24 dezembro 2009

Feliz Ano Velho

Veja o lado positivo das crises, ainda que renais. Falo das renas do bom velhinho, evidentemente. Não me refiro ao Oscar Niemeyer, mas ao outro. Também não é o Levy-Strauss, minha senhora. Deixa pra lá.
O que eu queria dizer é que nos idos e vividos tempos, reunião de Natal era um desfile de esbanjamento, no que diz com os infalíveis presentes. O convidado A vinha com cinco pacotes, que distribuía a B, C, E e F. Epa! Faltou um. B dava presente a A, C, D, E e F. C dava presente a D, E, F, A e B e assim seguia a ciranda. Você ia pra casa carregando quatro ou cinco LPs, se fosse do sexo masculino. Se mulher, eram duas ou três caixas de pó-de-arroz. Ou de perfume. Na certa, Royal Briar, “o perfume que deixa saudade”, como se dizia na Rádio São Paulo.
Com a crise (falo daquela longínqua), inventou-se o “amigo secreto”. O convidado A dá presente a B; B dá presente a C; C dá presente a D e assim seguia a roda, com visível economia para todos.
Com o atual crack da bolsa, batizado sub-prime, que mostrou que a economia não estava nas mãos de craques, eu acabo de propor uma revisão do instituto do “amigo secreto”, inspirado no funcionamento das bolsas de valores. A coisa funcionou assim: em lugar de presentes concretos (vale dizer, CDs e perfume da Boticário), presentes virtuais. Secreto não será mais o amigo que recebe, mas o amigo que dá o presente.
Eu, como amigo secreto, daria a alguém um vale, feito no computador, pois sou bom no paintbrush: “Vale uma Maserati vermelha”, caso o sorteado fosse do sexo masculino; “Vale um colar de pérolas South Sea, com fecho de ouro branco e dois rubis”, se o sorteado fosse do sexo feminino. O resultado foi um estouro. Com a grande vantagem de, sendo secreto o amigo presenteador, o sorteado não terá como identificar-me. Ele, então, na segunda-feira mandará colocar num quadro o tal vale, ao lado dos quadros onde ele já colocou os cheques sem fundo que tem recebido ultimamente e as cautelas de ações que ele comprou no boom da bolsa, o que ele fez, aliás, sem a mais mínima cautela.
Já no que concerne ao final do atual inesquecível ano, sinceramente, eu gostaria de pagar o jantar do réveillon para todos os meus amigos. E certamente eu o faria se não tivesse havido o problema com a bolsa, que me afetou sensível, econômica e financeiramente. Desde que minha mulher escondeu a bolsa dela está difícil eu pagar as contas, que não param de vencer. Falo das minhas, é claro, cujo vencimento faz de mim um derrotado.
Tenho recorrido aos bancos, mas fico sentado na Praça da Sé o dia todo e nada de cair alguma moeda no meu furado chapéu. Mudo de banco e no shopping é ainda pior, pois o guarda me manda levantar e circular. Eu, nesta idade, girando minhas pás pra lá e pra cá!
Até pensei em bancar transportador de bebuns ao final de alguma festa do dia 31, mas não sei como estará, na tal data, o meu decrescente prestígio junto ao posto de gasolina da esquina, onde já sou atendido pelo trasista, pois o frentista nem me olha mais. É que ali ninguém mais acredita no meu cartão de crédito.
Segunda-feira próxima farei uma derradeira tentativa: procurarei a caixa. Colocarei uma carta na caixa do correio, esperando sensibilizar o idiota, digo, o samaritano que a receberá, com votos disto e mais aquilo, talvez até luzinhas piscando, e sugestão no sentido de que ele envie cópia a mais dez pessoas, cada uma me remetendo, ao depois, a gentileza de um substancioso óbolo. Difícil será encontrar dez pessoas que saibam o que é óbolo e o que é substancioso. Enfim, se até o Ronaldo encontrou quem acreditasse nele, por que não haverei de encontrar quem acredite em mim, que não estou tão gordo?
Bom mesmo foi 2007, quando éramos felizes e não sabíamos, ano digno de ser lembrado.
Desejo pás na terra a todos os homens de boa vontade e com saúde para limpar as ruas da cidade onde moram, especialmente considerando que os servidores municipais têm coisa mais importante para fazer. Greve, por exemplo. Eu não me candidato a esse trabalho porque as pás me deixam as mãos inchadas.
E adeus, pois minha inspiração foi-se.
 

10 dezembro 2009

Justiça

Há uma réstia de esperança em cada fato;
há um pouco de verdade no que é falso,
uma sombra que persegue o insensato.
Há um justo conduzido ao cadafalso.

Há uma causa que se vence injustamente:
uma chance de acertar se desperdiça.
Há uma lágrima no rosto do inocente;
uma luz vacila e morre na injustiça.

Há um justo condenando um inocente.
Há uma sombra de esperança em cada fato;
uma réstia de verdade na injustiça;
uma lágrima no rosto do que é falso.

Há uma chance de acertar injustamente,
uma luz a perseguir o insensato.
Há um justo, que vacila, e desperdiça
uma causa, que conduz ao cadafalso.

01 dezembro 2009

Presunções

"Não existe nenhum país no mundo que ofereça tamanha proteção (aos acusados). Portanto, se resolvermos politicamente – porque esta é uma decisão política que cabe à Corte Suprema decidir – que o réu só deve cumprir a pena depois de esgotados todos os recursos, ou seja, até o Recurso Extraordinário ser julgado por esta Corte, nós temos que assumir politicamente o ônus por essa decisão".

(Ministro Joaquim Barbosa, quando do julgamento do HC 84078/MG pelo STF)

Se você conhece alguma coisa da vida sabe que o criminoso é alguém que demonstrou não respeitar as regras de convivência social. Se conhece alguma coisa do Direito Penal certamente sabe que uma das finalidades da pena é proporcionar a ressocialização de quem cometeu um crime.

Imaginemos, porém, que você seja leigo em Direito. Você passa por uma avenida pela manhã e vê um automóvel inteiramente desfeito, com aqueles ferros retorcidos empilhados junto a um poste, sangue na calçada correspondendo ao passageiro que ali era transportado. Se você é um adulto que conhece as coisas naturais da vida, o que os juristas costumam chamar de illud quod plerumque accidit, aquilo que normalmente acontece, sabe que: a) automóveis não foram feitos para colidirem contra um poste, mas para trafegarem no chamado leito carroçável; b) os automóveis são construídos com material resistente e só se desmancham quando colidem contra um obstáculo, em alta velocidade. Aqueles dados à sua disposição permitirão que você chegue a algumas conclusões: a) o automóvel colidiu contra o poste por haver saído indevidamente do leito carroçável; b) os danos produzidos na colisão sugerem que ele estava trafegando em velocidade incompatível com a que seria razoável nas circunstâncias. Logo, concluirá você que esse motorista acaba de cometer um crime de trânsito, causando danos físicos ao passageiro ou sua morte.

Se, entretanto, ao seu lado estiver um advogado criminalista, ele bradará: “Enquanto não for comprovada a culpa desse motorista em um processo judicial, assegurando-se a ele ampla defesa, com a possibilidade de interpor todos os recursos previstos em lei, ele deve ser considerado inocente”.

Você então concluirá que os operadores do Direito são gozadores ou débeis mentais, pois, de acordo com o citado illud quod plerumque accidit, a presunção evidente, decorrente daquilo que ali está exposto, é no sentido de que o motorista foi imprudente, ao imprimir velocidade inadequada ao veículo, e imperito, ao deixar o automóvel desgovernar-se. Logo, a menos que ele justifique cabalmente sua conduta, a presunção será de culpa, não de inocência, até porque o fato se passou na madrugada e não havia qualquer testemunha presencial. O tal advogado, ao ouvir isso, lhe entregará um cartão de visitas. “Não saia à rua sem ele”, dirá a você, com um sorriso de mofa no rosto.

