22 julho 2009

O palavrão

Sou freqüentador de banco. Minhas filhas não se conformam com isso, pois lançam suas contas na Internet e dormem o sono dos justos. Eu, um homem tão moderno, ainda fazendo esses périplos desnecessários. O que elas não sabem é que o gosto está justamente nesses passeios pelas ruas do bairro, vendo o que se passa nas cercanias. Ver aquela senhora levando, ou sendo levada, por seu cão, que deposita, sem cerimônia, seu cocô no lugar que lhe dê na telha e eu ficar observando se a previdente senhora traz ou não na mão direita o saquinho de plástico, no qual recolherá aquela preciosidade mérdica, é algo que me dá um prazer cívico.
Ou então ralhar com a mocinha que, em lugar de usar vassoura, varre a calçada desperdiçando rios de água potável. “E que diabos é isso?” responde ela ao ser questionada. Outra continua a desperdiçar água, com uma explicação que me leva ao silêncio: “Só obedeço a meu patrão.” Também me divirto descobrindo os mais recentes buracos aparecidos na calçada. Fico pensando o que será daquele cego que, dia sim dia não, passa por mim, todo selerepe, com sua bengalinha fazendo toc, toc, toc na calçada. Vá confiando nos nossos prefeitos, vá, meu caro. Eu queria ver o Francimar testando as ruas de São Paulo, já que ele escreveu em seu precioso livro que os cegos devem, por princípio, andar sem guia outro que não seja a bengala ou o cachorro. Só se for em Carazinho ou em Porto Alegre.
E há o prazer de estar no banco.
O primeiro deles é desfrutar da fila dos privilegiados. Quem não gosta, no íntimo, no íntimo, de sentir-se alguém diferenciado? Alguém que foi especificamente lembrado pelos nossos tão esquecidos legisladores? Especialmente quando isso incomoda os não privilegiados. Como desabafou certo office-boy, na deliciosa irreverência dos jovens: “Eles que são aposentados e têm todo o tempo do mundo são atendidos antes de nós, que estamos trabalhando? Acho essa lei injusta.”
Ponto para ele. Que, entretanto, não contou com nenhum aplauso de sua grei. Ao reverso, os manos continuaram a rodar suas pastas de contas a pagar na ponta do dedo maior da mão direita, para me matarem de inveja, pois já tentei, várias vezes, na solidão de meu quarto, reproduzir aquele malabarismo, sem êxito algum. E eles continuando a falar de futebol na longa fila.
E houve o caso daquela velhinha que foi chegando, foi chegando e, quando vimos, colocou-se na ponta da fila, passando a perna em nós todos, tão gentis para com ela. Voltou-se para nós e sentenciou, apontando com a sombrinha a tabuleta pendurada sobre a cabeça da atônita caixa: “O privilégio é a idade, não é? Logo, quem tem mais idade tem mais privilégio. Eu indago se alguém aí tem mais de 83 anos de idade. Ninguém? Pois então eu sou a próxima.” Mesmo diante do silêncio de todos nós, ela tirou do bolso uma cédula de identidade, desafiando-nos: “Se alguém estiver em dúvida quanto a isso, venha consultar meus documentos.” Colocou de volta a tal cédula na bolsa e entregou à moça do caixa os documentos relativos às contas que desejava pagar. Feitos os pagamentos, passou por nós com o nariz empinado, como se fosse a rainha da Inglaterra. Esse, ao menos, foi o comentário de outra senhora, que parecia tão velha quanto, mas se recusara a participar daquele concurso de vetustez.
Na tarde de ontem, o personagem foi um senhor de nossa idade, falo pela média dos privilegiados então presentes, elegantíssimo, com chapéu na cabeça e um bigode grosso sob o nariz, com as pontas voltadas para os céus. Não havíamos dado por sua presença até que ele, voz alterada, sapecou um solene “e quer saber de uma coisa? Esse presidente da República não passa de um monoglota!”
Dezenas de olhos despejaram-se sobre o elegante senhor, que seria injusto apodar de macróbio nas circunstâncias. Um homem tão elegante dizendo algo assim em público. E em voz alta! Uma senhora perto de mim fez um ar de espanto, como se tivesse visto o próprio demo. Arreceei que ela tivesse um ataque de apoplexia, o que nos daria muito trabalho, pois, quantas daquelas pessoas ali presentes haveriam de saber o que é isso? “Monoglota?” sussurrou alguém, temendo certamente ser identificado.
Lembrei-me, como não poderia deixar de lembrar, daquela delicioso conto do nosso Guimarães Rosa, no qual um chefe de cangaço vai com toda a jagunçada à casa do professor primário local, para fazer-lhe uma só pergunta. O professor vem até a varanda da casinha e o cangaceiro, sem desapear, indaga-lhe o que quer dizer famigerado. É coisa de se ofender? Será elogio? O professor, como quem acaba de levantar-se da cama, não está entendendo nada. O jagunço então explica: constou-lhe que certa pessoa teria dito ser o justiceiro chefe de tropa ali presente um “homem famigerado”, veja o senhor. Antes de ofender-se ou de orgulhar-se com o adjetivo, ele, justo como é, precisa de saber qual o significado disso. O professor dá-lhe a explicação que qualquer dicionário lhe daria, se o ignorante, falo com todo respeito, resolvesse e pudesse consultar um desses livros que meu pai chamava de “pai dos burros”. Diante da explicação dada pelo professor, o cangaceiro consulta seus homens, indagando se todos ouviram a explicação dada pelo professor. Ante o assentimento cabeçal de todos, ele agradece a gentileza e parte para os providenciamentos que aquele sujeito merece.
Pois ali está, na fila dos privilegiados do meu banco, um senhor, com pinta de senador aposentado, deflagrando um monoglota sem que ninguém tome nenhuma providência. Onde está o gerente? Tudo que temos é um silêncio respeitoso, coisa assim de um Leonardo Boff.
Agora, mais contido, o tal senador continua a conversa com seu colega de fila, em voz mais baixa, que nós, com nossos precários dotes auditivos, não conseguimos ouvir, por mais que tentássemos.
Agora é a vez de ele ser atendido. Gentilmente ele entrega as contas e o cheque respectivo à caixa. A moçoila desmancha-se em sorrisos e conclui com um “pronto, até o próximo mês”. Ele recolhe seus recibos, leva três dedos da mão direita até a aba do chapéu, que imaginávamos fosse tirar. Nada disso. Ele apenas coloca o polegar na parte de baixo da aba e o indicador e o dedo maior na parte de cima. Faz uma leve reverência com seu corpo esbelto e se despede com um gratuito conselho à moça: “entrementes, não descure da cultura”.
Reverenciosamente todos nós nos afastamos, para dar lugar àquele elegante companheiro de fila de banco, que acabara de dar ao presidente da República o tratamento de que ele é merecedor, esse insigne monoglota. O homem marcha até a porta giratória, que o engole num átimo de segundo.
E voltamos todos ao silêncio de nossa insignificância.

