29 agosto 2009

Tuiávii no Brasil


"O Papalágui precisa fazer leis assim e precisa ter quem lhe guarde os muitos meus que tem, para que aqueles que não têm nenhum ou têm pouco meu nada lhe tirem do seu meu. De fato, enquanto há muitos pegando muitas coisas para si há também muitos que nada têm nas mãos. Nem todos sabem os segredos, os sinais misteriosos com os quais se consegue ter muitas coisas: é necessário que se tenha uma coragem especial, que nem sempre se concilia com o que chamamos honra.”

Caros irmãos e irmãs das muitas ilhas.

Falo-vos hoje de minha viagem a outro continente, talvez maior ainda do que a Europa, de que lhes falei já no outro dia, pois lá fiquei por muitas e muitas luas. Chamam aquele continente de terra das árvores que produzem brasas. Verdade que o povo dali ama tanto essas árvores de pau vermelho que tem cortado quase todas, levando para casa na forma de mobília, assoalho ou mesmo de lenha para o fogão. Ali tive a oportunidade de conhecer como eles tratam quem não cumpre o dever de respeitar o meu dos outros. Os papaláguis(1) de lá me explicaram, mas eu não entendi muita coisa, e lhes conto tudo tal como eu entendi. Talvez eu não tenha entendido direito.

Aqui, quando algum de nós comete alguma falta, algum pecado, é levado perante um dos nossos homens mais experientes, que aprecia o caso e impõe ao pecador a penitência que acha suficiente para servir de exemplo a ele e aos demais da tribo. Caso decidido. Lá no país das árvores em brasa a coisa é um pouco mais complicada, talvez porque eles sejam mais civilizados do que nós.

Vejam vocês que um pecador, lá, é levado pelos homens de roupa colorida perante um doutor da lei, que manda colocar o pecador em um lugar reservado, por luas e luas, para que ele reflita sobre o seu pecado. Passada a quarentena, o pecador geralmente confessa aquele pecado e muitos outros, muitíssimos mais. Então são ouvidas todas as pessoas que sabem alguma coisa sobre esses pecados. Depois disso, o doutor da lei escreve numa esteira de papel e eu pensei que estivesse terminado o julgamento do pecador.

Vocês vão querer saber qual foi a penitência que foi imposta ao pecador. Eu lhes digo que aquele doutor da lei ou doutora, como às vezes ocorre, não impõe penitência nenhuma. Ele apenas manda esse monte de esteiras de papel para um segundo doutor ou doutora, geralmente mocinhos, tão moços que aqui em nossa tribo ainda estariam praticando para começar a caçar e a pescar ou bordar. Lá ele ou ela já é um doutor ou uma doutora da lei, e é quem vai examinar aquilo que o primeiro doutor da lei fez. Ele ouve novamente todas aquelas pessoas e impõe uma penitência provisória ao pecador. Embora ele ou ela sejam considerados doutores da lei, parece que ninguém confia naquilo que eles fazem, pois aquelas esteiras de papel, que já são muitas, não valem quase nada e vão ser agora enviadas para um pule nuu(2) mais velho, que reexaminará tudo aquilo, pois parece que ninguém acredita naquilo que aquele doutor ou aquela doutora disseram. Se não acreditam nele ou nela, como é que eles são doutores da lei? Eu não sei lhes dizer, pois ninguém me explicou. Ou, se explicou, eu não entendi.

Vocês pensam que agora o pecador vai receber a penitência que ele merece, não é? Pois ainda não vai. Esse doutor da lei mais velho, ou doutora, que é o terceiro, consulta outros doutores da lei, pois o caso é muito difícil para ser apreciado apenas por um doutor ou uma doutora, mesmo sendo ele ou ele mais experiente do que aqueles outros de que lhes falei. Quer dizer: o doutor e a doutora da lei mais moços decidem sozinhos; já os doutores mais velhos e mais experientes devem decidir em conjunto. Quem entende Isso? Eu não entendo. Embora todos eles sejam pule nuu, é preciso que as esteiras sejam apresentadas a todos eles, mesmo que isso consuma muitas e muitas luas.

Agora sim, vocês estão supondo, esse último pule nuu vai cuidar da penitência a ser imposta ao pecador. Pois digo que ainda não. Não se esqueçam de que eles são civilizados, e civilizado é papalágui mais cuidadoso do que os da tribo de Tiavéa. Nós somos ignorantes e queremos resolver tudo logo, bem depressa, para podermos voltar à nossa caça e nossa pesca. Nós só pensamos nisso. Eles, que são civilizados, pensam em outras coisas.

É que os pule nuus mais experientes às vezes descobrem que o doutorzinho da lei não ouviu as pessoas que sabiam do caso com a atenção devida, anulam tudo e mandam refazer aquilo tudo. O monte de esteiras de papel volta para a primeira oca da justiça e as pessoas vão ser novamente ouvidas pelo doutor menos experiente, que nem por isso é punido pelos doutores mais velhos. É verdade que, com o passar do tempo, os fatos vão escapando pelos ouvidos da cabeça das pessoas, pois o espaço ali dentro é muito pequeno. Então aquilo que havia sido dito lá naquela primeira vez, bem longe no tempo, não combina direito com aquilo que está sendo dito agora.

