27 setembro 2009

Bagatelas


“Afastado desde 2005, quando determinou a soltura de 50 presos que cumpriam pena ilegalmente em delegacias superlotadas na comarca de Contagem (MG), o juiz Livingsthon José Machado resolveu abandonar a magistratura.”

(Dos jornais))

É de primeiras linhas que societas mater rixarum. O Velho Testamento não exclui dessa regra nem a sociedade familiar, como se vê da relação conflituosa entre Abel e Caim (cf. Gênesis, 4,8) ou Isaú e Jacó (cf. Gênesis 25, 31-33). Não foi por outro motivo que Moisés (1250-1180 a.C.) invocou a autoridade divina para impor a seus comandados regras nas quais se buscava a paz social (cf. Êxodo 34, 28), repetindo, aliás, o que fizera Hammurabi (1792-1750 a.C.) alguns séculos antes.

Invocam-se aqui esses precedentes religiosos, como um arqueólogo que, com delicada vassourinha na mão, tenta desenterrar vestígios de um tempo longínquo, para falar de algo tão paleolítico quanto o que se costuma estudar sob o rótulo de Criminologia ou, mais pragmaticamente, Direito Penal.

É também de primeiras linhas que as tais sociedades humanas, onde o quod plerumque accidit, como dito acima, é a existência de desavenças, estabelecem regras de conduta, a cuja desobediência corresponde, em lugar do desacreditado fogo do inferno, algum sucedâneo que lhe faça as vezes. Lá e cá a finalidade é a mesma: contribuir para que a convivência das pessoas seja tão pacífica quanto possível no grupamento a que, pelos mais diversos motivos, voluntários ou não, elas pertençam.

Como regra geral, parte-se do princípio segundo o qual o bem supremo do ser humano, depois da vida, é a liberdade. Ameaçar o candidato a infrator (ou seja, qualquer um de nós) com o encerramento precoce de sua vida ou com a privação da liberdade parece algo suficiente para dissuadir-nos dessa pulsão, quando ela se revele. Até chegamos a pedir ao Deus Pai que “não nos deixe cair em tentação”, tão forte é nossa vocação para o pecado. E essa identidade entre as categorias religiosas e as criminológicas pode ser confirmada não apenas pela vestimenta sacerdotal dos julgadores como pela escolha de uma deusa para simbolizar essa atividade estatal. Isso para não falarmos do nome escolhido para designar o local onde o pecador permanecerá quando for “excomungado” (isto é, afastado dos seus companheiros de comunidade): penitenciária. Se a penitência é a pena imposta pelo confessor ao penitente para remissão do seu pecado, como diz Caldas Aulete, é útil recordar que ela supõe o arrependimento, segundo o mesmo dicionarista. Aliás, muitos teólogos consideram sinônimas as palavras arrependimento (do pecado cometido) e penitência, sendo o cumprimento da pena imposta pelo confessor somente a expressão externa desse arrependimento.

Curiosamente, ao mesmo tempo em que se observa a laicizacão crescente da sociedade (para dizer o menos), em 1984 introduziu-se, no Código Penal brasileiro, como fator minorante da pena, mais um elemento religioso: a confissão. Valha registrar que a doutrina tem entendido que isso nada tem a ver com arrependimento, que continua restrito aos arcana Dei. Menos mal.

Digno de registrar que a relação crime/pena só impropriamente pode ser equiparada à relação pecado/penitência. É que o confessor não pode agir ex officio. Para impor a pena penitencial ele necessita da iniciativa do pecador, ao passo que no mundo civil, o criminoso procurar a autoridade para confessar a prática do crime não só é coisa rara como deve ser recebida com reservas, como se colhe do artigo 341 do Código Penal e do artigo 197 do Código de Processo. De outra parte, ao reverso do que supõem os leigos, não há qualquer proporcionalidade entre a gravidade do pecado e o tipo de penitência a ser imposta ao pecador, coisa diversa do que se dá na relação crime/pena.