Imaginemos agora que você more num prédio de apartamentos, no qual moram várias famílias, cujas crianças costumam brincar num play ground situado nos fundos do terreno. No terceiro andar mora um rapaz, dono do apartamento, cujo quarto tem a janela voltada para o tal play ground. Ele encontra-se em gozo de férias e, por isso, pretendia dormir até mais tarde, o que o barulho da criançada não permite. Ele então empunha sua espingarda de caça e vai abatendo, uma a uma, as perturbadoras crianças, como se estivesse em Columbine.

Ele vem a ser preso, é lavrado o auto de prisão em flagrante e arbitrada fiança, pois ele é primário, tem residência fixa e emprego. Paga a fiança, ele é solto, voltando para casa.

Vamos dramatizar ainda mais: uma das crianças mortas era seu único filho. Como você se sentiria cruzando diariamente com aquele vizinho no corredor do edifício ou subindo com ele no mesmo elevador? Que idéias lhe viriam à mente?

Oferecida denúncia contra ele, o defensor arrola meia dúzia de testemunhas, dentre as quais Gisele Bündchen e Ricardo Izecson Santos Leite. Serão expedidas cartas rogatórias para ser tomado o depoimento da itinerante modelo onde quer que ela esteja desfilando e para ser ouvido o tal rapaz, que atua no futebol da Europa sob o nome de Kaká. Anos depois, quando voltarem as cartas rogatórias devidamente cumpridas, a defensoria requererá que o jogador e a modelo sejam submetidos a acareação, cujo indeferimento caracterizaria cerceamento de defesa. Quanto tempo mais será necessário?

Imaginemos que um dia a instrução desse processo termine e sobrevenha uma sentença condenatória. Condenatória? Coisa nenhuma. Será uma sentença determinando que o réu seja submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri. O acusado continuará a circular pelo edifício onde vocês dois moram, pois é primário e tem bons antecedentes. E continua sendo legalmente inocente.

A primeira providência da defensoria será apresentar um recurso de Embargos de Declaração, para que o juiz explique melhor algum trecho da sentença. Esse recurso será rejeitado ou acolhido, publicando-se o resultado meses depois.

Sobrevém então o recurso propriamente dito, que deverá ser apreciado pelo Tribunal de Justiça, recurso esse no qual a defensoria certamente argüirá umas tantas nulidades e pedirá a despronúncia do recorrente, como é de praxe. Os autos do processo irão à Procuradoria de Justiça, de onde retornarão no ano seguinte. Enquanto isso você continua a cruzar com o mesmo vizinho no corredor do edifício onde ambos residem.

Anos depois, o recurso será julgado, confirmando-se a decisão que mandara o réu a julgamento pelo Tribunal do Júri. O Acórdão será então lavrado, assinado, registrado e publicado, o que exigirá uns tantos meses. A defensoria, então, apresentará recurso de Embargos de Declaração, para que seja esclarecido isto e mais aquilo. Meses depois os tais Embargos serão julgados, o respectivo Acórdão será lavrado, assinado, registrado e publicado, o que exigirá mais alguns meses. Enquanto isso você continua a cruzar com o recorrente no corredor do edifício onde ambos residem, pois ainda não é o caso de expedir-se mandado de prisão, já que o réu continua sendo legalmente inocente.

Agora a defensoria apresenta não apenas um, mas dois novos recursos. No primeiro, dito Recurso Especial, ela invocará violação de algum preceito constante de lei federal; no outro, dito Recurso Extraordinário, a defensoria alegará violação de algum preceito constitucional, coisa que qualquer rábula sabe fazer. Os autos irão novamente à Procuradoria de Justiça, de onde retornarão no ano seguinte, com pareceres sobre um e outro desses recursos. Eles serão então despachados pelo Presidente do Tribunal de Justiça que ou manda que o recurso seja enviado ao tribunal de Brasília competente para apreciá-lo, ou indefere o recurso. Do indeferimento caberá novo recurso, dito Agravo de Instrumento, que será apreciado por um Ministro de um Tribunal Superior, em Brasília, sabe-se lá quando. Em Brasília caberão tantos recursos de Embargos de Declaração quantos a imaginação e a criatividade do Advogado conseguirem criar. Quando algum deles for indeferido liminarmente, sob a alegação de ser meramente protelatório, sempre caberá o recurso de Agravo Regimental, cuja decisão também admite novos Embargos Declaratórios.

Enquanto isso você continua a cruzar no corredor do edifício, onde ambos ainda residem, com a pessoa que, anos atrás, quando os cabelos de tua esposa ainda não eram grisalhos e quando havia cabelos em tua cabeça, disparou contra crianças que faziam algazarra no play ground do edifício onde você e ele já viviam. Lembra-se?

Repare que até agora ele ainda não foi submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri. Quando isso ocorrer e ele for condenado, finalmente ele será preso e começará a cumprir a pena. Certo? Errado. Ainda faltam ser interpostos muitos e muitos recursos.

Quando tiver sido definitivamente julgado, o tal rapaz, agora um respeitável senhor, casado e bem empregado, deverá deixar o emprego e a família para passar uns tempos atrás das grades. Uns anos mais e ele sairá de lá presumivelmente ressocializado.

09 novembro 2009

Intolerância





"Faculdade expulsa aluna que se trajava indevidamente."

(Dos jornais)


Erich Fromm, já na década de 70, intuíra haver nítida relação entre o culto da tecnologia e tendências necrófilas. “A fusão da técnica com a destrutividade não se mostrava ainda visível por ocasião da Primeira Guerra Mundial. Havia pouca destruição por parte dos aviões, e o tanque era apenas uma evolução das armas tradicionais. A Segunda Guerra Mundial trouxe uma mudança decisiva: a utilização do avião para a mortandade em massa. Os homens que jogavam as bombas mal tinham consciência de que estavam liquidando ou matando pelo fogo milhares de seres humanos, em poucos minutos. As tripulações aéreas eram uma equipe: um homem pilotava o avião, outro incumbia-se de sua navegação, outro jogava as bombas. Não estavam preocupados com o ato de matar e mal tomavam consciência de um inimigo. Estavam preocupados era com o manuseio de seu próprio avião, uma complicada máquina, construída segundo as linhas mestras referidas em planos meticulosamente organizados. O fato de que, como resultado de seus atos, muitos milhares e, algumas vezes, mais de cem mil pessoas seriam mortas, queimadas e mutiladas era, sem dúvida, do conhecimento deles cerebralmente, mas dificilmente compreendido sob o ponto de vista afetivo. Era um fato, por mais paradoxal que isso possa soar, que não lhes competia. Foi provavelmente por isso que eles – ou, pelo menos, a maior parte deles – não se sentiram culpados por atos que pertencem à lista dos mais horripilantes que um ser humano pode realizar”.

Se a palavra do professor de Heildelberg não valia nada, dada sua reconhecida formação marxista (menos sob a ótica política e mais pelo humanismo que caracterizou as preocupações do outro pensador alemão), a julgar pelo incremento da indústria bélica norte-americana na última metade do século passado, que dizer dos comentários irrespondíveis de Noam Chomsky a respeito de atos terroristas (assim ele os classifica) praticados pelo governo norte-americano, como, por exemplo, o bombardeio das instalações farmacêuticas de Al-Shifa, no Sudão, levada a efeito em agosto de 1998?