Vocês não devem desconhecer que essas pessoas que conhecem os fatos devem deixar aquilo que estão fazendo e ir à toca da justiça mais uma, duas, ou três vezes, pois um dia o pecador não foi trazido, no outro faltou esteira para nelas se escrever, na outra o pule nuu disse que estava com dor de barriga e ficou na rede ou nadando no grande lago, e, assim, as pessoas voltam à casa da justiça muitas e muitas vezes, o que elas fazem com muito prazer, pois sabem que são importantes. Mesmo não recebendo nada para ir lá, elas, mesmo assim, sempre voltam à casa da justiça. Se elas não fossem pessoas importantes, que fazem tudo isso com prejuízo para elas e seus familiares, não teriam sido chamadas para ir à oca da justiça. Entenderam?

Antes de essas pessoas serem ouvidas, elas ficam de pé nos corredores da oca da justiça, sem comer nem beber nada durante horas, que é para que as idéias não se embaralhem. Algumas sentam-se de cócoras, o que não parece muito certo, pois sempre vem alguém fantasiado mandando que ele ou ela se levante já dali, o que ele ou ela obedece. Enquanto isso, na parede do corredor da oca os dois dedos da máquina de contar o tempo correm, correm e as pessoas ali vagando, nervosas como leão enjaulado, sem que ninguém se lembre delas, parece, pensando nas crianças que ficaram lá na ocara deles. Depois, elas são levadas para um quarto que sobe e desce, deslizam para fora da cabana da justiça, levando na mão uma pequena esteira, onde está dito que elas devem voltar dali tantas luas mais adiante, para serem ouvidas. E elas trazem a cara de descontentes.

Depois que todas essas pessoas, que é como eles chamam os papaláguis, chegam a ser ouvidas, o que exige muitas e muitas luas, é que o caso vai ser decidido pelo pule nuu. Eu perguntei a um entendido porque tinha de ser tudo repetido e ele me explicou que o primeiro doutor da lei não deixa o pecador consultar um conselheiro. O que o primeiro doutor da lei fez tem de ser confirmado na presença do conselheiro do pecador do pule nuu. Se o segundo doutor da lei é que deixa o pecador consultar o seu conselheiro, como é que eu não vi o conselheiro junto do pecador quando este foi ouvido pelo segundo doutor da lei? É que nessa hora o conselheiro não poderia intervir, o que me parece que estava sendo modificado, como eles me disserem, mas o nome dele consta da esteira. E se ele não pode intervir, qual a diferença entre o interrogatório feito perante o primeiro doutor da lei daquele interrogatório feito perante o segundo doutor da lei? Eles não sabiam me explicar. Parece que um é mais doutor do que o outro.

Mas eu fiquei sabendo que esse conselheiro deve estar presente quando o segundo doutor da lei ouve o proprietário do meu que foi levado pelo pecador. E também quando as pessoas que viram o cometimento do pecado vão ser ouvidas. Eu quis conhecer quem era o conselheiro que estava ali naquele momento, mas o papalágui que toma conta da porta da oca da justiça me disse que ele ainda não havia chegado, ele estava em outra oca da justiça, distante dali e que mais tarde a esteira seria mostrada a ele e ele colocaria seu nome ali na esteira, como se tivesse estado presente, pois confia no pule nuu. Ele confia muito no trabalho que foi feito na ausência dele. Ou seja, ele quer dizer que ele é dispensável.

Então terminou tudo? vocês me perguntarão. O pecador agora irá para a falé pui pui(3)? Pois eu lhes digo que não. Ainda não, me disseram eles.

Quando me disseram que tudo aquilo seria ainda examinado por um pule nuu mais experiente, lá mais longe, eu perguntei: então agora acabou? Ainda não. Aquele pule nuu experiente mandará a esteira de papel para um outro pule nuu, pois ele é ainda mais experiente do que aquele de antes. Agora terminou? Depende: se eles não estiverem de acordo, ainda será ouvido um segundo pule nuu bem mais velho, e um terceiro, e um quarto. E um quinto.

Então agora terminou? Há ainda outra oca da justiça, mais longe ainda, do outro lado da grande praça, onde as esteiras costumam ser envidas e tudo aquilo recomeça, pois esses são pule nuu ainda mais velhos e mais experientes.

Eu ia perguntar se aquilo tudo terá um fim algum dia e se o pecador ainda estará vivo quando tiver de ir para a falé pui pui, mas o meu orientador perdeu a paciência comigo, colocou-me de volta na grande gaivota de prata que brilha no azul lá de cima e me remeteu de volta para Samoa. “Selvagem estúpido”, foi como ele me saudou lá do alto.

Acho que sou mesmo, pois eles são civilizados e sabem o que fazem e o que dizem.