Se o arrependimento do criminoso, quando não seja legalmente eficaz, é irrelevante no campo da repressão penal e se é de presumir que o legislador, ao estabelecer os parâmetros da pena, levou em conta a gravidade da infração, qual o fundamento ético do chamado “regime progressivo” no cumprimento da pena? Que se esconde sob o rótulo de “bom comportamento”? O leitor certamente falará em “humanização da pena”, “ressocialização do condenado” e até, se tiver pendores poéticos, numa tal “ponte de ouro”, por intermédio da qual o excomungado retorna ao convívio dos seus pares, onde recomeçará nova vida, dedicada ao trabalho honesto e ao respeito ao próximo, mercê do apoio ali recebido, proveniente, principalmente, dos “homens de bem”, como nos julgamos nós outros, situados no alto escalão social. Alguém mais pragmático (ou mais cínico) talvez diga que o abatimento no prazo de encarceramento, tanto quanto o modo mecânico como são aplicadas penas ditas alternativas, tem o claro escopo de impedir que as prisões se transformem (quando já não o são) em depósito de gente. Supõe-se que, se os juízes criminais, nas poucas horas de lazer de que dispõem, deixassem de lado os teóricos do Direito e lessem o livro de Dráuzio Varela, que levou à demolição do presídio famoso, ou o noticiário jornalístico diário, que nos dá conta de pecados e mais pecados injustificáveis, impuníveis e inarrependíveis atribuídos a autoridades pertencentes aos três Poderes da República, pensariam duas vezes antes de mandar para o purgatório aqueles pobres diabos que lá estão. Vã esperança! A isonomia ainda é mero princípio constitucional “carente de regulamentação”.

Quem é o juiz criminal? Ou, melhor: como deve ser o juiz criminal? É (rectius: deveria ser), antes e acima de tudo, um cidadão inserido em um dado momento histórico. Parafraseando Robert G. McClos­key, para muita gente, quando um juiz enverga a toga, ele deixa de ter ideias próprias e preconceitos, pautando-se exclusivamente pelo que se contém na lei. Ou, dito de outro modo: a lei seria um disco fonográfico e os juízes meros fonógrafos que reproduziriam fielmente o que havia sido gravado. Essa comparação está em seu The American Supreme Court, ao abordar a inafastável ideologia dos juízes.

Poderíamos citar nosso Ranulfo de Mello Freire: a lição dos doutrinadores serve para levar o juiz aonde ele já chegou por suas próprias pernas. A pergunta que se impõe então é esta: mas de que juiz estamos falando?

Quando Alberto Silva Franco, nos anos 80, proferiu os votos pioneiros no sentido da atipicidade das condutas aparentemente danosas, mas sem relevante potencialidade para justificar a imposição de pena, ditos “crimes de bagatela”, não faltou quem censurasse, por ignorância ou má-fé, isso que os entendidos chamam de “ativismo judicial”. Que é isso? “Judicial activism is what the other guy does that you dont like” é a literal observação de Joel Grossman, citado por Lawrence Baum em seu conceituado The Supreme Court. É claro que tal boutade ironiza os críticos do ativismo e não o próprio ativismo.

Já dissemos alhures, ao aludirmos ao papel político da Suprema Corte norte-americana, que “no que tange aos direitos fundamentais, a Suprema Corte nem sempre apresentou um entendimento uniforme, não sendo incomum que se reconhecesse aos Estados o direito de restringir o exercício deles, no interesse da sociedade, ainda que a Corte sempre se mostrasse dividida quanto à possibilidade disso. Surgiram assim duas correntes de entendimento, que os autores denominam interpretivism e noninterpretivism. Segundo a primeira corrente, os direitos fundamentais a que incumbe à Corte zelar são apenas e tão somente aqueles que se encontram previstos expressamente na Constituição Federal (aí incluído o Bill of Rights). Uma subdivisão dessa corrente admite, quando muito, que se lance mão da história da Carta para eventualmente trazer ao caso concreto o pensamento dos seus redatores. A outra corrente, mais liberal, aceita que “constitutional principles and norms can be found outside of the constitutional document”.

Como é isso no Brasil?