“As instalações de Al-Shifa eram as únicas a produzir drogas contra a tuberculose, para mais de 100.000 pacientes, a preço de cerca de uma libra inglesa por mês. Qualquer remédio importado (mais caro) não é acessível aos sudaneses – ou aos maridos, esposas e filhos dos doentes, que serão infectados a partir de então. Al-Shifa também fabricava drogas de uso veterinário para esse vasto país, que vive na sua maior parte da produção pastoril. A especialidade de Al-Shifa eram as drogas para matar parasitas, que passam do gado para quem cuida dele, e que são uma das principais causas, no Sudão, da mortalidade infantil”, relata, citando reportagem de James Astill, publicada no Guardian de 2 de outubro de 2001.

Tudo isso, porém, são dados estatísticos. Dados reais são os nomes dos fuzileiros navais norte-americanos mortos no Vietnã e imortalizados no panteão a céu aberto erguido por seus compatriotas. Identificássemos todas as vítimas do terrorismo norte-americano na Ásia, na América e na África, tal como registra Chomsky, e teríamos, certamente, de utilizar a muralha da China para imortalizar seus nomes.

Façamos, a esta altura, alguns closes com nossa câmera investigativa: Bouvanah Maneevong é plantador de arroz no Laos. Cuidadosamente ele procura, com as mãos, no local alagado, pela presença de algum artefato explosivo. Quando os encontra, leva-os cuidadosamente para um buraco aberto além, e aciona um gerador para explodir as bombas em segurança. Mas sabe que sempre haverá o risco de elas explodirem durante o transporte. Até 1993 ele e seu sócio haviam encontrado 45 desses artefatos.

Em agosto de 1993, Nag Saiko e sua filha Posua, de 13 anos, trabalhavam lado a lado no jardim de sua casa, na província de Xieng Khouang, no Laos. Posua tocou com seu instrumento de trabalho em um artefato de metal, que explodiu, matando-a. Estilhaços feriram a mãe no rosto e na perna.

Chantaly era uma moça de 18 anos, que sonhava casar-se e ter filhos. Em julho de 1993 uma explosão de um de tais artefatos causou-lhe graves queimaduras, além de cegá-la. Quando chega alguma visita, ela se esconde, envergonhada de seu aspecto. Em 1976 ela já havia perdido um irmão, quando uma dessas bombas explodiu. Ele tinha 11 anos de idade.

Em novembro de 1993, os dois filhos de Tu Va Chao, Kou Ya, de 4 anos, e Sai Ya, de 6, levavam um búfalo para o pasto. Sai Ya encontrou uma bola metálica e a apanhou, supondo fosse um brinquedo. Em seguida atirou-a na direção de seu irmão. A bomba explodiu, matando Kou imediatamente. Sai Ya morreu dois dias depois. Um ciclista que passava pelo local ficou ferido com a explosão.

Que há de comum em todos esses casos (e em muitos outros que poderiam ser lembrados), exemplos típicos de terrorismo, consoante a definição de Chomsky? De 1964 a 1973, o Laos fora submetido a um dos maiores bombardeios de que se tem notícia, pois os Estados Unidos pretendiam destruir a infra-estrutura montada naquele país, vizinho do Vietnã, pelos comunistas, bem como apoiar as campanhas militares favoráveis ao governo norte-americano, que era preciso estimular. Daí a decisão do bombardeio massivo de um país que, oficialmente, não estava participando da guerra.

Estima-se que foram realizados mais de 580.000 vôos ao longo desses nove anos, que despejaram cerca de 6.000.000 (seis milhões) de bombas convencionais além de 100.000.000 (cem milhões) de “bomblets”, que eram uma espécie de granada redonda, pouco maior do que uma bola de baseball, transportada em uma bomba especial que, ao se aproximar do solo, explodia apenas para o efeito de espalhar essas granadas aleatoriamente por toda a área. Assim, essas “bomblets” transformaram-se em minas, em armadilhas mortíferas, à espera de serem detonadas quando alguém, desavisado, as tocasse. Só na província de Xieng Khouang foram despejadas mais de 300.000 toneladas de bombas, o que corresponde a duas toneladas por habitante!

Ocorreu que, por força das chuvas torrenciais que costumam cair sobre aquela região, as monções, essas bombas foram levadas para outros lugares ou cobertas pela lama, ficando imperceptíveis. Somente quando tocadas por algum objeto mais duro (um instrumento agrícola, por exemplo) elas acusam sua existência, explodindo.

Mais de 11.000 pessoas foram mortas ou feridas nos vinte anos seguintes ao término da guerra do Vietnã, em razão da explosão dessas “bomblets”.

Esses dados constam de relatórios da Mennonite Central Committee, organização não-governamental, sediada nos Estados Unidos e ligada à North American Mennonite and Brethren in Christ, e que desenvolveu, juntamente com outras entidades (como a inglesa Mines Advisory Group, trabalhos de assistência naquele país. Evidentemente, não há como saber quantas bombas restam para serem detonadas nem como recolhê-las todas, pois, com o passar do tempo, a própria vegetação ou os efeitos da erosão escondem ainda mais tais armadilhas, tornando-as mais perigosas.

Temos, portanto, que um propósito inicial voltado para uma causa que se dizia justa, por mais criticável que fosse, vem acarretando danos perfeitamente previsíveis e cuja ocorrência se dará sabe-se lá por quanto tempo ainda, pois é impossível calcular quantas bombas ainda não foram localizadas. Vive-se ali, literalmente, em um campo minado, sem que ali haja guerra. E sem que o país tivesse estado sob uma guerra oficial. Ironicamente, muitas das vítimas (mais de 50% são crianças e jovens com menos de 15 anos) nem haviam ainda nascido quando a guerra terminou, ao menos oficialmente. Valha notar que o Brasil fabrica e exporta essasbomblets, por mais pacifista que seja o discurso de seus governantes.

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Extraído do livro Justiça & Caos, Editora Instituto Memória, 2008, p. 162



22 outubro 2009

Velhice

Falo do Carl Gustav Jung tão freqüentemente que algumas pessoas já danam a censurar-me. “Pra você é Jung no céu e Jesus Cristo na terra”, exageram. Ainda agora acabo de comprar a aplaudida biografia escrita pela Deirdre Bair, esse o incrível e indecorável nome da moça. Cuida-se de “uma obra imensa, repleta de rigorosa pesquisa histórica, sobre uma vida cheia de coragem, criatividade, decepção, sofrimento e glória”, diz o Carlos Byington. Além de ser pai da cantora Olívia, ele é um dos grandes psicoterapeutas junguianos do Brasil, na contra-capa do livro. Tenho eu culpa se o homem era um sábio e, como diz minha mulher, altamente prospectivo?

Pois está lá num depoimento à Aniela Jaffé, sua ex-paciente e depois renomada colega, um desabafo dado por ele quando já octogenário: “Eu já estou conformado em ser um póstumo de mim mesmo”. Ele, de certa forma, antecipava aquilo que o Ângelo Bonetti, excelente violinista de Araraquara, me dizia quando eu lá judicava: “Meu caro doutor, acho que está na hora de eu morrer. Passei a vida toda envolto pela música, desde criança. Toco meu violino todos os dias, desde que me conheço por gente. Bach, Vivaldi, até Paganini. Quando ligo a televisão, porém, eles exibem uns moleques fazendo um barulho dos infernos dizendo que aquilo é música. E eles são aplaudidos. Só morrendo!”

Vejam se o Jung não é eterno: “It is difficult to be old in these days” desabafou ele numa carta a um amigo. E ele tinha apenas 65 anos de idade! Imaginem como foram os 20 anos que ele ainda iria viver.