17 julho 2009

Minha casa

Minha casa é de remendos,
são tremendos seus galpões,
tão incômodos seus sóis,
suas luas giram lentas.

Minha casa sem paredes,
verdes campos que se espraiam;
onde há flores, não há frutos;
onde a gente aí tem paz.

Minha casa abandonada
e desleixada ao relento.
Quem visita ali não fica:
vai e deixa seus segredos.

Dormitório da saudade,
canta o vento umas berceuses
pra ninar quem não desperta.

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O venezuelano Ignácio Velez assim transportou o poema para sua língua:

Mi casita

Es mi casa de remiendos
tan tremendos sus galpones,
tan incómodos sus soles
pues sus lunas giran lentas.

Es mi casa sin paredes,
verdes campos se desplayan;
donde hay flores y no frutos,
y la gente tiene paz.

Está ella abandonada
y así quedada al relente;
quién visita allí no queda:
sale y deja sus secretos.

Dormitorio de nostalgias,
canta el viento unas berceuses
pa’ arrullar a quién ya duerme.

Acho que o poema até ficou mais bonito.

06 julho 2009

Chaves

Sabemos todos que política é a arte de fazer dos amigos inimigos e dos inimigos amigos. Há quem goste. E se a voz do povo fosse de fato a voz de Deus ninguém contestaria certas eleições, como ocorre amiúde. As do Fidel Castro, por exemplo, praticamente sempre foram vencidas por unanimidade. Ou a do Putin, que pegou carona na eleição do outro. Como é mesmo o nome dele? Isso para não falar na primeira vitória do George W., que contou com o valioso auxílio do irmão e da Suprema Corte, como sabeis muito bem, até porque friends are for things like that, como diz o pessoal do MPB-4.
Aliás, o coleguinha Nélson Rodrigues não dizia que a unanimidade é burra? Pois como pode a voz de Deus ser sinônimo de burrice? E isso dito pelo Nelson, um temente a Deus daqueles? Jamais.
Sinto dizer-lhes, no entanto, que gosto do Chaves. Não preciso dizer que não sou homem de pautar minhas ações a partir da opinião alheia. Creio que já deixei isso muito claro ao longo de minha vida, pergunte a quem não me conhece. Isso no tempo em que ainda nem se falava muito em democracia, como hoje a entendemos, isto é, quem tem cargo público ou dinheiro usa e abusa desse poder impunemente, empregando filhos e amigos. Dizia-se que a virtude está no meio, virtus in medio, muito embora essa primeira palavra aparecesse também no nome de uma pomada que aliviava a hemorróida de minha avó, o que me deixava meio desconfiado da frase, até porque eu ainda não era forte no latim, se é que algum dia o fui. Pelo sim e pelo não, quero essa virtus longe de mim, que não estou para ser objeto de desconfiança alheia. Pelo menos assim tão cedo. O que contraria o que ficara dito lá em cima, paciência. Ubi homo ibi peccatum, como dizem os padres pedófilos em sua defesa. Pro domo sua, para continuar na mesma lenga-lenga.
Falava-se também naqueles tempos que de gustibus et coloribus non disputandur, o que, em vernáculo, ficou expresso numa pergunta: se todos gostassem do vermelho, que seria do verde? Como verde era a cor do integralismo e vermelho era a dos comunas, a frase poderia ter uma conotação política, o que não estava na intenção do romano que a havia criado, se é que foi criada por algum romano.
Melhor voltarmos ao latim. Como o Cícero teria dito, em pleno Senado romano, galerias repletas de patrícios e patricinhas, “não concordo com uma só das palavras que acabais de dizer, mas defenderei com minha vida o vosso direito de dizê-las.” Ou não foi ele? Acho que estão abusando da minha nobreza!
Já ouvi pessoas argumentarem longamente os motivos pelos quais gostavam de jiló. Ou de uísque. Ou de fumar. E o faziam e fazem com tal veemência que parecia ou parece que seus argumentos iriam fazer do seu interlocutor um jilófago inveterado, ou um fumante semelhante ao
Humphrey Bogart ou ao Albert Camus. Ainda se fosse uma dessas mesas-redondas de televisão, onde, com ar de PHs em MBA ou PhDs em TPM, não sei bem isso de siglas, jovens e menos jovens deitam falação sobre técnicas e táticas futebolísticas, vá lá. Mas tais discussões acaloradas por vezes envolvem assuntos menores como economia ou poluição ambiental, como se algum de nós que liga a TV estivesse interessado nisso. Sabemos todos que a economia é coisa muito séria para ficar nas mãos de economistas, tanto que o Joelmir não é economista e nem por isso deixa de deitar falação sobre isso. Já o filho dele, esse cuida de assunto mais importante: o futebol. Logo, melhor ouvirmos os comentários do Neto, com aquele sotaque caipira e tudo, ou Raí, ou do Júnior, ou do Carlos Alberto, ou do Luizinho, ou do Baltazar ou de quem mais as emissoras de televisão resolvam trazer de lá do assento quase etéreo aonde subiste até o recesso de nosso lar para nos ensinar que a bola é redonda e que o atacante estava, de fato, com-ple-ta-men-te impedido, que bola na mão não é o mesmo que mão na bola, que dentro da área o goleiro é o rei, que a linha da área pertence à área, além de outras tantas obviedades semelhantes. Devo, porém, reconhecer que alguns desses jornalistas esportivos por vezes nos fazem rir.