Mandar para a prisão quem não tem condição de pagar quem lhe dê uma assistência jurídica digna de ser chamada de ampla, como exige o catálogo constitucional que diz com o due process of law, em escandaloso contraponto à situação de quem tem capacidade econômica para apresentar dezenas e dezenas de recursos, com a óbvia finalidade de impedir o trânsito em julgado da decisão condenatória, valendo-se da discutível amplitude dada ao princípio da presunção de inocência, só não sensibiliza os insensíveis, dada a óbvia quebra do também constitucional princípio da isonomia. Uma lata de ervilha aqui, uma barra de chocolate ali, um pacote de margarina acolá já não justificaram que alguns juízes, em nome certamente de alguma cinematográfica “tolerância zero” (Law & Order não é um seriado exibido pela nossa televisão?), mantivessem na prisão “negros ou quase-negros de tão pobres”, para citarmos Caetano Veloso?

Não há de ser por outro motivo que nossa Suprema Corte vem afirmando que “verificada a objetiva insignificância jurídica do ato tido por delituoso, é de ser extinto o processo da ação penal, por atipicidade do comportamento e conseqüente inexistência de justa causa”, como disse o ministro Cezar Peluso, relator do Habeas Corpus n° 88393.

A ministra Ellen Gracie traçou os contornos da bagatela criminal: “O princípio da insignificância está intimamente rela­cio­nado ao bem jurídico penalmente tutelado no contexto da concepção material do delito. Se não houver proporção entre o fato delituoso e a mínima lesão ao bem jurídico, a conduta deve ser considerada atípica, por se tratar de dano mínimo, pequeníssimo. O critério, em relação aos crimes contra o patrimônio, não pode ser apenas o valor subtraído (ou pretendido à subtração) como parâmetro para aplicação do princípio da insignificância. Consoante o critério da tipicidade material (e não apenas formal), excluem-se os fatos e comportamentos reconhecidos como de bagatela, nos quais tem perfeita aplicação o princípio da insignificância. O critério da tipicidade material deverá levar em consideração a importância do bem jurídico possivelmente atingido no caso concreto.” (Habeas Corpus n° 92531)

Nem o rigoroso ministro Joaquim Barbosa rejeita tal princípio, adotando-o até mesmo quando não foi invocado: “Não se admite Recurso Extraordinário em que a questão constitucional cuja ofensa se alega não tenha sido debatida no acórdão recorrido e nem tenha sido objeto de Embargos de Declaração no momento oportuno. Princípio da insignificância reconhecido pelo Tribunal de origem, em razão da pouca expressão econômica do valor dos tributos iludidos, mas não aplicado ao caso em exame porque o réu, ora apelante, possuía registro de antecedentes criminais. Para a incidência do princípio da insignificância só devem ser considerados aspectos objetivos da infração praticada. Reconhecer a existência de bagatela no fato praticado significa dizer que o fato não tem re­levância para o Direito Penal. Circunstâncias de ordem subjetiva, como a existência de registro de antecedentes criminais, não podem obstar ao julgador a aplicação do instituto.” Caso, pois, era de “concessão de habeas corpus, de ofício, para reconhecer a atipicidade do fato narrado na denúncia, cassar o decreto condenatório expedido pelo Tribunal Regional Federal e determinar o trancamento da ação penal existente contra o recorrente.” (Recurso Extraordinário n° 514531)

Não clama aos céus que alguém acusado da prática de fato atípico tenha de chegar à Suprema Corte para recuperar a liberdade ou sua condição de primário? Responde o ministro Cezar Peluso, no julgado já referido: “Ação penal. Suspensão condicional do processo. Inadmissibilidade. Ação penal destituída de justa causa. Conduta atípica. Aplicação do princípio da insignificância. Trancamento da ação em habeas corpus. Não se cogita de suspensão condicional do processo, quando, à vista da atipicidade da conduta, a denúncia já devia ter sido rejeitada.”

Se a denúncia deveria ter sido rejeitada, é de concluir que o juiz descumpriu seu dever. E que acontece a um juiz que descumpre seus deveres?

Recentemente, ao conceder o habeas corpus que pôs fim a um abuso inominável, depois de dizer que “parece insofismável que a Promotora de Justiça, com o beneplácito da Juíza de origem, transbordou, e em muito, suas atribuições”, registrou o ilustre relator: Vilipendiou-se, sem qualquer necessidade legal, atos e manifestações profissionais de advogados, como o são, ressalte-se, os levantamentos judiciais embasados em mandato externando a cláusula ad judicia, surrupiando a eles, convenha-se, a inviolabilidade preconizada na Lei Maior do País (cf. artigo 133 da CF)”.