Norberto Bobbio, outra de minhas paixões, fala da própria velhice. Mas, que é velhice? “Aqueles que escreveram obras sobre a velhice, a começar por Cícero, tinham por volta de sessenta anos. Hoje, um sexagenário está velho apenas no sentido burocrático, porque chegou à idade em que geralmente tem direito a uma pensão. Já o octogenário, salvo exceções, era considerado um velho decrépito, de quem não valia a pena se ocupar. Hoje, ao contrário, a velhice, não burocrática mas fisiológica, começa quando nos aproximamos dos oitenta que, a final, é a idade média da vida”.

Serão essas palavras válidas em nosso país? Eu não tinha mais de 50 anos quando, parando o carro junto a um semáforo, fui abordado por um negrão forte, cujo rosto indicava não ter mais de 16 anos, porém com um corpo de lutador de boxe. Rosto grave, ele me estende a mão direita com a palma para cima. Não sou avesso a diálogos junto aos cruzamentos, ao contrário do que me aconselham os medrosos de plantão. Baixo o vidro da janela e lhe pergunto o que ele pretende, como se eu não soubesse. “Dinhêro!” responde ele com uma economia de palavras sintomática. Baixa em mim o educador que sempre fui. “Você, com essa saúde, com esse corpanzil que poderia ser útil com uma enxada na mão, vagabundeando por aí?” Ele me olha com dois punhais nos olhos. Eu insisto. “Você não tem medo da polícia?” Ele mostra uns dentes alvos. “Poliça! Poliça! Pra que que tem adevogado?” Ulalá! O rapaz tem experiência na área jurídica. Respondo-lhe, ingênuo: “Claro que sei. Eu também sou advogado”. Ele faz uma cara de espanto: “Quem? O senhor? Velhão desse jeito?”

Logo que atingi a idade da razão fui com a Maria Helena e a Thais ver uma exposição no MASP. Pedi três entradas à bilheteira. “Três não, duas”, disse a Thais, com toda sinceridade, própria de sua delicada e veraz pessoa, dentista recém-formada que se dedica a pacientes especiais.

“Ele não paga”, esclarece, como se eu fosse um de seus pacientes. Confesso que aquilo foi um banho de imersão num lago escandinavo. Eu ainda não me dera conta de que havia transposto o cabo da Boa Esperança. Levei alguns dias para superar o trauma que aquela fedelha me havia produzido com sua frase cruel, embora verdadeira. “Que tal se puséssemos sobre a crueza da verdade o manto diáfano da fantasia, como queria o poeta?” indaguei-lhe, inutilmente.

Devo reconhecer, porém, que, neste país, os velhos contam com muitas vantagens, como a chamada prescrição etária. De fato, aqui os maiores de 70 são tratados pela lei penal brasileira como se fôssemos debilóides, quase incapazes de saber a relevância dos atos que praticamos, incapazes de distinguir entre o que é privado e aquilo que deve permanecer público. Ou entre o que é meu e o que deve ser do outro. Praticar crimes todos nós sempre praticamos, é verdade, mas, chegando aos setenta, temos mais motivos para praticá-los, com a prescrição da condenação correndo pela metade. Talvez até eu me candidate a algum cargo eletivo. Do modo como funciona o Judiciário, eu com minha lucidez, um mandato eletivo na mão e os benefícios dos prazos prescricionais pela metade acho que nos próximos anos abrirei, finalmente, a tão sonhada conta na Suíça. Ou numa dessas ilhas cujo roteiro de viagem pode ser obtido nas páginas policiais dos jornais. Quando finalmente vier minha condenação criminal, será só juntar minha certidão de nascimento aos autos e, zás!, tudo aquilo vai para o arquivo.

Quem mandou você querer continuar jovem?

27 setembro 2009

Bagatelas


“Afastado desde 2005, quando determinou a soltura de 50 presos que cumpriam pena ilegalmente em delegacias superlotadas na comarca de Contagem (MG), o juiz Livingsthon José Machado resolveu abandonar a magistratura.”

(Dos jornais))

É de primeiras linhas que societas mater rixarum. O Velho Testamento não exclui dessa regra nem a sociedade familiar, como se vê da relação conflituosa entre Abel e Caim (cf. Gênesis, 4,8) ou Isaú e Jacó (cf. Gênesis 25, 31-33). Não foi por outro motivo que Moisés (1250-1180 a.C.) invocou a autoridade divina para impor a seus comandados regras nas quais se buscava a paz social (cf. Êxodo 34, 28), repetindo, aliás, o que fizera Hammurabi (1792-1750 a.C.) alguns séculos antes.

Invocam-se aqui esses precedentes religiosos, como um arqueólogo que, com delicada vassourinha na mão, tenta desenterrar vestígios de um tempo longínquo, para falar de algo tão paleolítico quanto o que se costuma estudar sob o rótulo de Criminologia ou, mais pragmaticamente, Direito Penal.

É também de primeiras linhas que as tais sociedades humanas, onde o quod plerumque accidit, como dito acima, é a existência de desavenças, estabelecem regras de conduta, a cuja desobediência corresponde, em lugar do desacreditado fogo do inferno, algum sucedâneo que lhe faça as vezes. Lá e cá a finalidade é a mesma: contribuir para que a convivência das pessoas seja tão pacífica quanto possível no grupamento a que, pelos mais diversos motivos, voluntários ou não, elas pertençam.

Como regra geral, parte-se do princípio segundo o qual o bem supremo do ser humano, depois da vida, é a liberdade. Ameaçar o candidato a infrator (ou seja, qualquer um de nós) com o encerramento precoce de sua vida ou com a privação da liberdade parece algo suficiente para dissuadir-nos dessa pulsão, quando ela se revele. Até chegamos a pedir ao Deus Pai que “não nos deixe cair em tentação”, tão forte é nossa vocação para o pecado. E essa identidade entre as categorias religiosas e as criminológicas pode ser confirmada não apenas pela vestimenta sacerdotal dos julgadores como pela escolha de uma deusa para simbolizar essa atividade estatal. Isso para não falarmos do nome escolhido para designar o local onde o pecador permanecerá quando for “excomungado” (isto é, afastado dos seus companheiros de comunidade): penitenciária. Se a penitência é a pena imposta pelo confessor ao penitente para remissão do seu pecado, como diz Caldas Aulete, é útil recordar que ela supõe o arrependimento, segundo o mesmo dicionarista. Aliás, muitos teólogos consideram sinônimas as palavras arrependimento (do pecado cometido) e penitência, sendo o cumprimento da pena imposta pelo confessor somente a expressão externa desse arrependimento.

Curiosamente, ao mesmo tempo em que se observa a laicizacão crescente da sociedade (para dizer o menos), em 1984 introduziu-se, no Código Penal brasileiro, como fator minorante da pena, mais um elemento religioso: a confissão. Valha registrar que a doutrina tem entendido que isso nada tem a ver com arrependimento, que continua restrito aos arcana Dei. Menos mal.

Digno de registrar que a relação crime/pena só impropriamente pode ser equiparada à relação pecado/penitência. É que o confessor não pode agir ex officio. Para impor a pena penitencial ele necessita da iniciativa do pecador, ao passo que no mundo civil, o criminoso procurar a autoridade para confessar a prática do crime não só é coisa rara como deve ser recebida com reservas, como se colhe do artigo 341 do Código Penal e do artigo 197 do Código de Processo. De outra parte, ao reverso do que supõem os leigos, não há qualquer proporcionalidade entre a gravidade do pecado e o tipo de penitência a ser imposta ao pecador, coisa diversa do que se dá na relação crime/pena.

