21 agosto 2012

O Assalto


"A humanidade tem medo da morte, mas incertamente."

Bernardo Soares
(nascido Fernando Pessoa)

E se eu lhe disser que era uma ruazinha muito estreita, com casinhas antigas, pintadas de verde, de rosa, de amarelo? Pintura ainda mais antiga, já desbotando? Casas geminadas, com janelas fronteiras junto à calçada, de tal sorte que os passantes adquiriam certa familiaridade com as moradoras, o dia todo pendurados na janela, peitos apoiados nos braços cruzados, olhando para cima e para baixo. Pois, além de estreita, a ruazinha era uma ladeira. Cá de baixo a impressão era que as casas se juntariam, frente com frente, antes de subirmos aquele aclive todo. Um ou outro sobrado quebrava a monotonia daquela geminação que não terminava nunca. Pintura de Volpi? Talvez.

E se, além disso tudo, eu lhe disser que naquela ruazinha insignificante havia um banco? Não falo desses bancos de praça pública, mas de um autêntico estabelecimento bancário. Pois havia. Dirá você que era uma agenciazinha, perdida ali naquele ermo para satisfazer algum político local. E eu lhe direi que era uma agência com um razoável movimento, que provinha especialmente da fábrica de brinquedos de plástico que havia no bairro. Sim, porque havia, na rua paralela, uma enorme fábrica, que praticamente empregava a cidadezinha toda. Via-se da ruazinha a chaminé, resfolegando aquela fumaça acinzentada lá pelas quatro horas da tarde. Havia horário certo para isso, que os moradores iriam à sala do Promotor, se fumo rolasse mais de uma vez ao dia. Ou pela manhã, onde já se viu isso? O horário acertado para a descarga daqueles resíduos havia sido combinado na Delegacia de Polícia, que ficava umas quatro ou cinco quadras além. Crianças com bronquite, velhos com asma, senhoras com olhos lacrimosos, empregados com doença do trabalho. E o delegado procurando contornar a situação mais o gerente da agência bancária, que não era besta de perder aquele movimento mensal e suas comissões sobre a receita do banco. Quatro da tarde fechavam-se as janelas das casas. Quem olhou, olhou.

Pois saiba que era uma agência com um movimento enorme de dinheiro já que a fábrica despejava ali seus débitos e créditos. O décimo dia útil do mês era dia de romaria. A ruazinha não dava para o povaréu que ia receber o salário. Vinham dois ou três soldados, pondo ordem naquela fila que crescia ladeira abaixo.

Nos outros dias, a afluência nem merecia esse nome pomposo, bastando o guarda particular para impor respeito, mesmo ficando dentro da cabina a ler o jornal com o radinho berrando algum sucesso musical do momento. Vez ou outra o responsável pela segurança dos correntistas saía da cabina, esticava as pernas e os braços, como um gato que tivesse estado a dormir a tarde toda sobre sacos de batatas. Girava pelo banco, com a solerte mão na coronha da arma. Também se permitia ir até o bar, quase sempre rodando o revólver no indicador da mão direita, Gary Cooper sem desafeto à vista, como pensaria ele, se fosse mais velho.

Deu-se que o nosso caubói retornava de uma dessas escapadelas quando divisou no alto da ladeira um fusca largando uma fumaceira doida, como diria uma testemunha mais tarde, mineira, já se vê. E lá vem o carro, turíbulo motorizado, diria o padre, despencando ladeira abaixo. O guarda mal chegou a notar que eram dois rapazes os ocupantes do fumegante objeto quando este parou, praticamente defronte ao banco. Pela inércia, a fumaça envolveu o automóvel, de onde saltaram os dois rapazes, compreensivelmente tossindo.