Volto, porém, ao princípio. Isso de as pessoas censurarem quem se entusiasma pelo BBB, ou pelo programa do Datena, ou pelos eloqüentes silêncios do Gabeira no Congresso é, quando menos, um atentado à democracia, pois, se a memória não me falha, está lá naquele que o Getúlio chamava carinhosamente de livrinho e que o doutor Ulisses, tempos depois, elevou à categoria de cidadã, que todos os que moram neste país têm direito a expressar sua opinião sobre todo e qualquer assunto. Ou silenciar, que também é manifestação de vontade. Fui claro? Todo e qualquer assunto, anote aí.
Eis aonde eu queria chegar: ninguém pode ser punido, nem censurado, nem sofrer qualquer restrição à sua liberdade de ir, vir, ficar, entrar, sair, ir novamente e voltar novamente tantas vezes quantas lhe der na telha e sua deambulação compulsiva exigir pelo simples fato de haver manifestado seu pensamento, sua preferência, seu gosto pessoal, essa coisa tão difícil de termos hoje em dia, quando os meios de comunicação nos despejam, explicita ou liminarmente, todo tipo de condicionamento, o que torna a nossa liberdade de escolha quase uma falésia, como diria o outro, estou até parecendo o Saramago, vejam só, logo aquele comunista, a escrever sem pontos de pausa . Ufa!
Eu quero chegar ainda mais longe: defendamos todos o nosso direito individual de ligarmos a televisão no programa que bem entendermos, sem que nossa esposa, ou nosso marido venham com argumentos os mais insustentáveis para querer, explicita ou implicitamente, nos convencer de que a opinião dele, ou dela, deve ser a que deve imperar no sagrado recesso de nosso lar, tornando letra morta o postulado da liberdade de escolha que deve presidir a vida sadia de um casal unido pelo matrimônio, dito alhures tálamo conjugal, nome que não nos anima a coisa alguma, reconheço. E meu programa é o do
Chaves, eleito recentemente o ainda preferido da maioria dos telepacientes.
Pretendi hoje render homenagem ao Chaves, aquela figura trapalhona que, quando se pensa que está indo, está vindo, sempre a causar danos aos circunstantes, pondo os que lhe são próximos em situação de constrangimento, como o magérrimo senhor Madruga, que vez ou outra recebe uma paulada no queixo ou uma latada d’água no cocuruto. Ou a vítima da vez é o Quico, aquele simpático garoto que, a esta altura, já morreu de velhice. Um ator já avô e ainda com aquelas calças curtas fingindo-se de criança, como o Roberto Bolaños, nascido em 1929, e cujo tio era juiz de menores é coisa para ser levada a sério. Esse o nome real do Chaves, aquele humorista do México, não o outro, o do ¿Por que no te callas?, dito pelo rei espanhol. Querem coisa mais pós-moderna do que isso? Isso, isso, isso, como diz ele.
Direis que não fica bem a alguém com minha cultura e meu tirocínio confessar que não perco um capítulo do Chapolim Colorado, com seus truques mais velhos e canhestros do que os que faziam o Arrelia e seu sobrinho Pimentinha lá vão anos e mais anos. Direis, mais, que em tempos do humor enlatado da televisão, um dos quais tem na logomarca, despudoradamente, nada mais nada menos do que o desenho da folha da nossa velha e sempre nova cannabis sativa, aquele cenário da série do Chapolim, digno de um Bye, Bye Brasil, chega a doer nos olhos. Tá bom, ta bom, mas não se irrite, como diria o seu alter ego.
Pensando bem, há por esse mundo de Deus figuras bem mais ridículas do que aquelas, e que, lamentavelmente, não se dão conta das ridicularias que cometem, com a agravante de nos fazerem chorar de ódio, em lugar de rir de sua canhestrice, até porque acabam se metendo na política. E quando esses líderes, alguns deles mundiais, dizem “Sigam-me os bons”, imitando o Chapolim, é para seguir mesmo, ainda que a manada toda vá parar num brejão no Iraque?
E quando tudo dá errado, certamente o Grande Líder chapliniano pós-moderno, cujo desprestígio é de tal monta que nem o candidato do seu partido o quis no mesmo palanque, dirá: “não contavam com a minha falta de astúcia”.
Melhor ver o Roberto Gómez Bolaños.