Se o arrependimento do criminoso, quando não seja legalmente eficaz, é irrelevante no campo da repressão penal e se é de presumir que o legislador, ao estabelecer os parâmetros da pena, levou em conta a gravidade da infração, qual o fundamento ético do chamado “regime progressivo” no cumprimento da pena? Que se esconde sob o rótulo de “bom comportamento”? O leitor certamente falará em “humanização da pena”, “ressocialização do condenado” e até, se tiver pendores poéticos, numa tal “ponte de ouro”, por intermédio da qual o excomungado retorna ao convívio dos seus pares, onde recomeçará nova vida, dedicada ao trabalho honesto e ao respeito ao próximo, mercê do apoio ali recebido, proveniente, principalmente, dos “homens de bem”, como nos julgamos nós outros, situados no alto escalão social. Alguém mais pragmático (ou mais cínico) talvez diga que o abatimento no prazo de encarceramento, tanto quanto o modo mecânico como são aplicadas penas ditas alternativas, tem o claro escopo de impedir que as prisões se transformem (quando já não o são) em depósito de gente. Supõe-se que, se os juízes criminais, nas poucas horas de lazer de que dispõem, deixassem de lado os teóricos do Direito e lessem o livro de Dráuzio Varela, que levou à demolição do presídio famoso, ou o noticiário jornalístico diário, que nos dá conta de pecados e mais pecados injustificáveis, impuníveis e inarrependíveis atribuídos a autoridades pertencentes aos três Poderes da República, pensariam duas vezes antes de mandar para o purgatório aqueles pobres diabos que lá estão. Vã esperança! A isonomia ainda é mero princípio constitucional “carente de regulamentação”.

Quem é o juiz criminal? Ou, melhor: como deve ser o juiz criminal? É (rectius: deveria ser), antes e acima de tudo, um cidadão inserido em um dado momento histórico. Parafraseando Robert G. McClos­key, para muita gente, quando um juiz enverga a toga, ele deixa de ter ideias próprias e preconceitos, pautando-se exclusivamente pelo que se contém na lei. Ou, dito de outro modo: a lei seria um disco fonográfico e os juízes meros fonógrafos que reproduziriam fielmente o que havia sido gravado. Essa comparação está em seu The American Supreme Court, ao abordar a inafastável ideologia dos juízes.

Poderíamos citar nosso Ranulfo de Mello Freire: a lição dos doutrinadores serve para levar o juiz aonde ele já chegou por suas próprias pernas. A pergunta que se impõe então é esta: mas de que juiz estamos falando?

Quando Alberto Silva Franco, nos anos 80, proferiu os votos pioneiros no sentido da atipicidade das condutas aparentemente danosas, mas sem relevante potencialidade para justificar a imposição de pena, ditos “crimes de bagatela”, não faltou quem censurasse, por ignorância ou má-fé, isso que os entendidos chamam de “ativismo judicial”. Que é isso? “Judicial activism is what the other guy does that you dont like” é a literal observação de Joel Grossman, citado por Lawrence Baum em seu conceituado The Supreme Court. É claro que tal boutade ironiza os críticos do ativismo e não o próprio ativismo.

Já dissemos alhures, ao aludirmos ao papel político da Suprema Corte norte-americana, que “no que tange aos direitos fundamentais, a Suprema Corte nem sempre apresentou um entendimento uniforme, não sendo incomum que se reconhecesse aos Estados o direito de restringir o exercício deles, no interesse da sociedade, ainda que a Corte sempre se mostrasse dividida quanto à possibilidade disso. Surgiram assim duas correntes de entendimento, que os autores denominam interpretivism e noninterpretivism. Segundo a primeira corrente, os direitos fundamentais a que incumbe à Corte zelar são apenas e tão somente aqueles que se encontram previstos expressamente na Constituição Federal (aí incluído o Bill of Rights). Uma subdivisão dessa corrente admite, quando muito, que se lance mão da história da Carta para eventualmente trazer ao caso concreto o pensamento dos seus redatores. A outra corrente, mais liberal, aceita que “constitutional principles and norms can be found outside of the constitutional document”.

Como é isso no Brasil?

Mandar para a prisão quem não tem condição de pagar quem lhe dê uma assistência jurídica digna de ser chamada de ampla, como exige o catálogo constitucional que diz com o due process of law, em escandaloso contraponto à situação de quem tem capacidade econômica para apresentar dezenas e dezenas de recursos, com a óbvia finalidade de impedir o trânsito em julgado da decisão condenatória, valendo-se da discutível amplitude dada ao princípio da presunção de inocência, só não sensibiliza os insensíveis, dada a óbvia quebra do também constitucional princípio da isonomia. Uma lata de ervilha aqui, uma barra de chocolate ali, um pacote de margarina acolá já não justificaram que alguns juízes, em nome certamente de alguma cinematográfica “tolerância zero” (Law & Order não é um seriado exibido pela nossa televisão?), mantivessem na prisão “negros ou quase-negros de tão pobres”, para citarmos Caetano Veloso?

Não há de ser por outro motivo que nossa Suprema Corte vem afirmando que “verificada a objetiva insignificância jurídica do ato tido por delituoso, é de ser extinto o processo da ação penal, por atipicidade do comportamento e conseqüente inexistência de justa causa”, como disse o ministro Cezar Peluso, relator do Habeas Corpus n° 88393.

A ministra Ellen Gracie traçou os contornos da bagatela criminal: “O princípio da insignificância está intimamente rela­cio­nado ao bem jurídico penalmente tutelado no contexto da concepção material do delito. Se não houver proporção entre o fato delituoso e a mínima lesão ao bem jurídico, a conduta deve ser considerada atípica, por se tratar de dano mínimo, pequeníssimo. O critério, em relação aos crimes contra o patrimônio, não pode ser apenas o valor subtraído (ou pretendido à subtração) como parâmetro para aplicação do princípio da insignificância. Consoante o critério da tipicidade material (e não apenas formal), excluem-se os fatos e comportamentos reconhecidos como de bagatela, nos quais tem perfeita aplicação o princípio da insignificância. O critério da tipicidade material deverá levar em consideração a importância do bem jurídico possivelmente atingido no caso concreto.” (Habeas Corpus n° 92531)

Nem o rigoroso ministro Joaquim Barbosa rejeita tal princípio, adotando-o até mesmo quando não foi invocado: “Não se admite Recurso Extraordinário em que a questão constitucional cuja ofensa se alega não tenha sido debatida no acórdão recorrido e nem tenha sido objeto de Embargos de Declaração no momento oportuno. Princípio da insignificância reconhecido pelo Tribunal de origem, em razão da pouca expressão econômica do valor dos tributos iludidos, mas não aplicado ao caso em exame porque o réu, ora apelante, possuía registro de antecedentes criminais. Para a incidência do princípio da insignificância só devem ser considerados aspectos objetivos da infração praticada. Reconhecer a existência de bagatela no fato praticado significa dizer que o fato não tem re­levância para o Direito Penal. Circunstâncias de ordem subjetiva, como a existência de registro de antecedentes criminais, não podem obstar ao julgador a aplicação do instituto.” Caso, pois, era de “concessão de habeas corpus, de ofício, para reconhecer a atipicidade do fato narrado na denúncia, cassar o decreto condenatório expedido pelo Tribunal Regional Federal e determinar o trancamento da ação penal existente contra o recorrente.” (Recurso Extraordinário n° 514531)

Não clama aos céus que alguém acusado da prática de fato atípico tenha de chegar à Suprema Corte para recuperar a liberdade ou sua condição de primário? Responde o ministro Cezar Peluso, no julgado já referido: “Ação penal. Suspensão condicional do processo. Inadmissibilidade. Ação penal destituída de justa causa. Conduta atípica. Aplicação do princípio da insignificância. Trancamento da ação em habeas corpus. Não se cogita de suspensão condicional do processo, quando, à vista da atipicidade da conduta, a denúncia já devia ter sido rejeitada.”