O guarda, antes de prestar socorro aos atribulados recém-chegados, ainda auxiliou uma senhora muito idosa, a julgar pela dificuldade com que se movimentava, a atravessar a rua e entrar no sobredito estabelecimento bancário. Não chegou a notar, como declararia ao Delegado algumas horas depois, se havia muitos ou poucos clientes na agência bancária. Sua preocupação, naturalmente, senhor Delegado, era retirar das proximidades do estabelecimento aquele veículo, pois as normas de segurança, o senhor sabe, impedem que se estacione ou apenas se pare veículo motorizado diante de agências bancárias. O Delegado sabia. "Mas não lhe passou pela cabeça que aquilo poderia ser um golpe?" Não, senhor Delegado, em momento algum em suspeitei de algo, declarou o guarda, como narraria o escrivão à sua esposa horas mais tarde, imitando o tom pernóstico do depoente. "Mas, querido, quem iria supor que aquela fumaceira danada era produzida por gelo seco dentro de uma latinha d’água? Imaginação os rapazes tiveram." E ousadia, rematou ele.

Tudo preparado, tudo muito bem preparado, minha cara. Enquanto um deles desarmava o pateta do guarda, o outro corria para dentro do banco. Era o sinal para que um terceiro elemento tirasse do casaco (quem diria? e o detector de metais?) uma escopeta. Uma escopeta! Tudo cinematograficamente preparado. Não faltou nem mesmo o "todos para o banheiro". O gerente quis ajudar a velhinha, que se movia com extrema dificuldade, como diria uma senhora depois, e acabou levando uma pancada na testa. Sangue rolando e equilibrando-se no enorme nariz do gerente, as pessoas limitaram-se a um oh! e nada mais.

O pior não foi isso, doutor. Um dos facínoras passou o braço pelo pescoço da velhota, deu uma gravata nela, como eles dizem na televisão, xingando a pobre da velha de múmia inútil. Apontou a magnum, magnum!, minha filha, olha só onde estamos!, para a cabeça da já assustadíssima velha e perguntou quem ali já tinha visto miolo esclerosado ao vivo. É por isso que eu sou favorável à pena de morte! Miolo esclerosado! Isso é coisa que se diga a alguém com idade provecta? Diga, minha filha, isso é coisa que se diga? A repórter preferiu não responder.

O fato é que a velha foi levada até o outro lado da rua, tropeçando nos paralelepípedos, pois o prefeito não arruma essas ruas, é só promessa em véspera de eleição, doutor, sem ter bengala em que se apoiar.

O guarda declarou que, enquanto o carro soltava fumaça de gelo seco, coisa que ele desconhecia, ele deu o braço à velha e a levou até a mesa do gerente, diante de quem ela se sentou, pois estava com falta de ar. Uma velha de aspecto cândido, disse o gerente em seu depoimento.

Aspecto muito cândido, disso eu me lembro muito bem. Ela trazia um casaco de cor cinza, parece que todas as velhas usam casaco de cor cinza. Os cabelos estavam presos em um coque, acho que é esse o nome daquilo. O que também me parece comum a todas as velhas. O que me chamou a atenção nela, porém, eram seus olhos. Uns olhinhos azuis, muito vivos. Enquanto ela falava comigo, pedindo desculpas pela ousadia, como ela dizia, os seus olhinhos percorriam o interior da agência. Eu tenho a cadeira da gerência situada em um ponto estratégico, para que eu possa ver tudo o que se passa no banco. O botão de alarme, que me liga à Delegacia, fica a pouco mais de um metro de minha cadeira. Se eu não estivesse ocupado atendendo a simpática velhinha, certamente eu teria visto quando o rapaz se aproximou de nós dois, muito gentil, dizendo que estava tendo uma dificuldade no caixa e que eu deveria resolver. Abriu a pasta e, quando eu pensei que ele iria me mostrar algum papel, mostrou-me uma arma. Uma arma, seu delegado! Claro que eu não posso dizer se era de verdade ou de brinquedo. Eu lá entendo de arma, doutor?