[i] (1) Papaláguii = Homem branco

[ii] (2) Pule nuu = Homem que decide

[iii] (3)Fale pui pui = Prisão

19 agosto 2009

Dez alentos

Meu amigo, vô contá:
sô tão véio que nem ligo.
Naquele tempo de lá -
isso eu falo pro amigo -
Lenine não serestava.
Diz que era guerilhero:
os povo ele agitava
sem viola nem pandêro.
Aí veio o tar Girberto
pra dirigi a curtura
- um cabra munto do esperto
foi preso na ditadura -
e deu no que deu, seu Zé:
só viola e cantoria.
Caetano falava grosso,
enfrentando os militar,
censura em riba do moço,
foi pra Londres descansar.
Veio inté um tar Lenine,
pra aumentá a cantoria,
tomara não desafine.
Valei-me Santa Maria!
Cadê a revolução
pra combatê a robalhera?
Onde botá o paredão
pra pô fim na bandalhera?
Num inxiste, meu amigo.
É avião que num voa,
inté parece castigo.
É gente mais di qui atoa:
fais gesto que nem te digo.
É Presidente blindado,
é ministro que num manda,
quar maestro deslocado
tocando frauta na banda.
É castelo no sertão,
que nem paga IPTU,
pois sendo a muié prefeita,
ele trata ela de “tu”.
Inté o Chico, coitado,
que pediu “diretas-já!”
que era todo animado
falano de carnavá,
parece que largô tudo,
nem música mais compõe.
Parece que ficô mudo.
É coisa que se supõe,
de tanto que anda calado.
Cara de desinfeliz,
declarou-se auto-exilado
e foi-se embora pra Paris.

11 agosto 2009

Justiça


Há uma réstia de esperança em cada fato;
há um pouco de verdade no que é falso,
uma sombra que persegue o insensato.
Há um justo conduzido ao cadafalso.

Há uma causa que se perde injustamente:
uma chance de acertar se desperdiça.
Há uma lágrima no rosto do inocente;
uma luz vacila e morre na injustiça.

Há um justo condenando um inocente.
Há uma sombra de esperança em cada fato;
uma réstia de verdade na injustiça;
uma lágrima no rosto do que é falso.

Há uma chance de acertar injustamente,
uma luz a perseguir o insensato.
Há um justo, que vacila, e desperdiça
uma causa, que conduz ao cadafalso.

07 agosto 2009

Verdades e mentiras

Que é a verdade?
Dentre outras definições possíveis, gosto desta: é a conformidade perfeita entre um fato ou objeto e sua representação mental. Os antigos diziam, por isso, que nihil est in intellectu quod non prius in sensibus. Em linguagem de vivos: para que algo chegue à nossa mente, deve antes passar pelos nossos sentidos.
É aí que a porca torce o rabo, pois nossos sentidos nem sempre são dignos de muita confiança, a começar pela visão. Cada leitor tem casos e mais casos para contar sobre as inúmeras vezes em que “tomou a nuvem por Juno”, como diziam meus avós. A bolorenta frase refere-se ao fato de as nuvens formarem figuras, que nossa imaginação vai batizando. Aquilo que para uns é um coelho, para outros talvez seja um canguru. E quando chamamos um terceiro para desempatar, a nuvem já virou outra coisa.
Talvez tenha sido a partir de uma experiência dessas que o psicanalista suíço Hermann Rorschach desenvolveu seus estudos no sentido de estabelecer a relação entre imagens captadas por nossos olhos e o significado psicológico da denominação que damos a elas. Suas tábuas, com manchas coloridas e em preto-e-branco têm sido objeto de estudo e de crítica, até porque a morte precoce do suíço, antes dos 40 anos, não lhe permitiu, certamente, desenvolver seu trabalho.
As pessoas privadas de visão dizem que, na ausência dela, os demais sentidos ficam mais aguçados. Já falei sobre isso e não preciso voltar ao tema.
O filme “Dúvida”, uma peça de teatro filmada e candidato ao Oscar especialmente pela interpretação do quarteto central de atores, coisa rara de acontecer, trabalha esse tema: pode-se chegar à verdade por meio da mentira?
É curioso como a mentira é contagiante. Recentemente, uma brasileira que vive no Exterior, declarou-se vítima de maus tratos cometidos por xenófobos. O nosso presidente da República, que não prima pela continência verbal, saiu a campo para defender a pretensa vítima. Nosso ministro das Relações Exteriores, homem sabidamente escolado, caiu no conto do vigário e extrapolou em críticas inadequadas a quem ocupa tal cargo. Curiosamente, ninguém por aqui se preocupou com alguns aspectos bizarros da coisa. Em primeiro lugar, a agressão se teria passado em local público, em pleno dia, não tendo sido visto por ninguém. Em segundo lugar, os riscos produzidos com estilete no corpo da jovem (todos eles na parte dianteira do corpo, coisa suspeitíssima) eram todos superficiais, sugerindo extrema calma por parte do seu autor. Por fim, quem se dispusesse a virar a foto de cabeça para baixo notaria que a letra “S” está de cabeça para baixo em ambas as pernas, o que sugere auto-mutilação. Por que nenhum de nós notou nada disso? Talvez porque temos a tendência de ver o que queremos ver.