Se a denúncia deveria ter sido rejeitada, é de concluir que o juiz descumpriu seu dever. E que acontece a um juiz que descumpre seus deveres?

Recentemente, ao conceder o habeas corpus que pôs fim a um abuso inominável, depois de dizer que “parece insofismável que a Promotora de Justiça, com o beneplácito da Juíza de origem, transbordou, e em muito, suas atribuições”, registrou o ilustre relator: Vilipendiou-se, sem qualquer necessidade legal, atos e manifestações profissionais de advogados, como o são, ressalte-se, os levantamentos judiciais embasados em mandato externando a cláusula ad judicia, surrupiando a eles, convenha-se, a inviolabilidade preconizada na Lei Maior do País (cf. artigo 133 da CF)”.

Atribuindo a autoridades públicas ações abrangidas pelos verbos vilipen­diar e surrupiar, quais as providências que tomou a E. Turma julgadora com vistas a eventual punição dos responsáveis por isso? Nenhuma, pois “quanto à sugestão de remessa de cópias aos Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público, é de se ter presente que os pequenos erros, os diminutos equívocos ou deslizes profissionais mínimos, como se queira chamá-los, sempre estão à volta do ser humano, em especial daquele que tem a atribuição de investigar ou de decidir.” (TJSP HC 1.011.561-3/8-000).

Um juiz vilipendiar e surrupiar é coisa de somenos importância, nonada, bagatela.

14 setembro 2009

Ontem e hoje


A excelente jornalista Eliane Catanhêde, que não abre mão do chapeuzinho, mesmo não havendo sol e nestes tempos de rebeldia ortográfica (que raio de acordo é esse que só o Brasil assinou e o governo federal não reconhece?), em edição recente da Folha de S.Paulo, faz um oportuno comentário sobre as verbas destinadas aos luxos submarínicos de nossa Marinha de Guerra, aos caças supersônicos que ora provirão da França, ora da Suécia e ora dos EUA, e os minguados reais destinados aos pés-de-poeira, que são aqueles que, no dizer de um especialista, resolvem a parada na hora do aperto. Ou da guerra.

Quais as reivindicações do Exército? “Não temos comida para todo mundo” afirma um respeitável oficial. Por força disso, segundo aquela arguta jornalista, “soldados e oficiais vão praticamente repetir as jornadas semanais do Congresso. Não vão mais trabalhar nem na manhã de segunda, nem na tarde de sexta-feira. Para fazer economia”.

Tenho algo a dizer sobre isso.

Quando iniciei a prestação do serviço militar já era funcionário público estadual (por concurso!) e havia acabado de ingressar na Faculdade do largo. Como os sobreviventes faremos jubileu de ouro no próximo ano, faça aí as contas para saber de quando estou falando, que estou sem a calculadora à mão neste momento. Fui designado para servir no Batalhão de Saúde, ali no Cambuci, tendo ao lado o também universitário Kamel Abude, dentre outros que, por distração ou safadeza, deixaram passar in albis o prazo para o exame do C.P.O.R.

Graças a meus nunca negados dotes datilográficos, passei a dedicar a agilidade dos meus dedos à Companhia de Comando, centro burocrático de um batalhão, como sabeis, assessorando o sargento Laureano, que, a bem da verdade, me expulsava periodicamente da sala sob um argumento irrespondível: “Vá com esse teu Direito Romano estudar em algum canto do quartel”. Graças a essa simpática figura e graças ao meu hollerith do Departamento de Águas e Esgotos, que me assegurava um soldo muito maior do que os demais pés-de-poeira, não posso queixar-me daqueles 10 meses e 10 dias em que, tal como o George W., servi a pátria com denodo, seja lá o que for isso.

O comandante era o Cel. Cavalcanti de Albuquerque, que, como toda a oficialidade, estava mais para a Medicina do que para a guerra. Vez em quando ele se sentava a meu lado e tentava convencer-me a fazer carreira militar, pois via em mim um futuro auditor militar. Eu não dizia nem sim nem não, mas o fato é que talvez muito revolucionário do pós 64 passou por maus momentos porque até então não me passara pela jovem cabeça ter como atividade profissional julgar a conduta alheia. Assim é a vida.

Como uma de minhas atribuições era preparar ofícios e relatórios, lá iam para as esferas superiores as prestações de contas das inúmeras marchas e caminhadas que, segundo quem rascunhava aquilo, nós havíamos feito no mês passado. Também eram comunicados os exercícios de tiro que a tropa realizava de tempos em tempos.

Certa manhã, baixa no quartel uma equipe da P.E., que se põe a recolher Pedros e Paulos, levando-os sei lá para onde, afim de esclarecerem isto e mais aquilo relacionado com os tais relatórios.

A soldadesca nunca soubemos o que aconteceu com os detidos, como é óbvio. Eu, de mim, chegado o termo final da convocação, dei baixa “apto a terceiro sargento”, como constou do pergaminho que me foi então entregue, sem ter jamais empunhado um revólver, um fuzil, um mosquetão ou mesmo um reles estilingue.

Quanto às marchas, havia lá um soldado que solava um violão que nem gente grande. Graças a ele, tínhamos não só marchas, como sambas e boleros.

10 setembro 2009

Um novo astro

Eu deveria começar esta crônica citando um desses ditos populares, tal como quem sai aos seus não degenera. Ou então filho de peixe nasce nadando. Aí apareceria um desses estraga-prazeres para contar a história da coruja que, para que o gavião, que ela havia tirado de uma situação embaraçosa e queria mostrar-se grato a ela, não lhe comesse as corujinhas filhas, orientou a rapinácea ave: “Meus filhos são os filhotes mais lindos da floresta. Se quer retribuir o favor, poupe-os”. O que não impediu que o aparentemente ingrato gavião devorasse a ninhada corujal toda, como haveria ele de conhecer essas psicologias psitáceas? Como quer que seja, sempre nos restou a expressão mãe-coruja, designativa dessa incapacidade materna de olhar com olhos neutros sua ninhada. Coisa, aliás, que também se aplica a certas avós.

Ou diria aquele chato, todo despeitado, que quem conta um conto aumenta um ponto.

Pensei, pensei e resolvi não colocar qualquer nariz de cera, entrando diretamente no assunto: hoje falarei do Felipe.

Quando nasceu, coisa aí de dois anos e meio, o garoto já prenunciava novidades. Não chorava em si bemol, como é comum nessa espécie de filhote, mas em dó maior. Fosse por ele, nem haveria necessidade de ginecologista, obstetra, parteira, pediatra e nutricionista. Ele mesmo iria à cozinha da maternidade e com o dedo indicador direito apontaria aquilo que queria comer e beber, depois de ter nascido com as próprias pernas e os próprios braços, auto-suficiente como ele só, e ido da sala de parto ao apartamento da maternidade por si mesmo, só não apertando o botão do elevador porque, em razão da imprevidência dos adultos, estavam tais botões muito acima de sua cabecinha. Mas certamente teria tentado apertá-los, como atestariam os vários pulos presenciados por uma ou duas enfermeiras, a demonstrarem essa sua disposição, falo dele, e sua auto-suficiência. Tudo narrado pela avó paterna.