Atribuindo a autoridades públicas ações abrangidas pelos verbos vilipen­diar e surrupiar, quais as providências que tomou a E. Turma julgadora com vistas a eventual punição dos responsáveis por isso? Nenhuma, pois “quanto à sugestão de remessa de cópias aos Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público, é de se ter presente que os pequenos erros, os diminutos equívocos ou deslizes profissionais mínimos, como se queira chamá-los, sempre estão à volta do ser humano, em especial daquele que tem a atribuição de investigar ou de decidir.” (TJSP HC 1.011.561-3/8-000).

Um juiz vilipendiar e surrupiar é coisa de somenos importância, nonada, bagatela.

14 setembro 2009

Ontem e hoje


A excelente jornalista Eliane Catanhêde, que não abre mão do chapeuzinho, mesmo não havendo sol e nestes tempos de rebeldia ortográfica (que raio de acordo é esse que só o Brasil assinou e o governo federal não reconhece?), em edição recente da Folha de S.Paulo, faz um oportuno comentário sobre as verbas destinadas aos luxos submarínicos de nossa Marinha de Guerra, aos caças supersônicos que ora provirão da França, ora da Suécia e ora dos EUA, e os minguados reais destinados aos pés-de-poeira, que são aqueles que, no dizer de um especialista, resolvem a parada na hora do aperto. Ou da guerra.

Quais as reivindicações do Exército? “Não temos comida para todo mundo” afirma um respeitável oficial. Por força disso, segundo aquela arguta jornalista, “soldados e oficiais vão praticamente repetir as jornadas semanais do Congresso. Não vão mais trabalhar nem na manhã de segunda, nem na tarde de sexta-feira. Para fazer economia”.

Tenho algo a dizer sobre isso.

Quando iniciei a prestação do serviço militar já era funcionário público estadual (por concurso!) e havia acabado de ingressar na Faculdade do largo. Como os sobreviventes faremos jubileu de ouro no próximo ano, faça aí as contas para saber de quando estou falando, que estou sem a calculadora à mão neste momento. Fui designado para servir no Batalhão de Saúde, ali no Cambuci, tendo ao lado o também universitário Kamel Abude, dentre outros que, por distração ou safadeza, deixaram passar in albis o prazo para o exame do C.P.O.R.

Graças a meus nunca negados dotes datilográficos, passei a dedicar a agilidade dos meus dedos à Companhia de Comando, centro burocrático de um batalhão, como sabeis, assessorando o sargento Laureano, que, a bem da verdade, me expulsava periodicamente da sala sob um argumento irrespondível: “Vá com esse teu Direito Romano estudar em algum canto do quartel”. Graças a essa simpática figura e graças ao meu hollerith do Departamento de Águas e Esgotos, que me assegurava um soldo muito maior do que os demais pés-de-poeira, não posso queixar-me daqueles 10 meses e 10 dias em que, tal como o George W., servi a pátria com denodo, seja lá o que for isso.

O comandante era o Cel. Cavalcanti de Albuquerque, que, como toda a oficialidade, estava mais para a Medicina do que para a guerra. Vez em quando ele se sentava a meu lado e tentava convencer-me a fazer carreira militar, pois via em mim um futuro auditor militar. Eu não dizia nem sim nem não, mas o fato é que talvez muito revolucionário do pós 64 passou por maus momentos porque até então não me passara pela jovem cabeça ter como atividade profissional julgar a conduta alheia. Assim é a vida.

Como uma de minhas atribuições era preparar ofícios e relatórios, lá iam para as esferas superiores as prestações de contas das inúmeras marchas e caminhadas que, segundo quem rascunhava aquilo, nós havíamos feito no mês passado. Também eram comunicados os exercícios de tiro que a tropa realizava de tempos em tempos.

Certa manhã, baixa no quartel uma equipe da P.E., que se põe a recolher Pedros e Paulos, levando-os sei lá para onde, afim de esclarecerem isto e mais aquilo relacionado com os tais relatórios.

