanta,
desembargadô é vivo
sabe que trabaiá sua,
isso de ficá na rua,
faça sór o venha a lua,
só te trais munto perigo.

Oça bem o que lhe digo,
quem lhe fala é um amigo:
isso é teimosia tua,
tu querê ficá na rua.
Pode le vim um castigo
e isso sê difinitivo.

(Migalhas 16.08.07)

02 novembro 2008

Froidianices

À Cláudia,
com amor e admiração.

Você está dormindo e sonha. Um bispo, sentado em seu trono, mitra na cabeça, exibe o báculo, ostensivamente. As senhoras presentes genufletem, respeitosamente, diante dele. Ao fundo, sobre a nave, o maestro empunha a batuta e, a um sinal do báculo, agita o instrumento, para êxtase dos presentes. É o casamento de um cadete. No corredor principal, colegas do noivo, frente a frente, descumprem a ordem latina dada por Cristo a Pedro - mitte gladio in vagina -. Ao reverso, tiram da bainha o espadim e cruzam-nos, dois a dois, formando um arco, sob o qual passarão os noivos. Que, certamente, terão muitos filhos. Fora, um canhão dispara salvas de tiro. As donzelas aplaudem, excitadíssimas. O povo, entretanto, munindo-se de pedaços de pau e cacetes, tenta penetrar no templo, que tem a porta ovalada. Os guardas, vestidos de branco, quais vestais, postam-se diante da porta, para impedir a violação do templo do amor. Com os fuzis nas mãos, os guardas calam neles as baionetas, em posição de combate. Frente-a-frente os grupos contendores, aparece o juiz da comarca, exibindo a vara, símbolo da jurisdição e do poder. O prefeito dirige-se ao microfone, que tem a cabeça como uma glande coberta de uma malha de aço. De microfone na mão, ele agita o dedo indicador. Dedo em riste, como se diz, ele ameaça castrar os presentes.

Você acorda com um barulho. Um livro do velho Freud caíra da prateleira, com estardalhaço. Apalermado, meio sonolento, você vê o homem de barba branca e olhar maroto sair das páginas do alfarrábio. Soltando baforadas de fumo, ele lhe repete a lição que dera aos jovens na saída do teatro, em Viena: “Meu filho, por vezes, um charuto simboliza apenas um charuto".
Você começa a lembrar-se de que na véspera estivera lendo algo sobre a simbologia freudiana. Báculo, batuta, lança, espadim, pau, cacete, vara, dedo em riste, microfone, canhão, fuzil, baioneta. Uma chuva de símbolos fálicos invadira seu sonho. Aliás, o que não falta é gente tentando achar símbolos em toda parte.

Assustado, você vê sobre a mesa de trabalho a estátua de Têmis. Na mão direita ela traz o ainda presente falo da autoridade - vista sob o ponto de vista masculino -. Ela parece envergonhada de sua bissexualidade, e, por isso, cobre os olhos com uma venda, certamente temerosa de que a balança que ela traz na mão esquerda, representação óbvia da feminilidade, lhe mostre se o animus, representado pela espada, prevalece sobre a anima, ou vice-versa. Uma figura andrógina que não tem coragem de encarar-se, conclui você.

Pensando bem, não foi o Freud o teu inspirador. Isso de anima e animus não era coisa do Sigismundo, mas do outro, que, aliás, não fumava charuto, mas cachimbo, símbolo feminino, com aquela abertura destinada a levar fumo, se a senhora me permite a grosseria.

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Esta brincadeira foi publicada originalmente há muitos anos. Agora que minha filha é Mestra em Psicologia Clínica, achei que cairia bem a provocação. Até porque ela é freudiana e eu sou Carl Gustaviano.