Pais modernos, metidos a intelectuais, lá vai o Felipe para o berçário da esquina, sendo então levado à sala onde pessoas ainda não auto-movimentáveis ficam o dia todo deitadas, a olhar o teto e a chupar chupeta, quando não o polegar. Ao passar por outra sala, onde crianças se divertiam estapeando-se mutuamente, o Felipe não deixou por menos: é aqui que eu quero ficar. Não disse isso em linguagem audível, mas as mocinhas da escola infantil precisariam ser sumamente estultas para não deduzirem isso do berreiro que ele aprontou, só abortável quando ele era posto junto das crianças maiores. “Mas elas sabem andar, ao passo que você só engatinha!” exclamou uma delas. Não seja por isso. Ele levantou-se sobre as duas pernas e, caindo e levantando-se, passou a acompanhar os marmanjos, inúmeros meses mais velhos do que ele.

E vieram as descobertas que lhe iam saciando a curiosidade. “Que gosto terá a carne de gente?” indagou-se ele. Só experimentando, respondeu-se. E sapecou uma mordida, com os dois solitários dentes superiores e outros tantos inferiores, no braço de um colega que, contrariado por haver sido escolhido sem prévia consulta, se é que há consulta a posteriori, para aquela utilíssima experiência, põe-se a berrar, mostrando-se precocemente inimigo do progresso científico. Foi o que constou da cartinha que o futuro cientista levou para casa no fim do expediente escolar.

Ciente de que os dias do nosso planeta estão contados, lá vai o Felipe explicando a esta plantinha os esforços que os adultos estão a fazer para impedir a chamada hecatombe, consolando aquela outra porque sua florzinha da esquerda não tem mais hoje o vigor que tinha ontem, ou lamentando que aquela folha amarelecida, que o vento destacou do talo, não possa ser colada a ele, por mais que isso seja por ele tentado. E com cada uma vai conversando, a explicar que zuzuzuba isto, calafita aquilo, gnosminuci algo mais. E que elas, pela atenção mostrada, estão todas a entender. E até lhe pedem algo para beber, o que exige que o ecologista pediátrico vá caçar alguém que lhe encha o baldezinho, que, devidamente provido de água, ele arrasta de cá para lá. E põe-se a distribuir o precioso líquido, valendo-se de uma colherinha de plástico, o que faz irmãmente, um pouco na própria roupa, outro tanto no chão e o sobejo nas já angustiadas plantas.

E se estou com um belo chaveiro que tem um patinho de borracha amarelo na ponta, com um botãozinho que, devidamente premido, faz quac, quac, além de lançar uns raios azuis pela boquinha, lá vem o Felipe e decreta que aquilo deve ser desapropriado, mercê de um decreto expropriatório com apenas dois artigos: Artigo primeiro: É meu; Artigo segundo: Revogam-se as disposições em contrário.

E lá vai ele, todo bamboleante, imitando meu expropriado pato, que ele mostra a cada flor, apertando com destreza o tal botãozinho na cara de cada uma delas.

Se depender da avó paterna, cada enxadada uma minhoca. Explico: se vamos ao shopping ou à feira, uma blusinha de marinheiro ou uma fruta madura são a cara do Felipe. Isso quando não é um pianinho, mais colorido do que a roupa do seu colega Elton John. O que poderá gerar nele um consumismo desenfreado vendo nela uma provedora eterna. Ou um ataque de profunda decepção quando a avó algum dia vá visitá-lo com as mãos abanando, como lhe adverte a ela o sensatíssimo marido, ocasião em que ele, o Felipe, lhe mostrará a ela todo o seu desencanto abrindo as mãos e os braços e exclamando um solene “Cabô”. Sem êxito, reconheço, minhas advertências.

E já que falei no tal pianinho, diga-me lá: qual foi a reação de teu filhinho, de tua filhinha, de teu neto, de tua neta, ou da criancinha que fosse a quem algum dia deste um pianinho desses de presente? Se era uma criança normal, ela fechou a mão direita, deixou o indicador de fora e se pôs a agredir, com aquele solteiro dedo, o teclado, aquele espaço sagrado que o Paul McCartney comparou à harmonia que deve imperar entre os habitantes do planeta, sempre com o mesmo plim. E o Felipe? Não fosse ele neto de quem é, sentou-se diante do instrumento, abriu ambas as mãos e despejou ali, delicadamente, nada menos do que os dez dedos, num acorde que certamente teria despertado palmas do Arrigo Barnabé.

Não satisfeito, pôs-se o novel tecladista a repetir o acorde, ora mais à direita, ora mais à esquerda, marcando o compasso com o balançar da cabeça para este e para aquele lado, metrônomo humano sem a menor dúvida. Não bastasse isso, fechou seus belos olhos azuis, para que, como nos ensinam certos cantores, a visão das coisas materiais não lhe toldasse a inspiração interpretativa.

É claro que você não acredita em nada disso, mas no dia em que isso aparecer momentaneamente no Fantástico ou no YouTube, ad perpetuam rei memoriam, como diz o pai do infante a seus alunos, com que cara você ficará?

Eu poderia falar das curvas que ele faz com seu possante veículo, mas deixa isso prá lá. Até pretendia relatar agora o dia em que o José Francisco levou o filho à Faculdade de Direito, onde o pai leciona Direito Civil, e o rebento mostrou o propósito de dar uma aula sobre usucapião extraordinário, a julgar pela página do Código Civil que o garoto escolheu ao abrir aquele livrão, mas, diante de tua cara de descrédito, acho melhor parar por aqui. Eu poderia invocar mais uma vez o testemunho da avó paterna, mas você certamente contraditaria aquele testemunho e eu e ela não estamos aqui para sermos julgados. O futuro dirá quem de nós tem razão.

29 agosto 2009

Tuiávii no Brasil


"O Papalágui precisa fazer leis assim e precisa ter quem lhe guarde os muitos meus que tem, para que aqueles que não têm nenhum ou têm pouco meu nada lhe tirem do seu meu. De fato, enquanto há muitos pegando muitas coisas para si há também muitos que nada têm nas mãos. Nem todos sabem os segredos, os sinais misteriosos com os quais se consegue ter muitas coisas: é necessário que se tenha uma coragem especial, que nem sempre se concilia com o que chamamos honra.”

Caros irmãos e irmãs das muitas ilhas.

Falo-vos hoje de minha viagem a outro continente, talvez maior ainda do que a Europa, de que lhes falei já no outro dia, pois lá fiquei por muitas e muitas luas. Chamam aquele continente de terra das árvores que produzem brasas. Verdade que o povo dali ama tanto essas árvores de pau vermelho que tem cortado quase todas, levando para casa na forma de mobília, assoalho ou mesmo de lenha para o fogão. Ali tive a oportunidade de conhecer como eles tratam quem não cumpre o dever de respeitar o meu dos outros. Os papaláguis(1) de lá me explicaram, mas eu não entendi muita coisa, e lhes conto tudo tal como eu entendi. Talvez eu não tenha entendido direito.

Aqui, quando algum de nós comete alguma falta, algum pecado, é levado perante um dos nossos homens mais experientes, que aprecia o caso e impõe ao pecador a penitência que acha suficiente para servir de exemplo a ele e aos demais da tribo. Caso decidido. Lá no país das árvores em brasa a coisa é um pouco mais complicada, talvez porque eles sejam mais civilizados do que nós.

Vejam vocês que um pecador, lá, é levado pelos homens de roupa colorida perante um doutor da lei, que manda colocar o pecador em um lugar reservado, por luas e luas, para que ele reflita sobre o seu pecado. Passada a quarentena, o pecador geralmente confessa aquele pecado e muitos outros, muitíssimos mais. Então são ouvidas todas as pessoas que sabem alguma coisa sobre esses pecados. Depois disso, o doutor da lei escreve numa esteira de papel e eu pensei que estivesse terminado o julgamento do pecador.