A soldadesca nunca soubemos o que aconteceu com os detidos, como é óbvio. Eu, de mim, chegado o termo final da convocação, dei baixa “apto a terceiro sargento”, como constou do pergaminho que me foi então entregue, sem ter jamais empunhado um revólver, um fuzil, um mosquetão ou mesmo um reles estilingue.

Quanto às marchas, havia lá um soldado que solava um violão que nem gente grande. Graças a ele, tínhamos não só marchas, como sambas e boleros.

10 setembro 2009

Um novo astro

Eu deveria começar esta crônica citando um desses ditos populares, tal como quem sai aos seus não degenera. Ou então filho de peixe nasce nadando. Aí apareceria um desses estraga-prazeres para contar a história da coruja que, para que o gavião, que ela havia tirado de uma situação embaraçosa e queria mostrar-se grato a ela, não lhe comesse as corujinhas filhas, orientou a rapinácea ave: “Meus filhos são os filhotes mais lindos da floresta. Se quer retribuir o favor, poupe-os”. O que não impediu que o aparentemente ingrato gavião devorasse a ninhada corujal toda, como haveria ele de conhecer essas psicologias psitáceas? Como quer que seja, sempre nos restou a expressão mãe-coruja, designativa dessa incapacidade materna de olhar com olhos neutros sua ninhada. Coisa, aliás, que também se aplica a certas avós.

Ou diria aquele chato, todo despeitado, que quem conta um conto aumenta um ponto.

Pensei, pensei e resolvi não colocar qualquer nariz de cera, entrando diretamente no assunto: hoje falarei do Felipe.

Quando nasceu, coisa aí de dois anos e meio, o garoto já prenunciava novidades. Não chorava em si bemol, como é comum nessa espécie de filhote, mas em dó maior. Fosse por ele, nem haveria necessidade de ginecologista, obstetra, parteira, pediatra e nutricionista. Ele mesmo iria à cozinha da maternidade e com o dedo indicador direito apontaria aquilo que queria comer e beber, depois de ter nascido com as próprias pernas e os próprios braços, auto-suficiente como ele só, e ido da sala de parto ao apartamento da maternidade por si mesmo, só não apertando o botão do elevador porque, em razão da imprevidência dos adultos, estavam tais botões muito acima de sua cabecinha. Mas certamente teria tentado apertá-los, como atestariam os vários pulos presenciados por uma ou duas enfermeiras, a demonstrarem essa sua disposição, falo dele, e sua auto-suficiência. Tudo narrado pela avó paterna.

Pais modernos, metidos a intelectuais, lá vai o Felipe para o berçário da esquina, sendo então levado à sala onde pessoas ainda não auto-movimentáveis ficam o dia todo deitadas, a olhar o teto e a chupar chupeta, quando não o polegar. Ao passar por outra sala, onde crianças se divertiam estapeando-se mutuamente, o Felipe não deixou por menos: é aqui que eu quero ficar. Não disse isso em linguagem audível, mas as mocinhas da escola infantil precisariam ser sumamente estultas para não deduzirem isso do berreiro que ele aprontou, só abortável quando ele era posto junto das crianças maiores. “Mas elas sabem andar, ao passo que você só engatinha!” exclamou uma delas. Não seja por isso. Ele levantou-se sobre as duas pernas e, caindo e levantando-se, passou a acompanhar os marmanjos, inúmeros meses mais velhos do que ele.

E vieram as descobertas que lhe iam saciando a curiosidade. “Que gosto terá a carne de gente?” indagou-se ele. Só experimentando, respondeu-se. E sapecou uma mordida, com os dois solitários dentes superiores e outros tantos inferiores, no braço de um colega que, contrariado por haver sido escolhido sem prévia consulta, se é que há consulta a posteriori, para aquela utilíssima experiência, põe-se a berrar, mostrando-se precocemente inimigo do progresso científico. Foi o que constou da cartinha que o futuro cientista levou para casa no fim do expediente escolar.