01 julho 2009

Três historinhas quase policiais

O Antonio Carlos era juiz de Direito, casado com a Bia, funcionária do fórum onde ele atuava em Vara Criminal.
Naquela tarde a audiência era relativa a um rumoroso caso de assalto a uma joalheria da cidade. Uma senhora bem vestida entrara na loja, pretextando interesse em adquirir um par de brincos e, enquanto a atendente colocava sobre o balcão os exemplares para a pretensa freguesa escolher aquele de sua predileção, três rapazes, seus comparsas, ali penetraram, dominaram as poucas funcionárias da loja e os quatro se puseram a recolher o que lhes era possível.
Ocorreu que alguém do lado de fora da loja percebeu a ação dos meliantes, como lhes alcunharia o delegado, chamou os seguranças do shopping, juntou gente na porta da loja e os três rapazes não conseguiram fugir, sendo presos logo em seguida. A mulher que havia distraído a balconista, aproveitando-se da confusão, saiu de fininho, escapando do chamado flagrante.
Era isso que a balconista explicava ao doutor Antonio Carlos, que insistia para ela especificar a atuação de cada um dos quatro réus, três deles, a saber, os rapazes, ali sentados, com o ar compungido que é útil assumir nessas ocasiões. Este fez isto, esse fez isso e aquele fez aquilo.
Nisso a Bia entra na sala e vai comunicar ao marido que havia recebido um telefonema da diretora da escolha dando conta de que o Marcelo, filho do casal, hoje casado e advogado na Capital, havia caído de um brinquedo e sofrido alguma lesão corporal, como dizem os juízes. Ela iria ausentar-se por uns instantes, para inteirar-se dos fatos, e, retornando, daria conta ao marido do sucedido.
- Ué, por que ela também não está presa? diz a balconista ao juiz. Foi essa mulher aí que eu atendi na loja e que ajudou os rapazes a escolher as jóias que eles iriam levar.
A Bia, despachadona, sem perder a classe, diz ao marido, em voz alta:
- Vai ver eu tenho uma irmã gêmea e não sei disso. Vou indagar do papai.