Vocês vão querer saber qual foi a penitência que foi imposta ao pecador. Eu lhes digo que aquele doutor da lei ou doutora, como às vezes ocorre, não impõe penitência nenhuma. Ele apenas manda esse monte de esteiras de papel para um segundo doutor ou doutora, geralmente mocinhos, tão moços que aqui em nossa tribo ainda estariam praticando para começar a caçar e a pescar ou bordar. Lá ele ou ela já é um doutor ou uma doutora da lei, e é quem vai examinar aquilo que o primeiro doutor da lei fez. Ele ouve novamente todas aquelas pessoas e impõe uma penitência provisória ao pecador. Embora ele ou ela sejam considerados doutores da lei, parece que ninguém confia naquilo que eles fazem, pois aquelas esteiras de papel, que já são muitas, não valem quase nada e vão ser agora enviadas para um pule nuu(2) mais velho, que reexaminará tudo aquilo, pois parece que ninguém acredita naquilo que aquele doutor ou aquela doutora disseram. Se não acreditam nele ou nela, como é que eles são doutores da lei? Eu não sei lhes dizer, pois ninguém me explicou. Ou, se explicou, eu não entendi.

Vocês pensam que agora o pecador vai receber a penitência que ele merece, não é? Pois ainda não vai. Esse doutor da lei mais velho, ou doutora, que é o terceiro, consulta outros doutores da lei, pois o caso é muito difícil para ser apreciado apenas por um doutor ou uma doutora, mesmo sendo ele ou ele mais experiente do que aqueles outros de que lhes falei. Quer dizer: o doutor e a doutora da lei mais moços decidem sozinhos; já os doutores mais velhos e mais experientes devem decidir em conjunto. Quem entende Isso? Eu não entendo. Embora todos eles sejam pule nuu, é preciso que as esteiras sejam apresentadas a todos eles, mesmo que isso consuma muitas e muitas luas.

Agora sim, vocês estão supondo, esse último pule nuu vai cuidar da penitência a ser imposta ao pecador. Pois digo que ainda não. Não se esqueçam de que eles são civilizados, e civilizado é papalágui mais cuidadoso do que os da tribo de Tiavéa. Nós somos ignorantes e queremos resolver tudo logo, bem depressa, para podermos voltar à nossa caça e nossa pesca. Nós só pensamos nisso. Eles, que são civilizados, pensam em outras coisas.

É que os pule nuus mais experientes às vezes descobrem que o doutorzinho da lei não ouviu as pessoas que sabiam do caso com a atenção devida, anulam tudo e mandam refazer aquilo tudo. O monte de esteiras de papel volta para a primeira oca da justiça e as pessoas vão ser novamente ouvidas pelo doutor menos experiente, que nem por isso é punido pelos doutores mais velhos. É verdade que, com o passar do tempo, os fatos vão escapando pelos ouvidos da cabeça das pessoas, pois o espaço ali dentro é muito pequeno. Então aquilo que havia sido dito lá naquela primeira vez, bem longe no tempo, não combina direito com aquilo que está sendo dito agora.

Vocês não devem desconhecer que essas pessoas que conhecem os fatos devem deixar aquilo que estão fazendo e ir à toca da justiça mais uma, duas, ou três vezes, pois um dia o pecador não foi trazido, no outro faltou esteira para nelas se escrever, na outra o pule nuu disse que estava com dor de barriga e ficou na rede ou nadando no grande lago, e, assim, as pessoas voltam à casa da justiça muitas e muitas vezes, o que elas fazem com muito prazer, pois sabem que são importantes. Mesmo não recebendo nada para ir lá, elas, mesmo assim, sempre voltam à casa da justiça. Se elas não fossem pessoas importantes, que fazem tudo isso com prejuízo para elas e seus familiares, não teriam sido chamadas para ir à oca da justiça. Entenderam?

Antes de essas pessoas serem ouvidas, elas ficam de pé nos corredores da oca da justiça, sem comer nem beber nada durante horas, que é para que as idéias não se embaralhem. Algumas sentam-se de cócoras, o que não parece muito certo, pois sempre vem alguém fantasiado mandando que ele ou ela se levante já dali, o que ele ou ela obedece. Enquanto isso, na parede do corredor da oca os dois dedos da máquina de contar o tempo correm, correm e as pessoas ali vagando, nervosas como leão enjaulado, sem que ninguém se lembre delas, parece, pensando nas crianças que ficaram lá na ocara deles. Depois, elas são levadas para um quarto que sobe e desce, deslizam para fora da cabana da justiça, levando na mão uma pequena esteira, onde está dito que elas devem voltar dali tantas luas mais adiante, para serem ouvidas. E elas trazem a cara de descontentes.

Depois que todas essas pessoas, que é como eles chamam os papaláguis, chegam a ser ouvidas, o que exige muitas e muitas luas, é que o caso vai ser decidido pelo pule nuu. Eu perguntei a um entendido porque tinha de ser tudo repetido e ele me explicou que o primeiro doutor da lei não deixa o pecador consultar um conselheiro. O que o primeiro doutor da lei fez tem de ser confirmado na presença do conselheiro do pecador do pule nuu. Se o segundo doutor da lei é que deixa o pecador consultar o seu conselheiro, como é que eu não vi o conselheiro junto do pecador quando este foi ouvido pelo segundo doutor da lei? É que nessa hora o conselheiro não poderia intervir, o que me parece que estava sendo modificado, como eles me disserem, mas o nome dele consta da esteira. E se ele não pode intervir, qual a diferença entre o interrogatório feito perante o primeiro doutor da lei daquele interrogatório feito perante o segundo doutor da lei? Eles não sabiam me explicar. Parece que um é mais doutor do que o outro.

Mas eu fiquei sabendo que esse conselheiro deve estar presente quando o segundo doutor da lei ouve o proprietário do meu que foi levado pelo pecador. E também quando as pessoas que viram o cometimento do pecado vão ser ouvidas. Eu quis conhecer quem era o conselheiro que estava ali naquele momento, mas o papalágui que toma conta da porta da oca da justiça me disse que ele ainda não havia chegado, ele estava em outra oca da justiça, distante dali e que mais tarde a esteira seria mostrada a ele e ele colocaria seu nome ali na esteira, como se tivesse estado presente, pois confia no pule nuu. Ele confia muito no trabalho que foi feito na ausência dele. Ou seja, ele quer dizer que ele é dispensável.

Então terminou tudo? vocês me perguntarão. O pecador agora irá para a falé pui pui(3)? Pois eu lhes digo que não. Ainda não, me disseram eles.

Quando me disseram que tudo aquilo seria ainda examinado por um pule nuu mais experiente, lá mais longe, eu perguntei: então agora acabou? Ainda não. Aquele pule nuu experiente mandará a esteira de papel para um outro pule nuu, pois ele é ainda mais experiente do que aquele de antes. Agora terminou? Depende: se eles não estiverem de acordo, ainda será ouvido um segundo pule nuu bem mais velho, e um terceiro, e um quarto. E um quinto.

Então agora terminou? Há ainda outra oca da justiça, mais longe ainda, do outro lado da grande praça, onde as esteiras costumam ser envidas e tudo aquilo recomeça, pois esses são pule nuu ainda mais velhos e mais experientes.

Eu ia perguntar se aquilo tudo terá um fim algum dia e se o pecador ainda estará vivo quando tiver de ir para a falé pui pui, mas o meu orientador perdeu a paciência comigo, colocou-me de volta na grande gaivota de prata que brilha no azul lá de cima e me remeteu de volta para Samoa. “Selvagem estúpido”, foi como ele me saudou lá do alto.

Acho que sou mesmo, pois eles são civilizados e sabem o que fazem e o que dizem.



[i] (1) Papaláguii = Homem branco

[ii] (2) Pule nuu = Homem que decide

[iii] (3)Fale pui pui = Prisão