Ciente de que os dias do nosso planeta estão contados, lá vai o Felipe explicando a esta plantinha os esforços que os adultos estão a fazer para impedir a chamada hecatombe, consolando aquela outra porque sua florzinha da esquerda não tem mais hoje o vigor que tinha ontem, ou lamentando que aquela folha amarelecida, que o vento destacou do talo, não possa ser colada a ele, por mais que isso seja por ele tentado. E com cada uma vai conversando, a explicar que zuzuzuba isto, calafita aquilo, gnosminuci algo mais. E que elas, pela atenção mostrada, estão todas a entender. E até lhe pedem algo para beber, o que exige que o ecologista pediátrico vá caçar alguém que lhe encha o baldezinho, que, devidamente provido de água, ele arrasta de cá para lá. E põe-se a distribuir o precioso líquido, valendo-se de uma colherinha de plástico, o que faz irmãmente, um pouco na própria roupa, outro tanto no chão e o sobejo nas já angustiadas plantas.

E se estou com um belo chaveiro que tem um patinho de borracha amarelo na ponta, com um botãozinho que, devidamente premido, faz quac, quac, além de lançar uns raios azuis pela boquinha, lá vem o Felipe e decreta que aquilo deve ser desapropriado, mercê de um decreto expropriatório com apenas dois artigos: Artigo primeiro: É meu; Artigo segundo: Revogam-se as disposições em contrário.

E lá vai ele, todo bamboleante, imitando meu expropriado pato, que ele mostra a cada flor, apertando com destreza o tal botãozinho na cara de cada uma delas.

Se depender da avó paterna, cada enxadada uma minhoca. Explico: se vamos ao shopping ou à feira, uma blusinha de marinheiro ou uma fruta madura são a cara do Felipe. Isso quando não é um pianinho, mais colorido do que a roupa do seu colega Elton John. O que poderá gerar nele um consumismo desenfreado vendo nela uma provedora eterna. Ou um ataque de profunda decepção quando a avó algum dia vá visitá-lo com as mãos abanando, como lhe adverte a ela o sensatíssimo marido, ocasião em que ele, o Felipe, lhe mostrará a ela todo o seu desencanto abrindo as mãos e os braços e exclamando um solene “Cabô”. Sem êxito, reconheço, minhas advertências.

E já que falei no tal pianinho, diga-me lá: qual foi a reação de teu filhinho, de tua filhinha, de teu neto, de tua neta, ou da criancinha que fosse a quem algum dia deste um pianinho desses de presente? Se era uma criança normal, ela fechou a mão direita, deixou o indicador de fora e se pôs a agredir, com aquele solteiro dedo, o teclado, aquele espaço sagrado que o Paul McCartney comparou à harmonia que deve imperar entre os habitantes do planeta, sempre com o mesmo plim. E o Felipe? Não fosse ele neto de quem é, sentou-se diante do instrumento, abriu ambas as mãos e despejou ali, delicadamente, nada menos do que os dez dedos, num acorde que certamente teria despertado palmas do Arrigo Barnabé.

Não satisfeito, pôs-se o novel tecladista a repetir o acorde, ora mais à direita, ora mais à esquerda, marcando o compasso com o balançar da cabeça para este e para aquele lado, metrônomo humano sem a menor dúvida. Não bastasse isso, fechou seus belos olhos azuis, para que, como nos ensinam certos cantores, a visão das coisas materiais não lhe toldasse a inspiração interpretativa.

É claro que você não acredita em nada disso, mas no dia em que isso aparecer momentaneamente no Fantástico ou no YouTube, ad perpetuam rei memoriam, como diz o pai do infante a seus alunos, com que cara você ficará?

Eu poderia falar das curvas que ele faz com seu possante veículo, mas deixa isso prá lá. Até pretendia relatar agora o dia em que o José Francisco levou o filho à Faculdade de Direito, onde o pai leciona Direito Civil, e o rebento mostrou o propósito de dar uma aula sobre usucapião extraordinário, a julgar pela página do Código Civil que o garoto escolheu ao abrir aquele livrão, mas, diante de tua cara de descrédito, acho melhor parar por aqui. Eu poderia invocar mais uma vez o testemunho da avó paterna, mas você certamente contraditaria aquele testemunho e eu e ela não estamos aqui para sermos julgados. O futuro dirá quem de nós tem razão.