...ooOoo...

Ela seguia em direção à casa da irmã, onde tomariam um chá das cinco. Ou comeriam uma pizza, como ficara alternativamente combinado. Seguia pela larga avenida, de incrível pouco tráfego de veículos àquela hora, o que mais tornava curiosa a presença daquela motocicleta circulando atrás do automóvel dirigido por ela.
Tanto espaço à esquerda e ele me seguindo? Aí tem coisa! disse ela de si para consigo.
Convergiu à direita umas três quadras adiante, imaginando livrar-se do inoportuno sem deixar de seguir para a casa da irmã por aquele atalho. Olha o espelho retrovisor (haverá espelho que não seja retrovisor?) e lá está a mesma motocicleta atrás do automóvel. Ela pensa em acelerar o carro, mas logo chegará a rua em que mora a tal irmã, umas quatro quadras adiante, à esquerda. A rua é uma ladeira, em aclive, considerando o sentido do seu carro. Mal entra naquela rua, lá está a motocicleta no espelho do carro. Ela vai diminuindo a marcha, com a intenção de parar diante da casa do seu destino. A motocicleta finalmente ultrapassa o automóvel, para alívio dela, mas, em lugar de acelerar, a moto pára bruscamente bem diante da casa da irmã da nossa motorista. Assustada diante de tamanho atrevimento, ela engata a marcha-a-ré e, temerariamente, volta dois quarteirões, entra numa ruazinha e, com o coração na boca, arfando, telefona para a irmã avisando que um motociclista estava parado diante da casa dela. Que a irmã não abrisse por nada a porta da casa, diz ela com dificuldade.
- Como não?, diz a irmã. É o motoboy da pizzaria. Você vem jantar conosco ou não vem?

...ooOoo...

Ela era e, até onde me consta, ainda é negra. Sempre é bom fazer a ressalva, pois quem conheceu o Jackson Five pode perguntar-se onde foi parar aquele negrinho simpático que cantava como gente grande.
Ela estudava odontologia e tinha como sua mais chegada amiga uma colega branquela que também adorava bailes. Combinaram ir naquela noite dançar numa casa de forró do arrabalde. O irmão dela, rapaz conhecedor da vida, muito preocupado, advertiu que aquele bairro não gozava de boa fama, embora o baile fosse ser animado por um conjunto que prometia, pensassem bem no risco que estavam correndo, sabem como são essas coisas. As duas moças ponderaram os prós e os contras, argumentaram com isto e mais aquilo e lá foram, no fusquinha da moça branca, ao tal forró.
Dançaram até as tantas, esquecidas das advertências do experiente rapaz. Nada como um bate-coxa para espairecer.
Fim de festa, noite sem lua, o carro estacionado mais longe do que haviam imaginado quando lá chegaram, rua mal iluminada. As pessoas, que saíram do salão de baile aos borbotões, vão-se separando, uns tomando a direção do ponto de ônibus na avenida próxima, outros preferindo ir a pé para casa e uma pequena minoria dirigindo-se a seus automóveis.
Uma das moças nota que um mulato está parado junto ao muro, defronte a porta da casa de dança, que começa a ser fechada pelo encarregado disso.
- Vamos apertar o passo.
Notam que o tal mulato começou a caminhar na direção delas e, notando que apertaram o passo, faz o mesmo.
- Melhor correr.
E lá vão elas, mão de uma segurando a gelada mão da outra, correndo pela rua quase sem iluminação em direção ao fusquinha, naquela falta de jeito com que correm as mulheres.
O nervosismo da motorista e a velocidade maior do rapaz fazem com que ele chegue até elas antes de elas conseguirem abrir a porta do carro.
- Vocês ficaram loucas? Correrem desse jeito numa rua esburacada dessas?
Era o preocupado irmão da moça negra.