O delegado fez outras indagações sobre o sistema de segurança do banco, mas o gerente desconversava. Eu não sei informar se era Taurus ou Rossi, calibre 32 ou 45. Nem a cor dela eu sei lhe dizer, doutor. Nem a cor! Naquele nervosismo, meus pensamentos estavam divididos, mesmo porque foi a primeira vez que isso me aconteceu. Eu não sabia se pensava na velha, se pensava no dinheiro da empresa que estava no cofre, para o pagamento do pessoal no dia seguinte, ou se pensava, sou sincero, na minha segurança pessoal. Mas, quem saberia que a empresa costumava trazer dinheiro na véspera? Quem? Nossa agência tem pouco movimento, seu delegado, praticamente aquela agência só existe em função da fábrica. Eu não descarto a hipótese de algum funcionário, com raiva da diretoria, ter dado aquelas informações aos assaltantes. Tudo corria normal, seu doutor. Mesmo as saídas do guarda, para se espreguiçar, é coisa de rotina. Quem suporta ficar horas e horas trancado naquele cubículo? Quem, seu delegado? Dizer que isso poderia fazer parte do plano é coisa que não me cabe avaliar, mas eu conheço aquele guarda há alguns anos e não me parece que ele tenha algo a ver com aquilo tudo. Ele é uma pessoa meio beócia. Para ser mais justo: ele é atencioso demais. Era bem capaz de atender a algum pedido de auxílio, como ele diz ter feito, mesmo diante do banco. Sei lá. Parece que os exames psicotécnicos não servem mais para nada. Admitir como guarda alguém sem malícia? Ele me disse que nem o rosto dos rapazes chegou a guardar! Veja só o senhor.

Não guardei a fisionomia dos rapazes do carro, doutor delegado. Como eu iria esperar que aquilo tudo fazia parte de um golpe? Eu sei que deveria estar preparado para tudo, mas eu acho que aquela velhinha amoleceu meu coração. Acho que foi isso. Quando eu vi aquela velhinha atravessando a rua e aquele carro despencando ladeira abaixo, eu ainda perguntei a meus botões: se aquele maldito fumacento não diminuir a marcha, como é que essa velhinha, que parece minha mãe, vai chegar do outro lado da rua? Iria chegar sem meu auxílio? Mas nunca, seu doutor. A velha ali parada no meio da rua, sem saber se avançava ou recuava, com o carro despencando. O que que o senhor faria, doutor? Diga. O que o senhor teria feito foi aquilo que eu fiz: ajudei a velha a atravessar a rua. E não me arrependo. Me mandaram embora, me chamando de trouxa, de irresponsável. Acontece que o dinheiro do banco estava no seguro. E a vida da velha, estava?

Mas o senhor não precisava levá-la até o gerente, precisava?

Foi ela quem me pediu. Ela tinha um cheque que precisava ser visado. Visto de cheque é com o gerente. Como é que eu poderia imaginar que aquilo era para distrair o homem? Também disseram que eu não deveria ter tentado ajudar os rapazes a tirar o carro esfumaçado dali. Se eu não providenciasse a retirada do automóvel, seria punido por isso; como fui providenciar a retirada ao carro, fui mandado embora por desídia. Quem entende isso, doutor?

E os bombeiros? Por que o senhor não chamou os bombeiros?

Eu poderia ter chamado os bombeiros, realmente, mas o senhor sabe quanto demoram os bombeiros? Faça os cálculos: daquela ruazinha até o posto dos bombeiros são uns cinco quilômetros. Mas, e o trânsito? Quase seis horas da tarde? Eu sei que o expediente do banco vai até as quatro, mas que diferença faz o trânsito depois das quatro horas? É tudo igual, seu doutor. Ali, no meio daquela fumaceira da moléstia, o rapaz me tira da cintura um trinta e oito, seu delegado. Eu até cheguei a pensar que aquilo fosse uma chave inglesa ou um alicate. Ia dizer a ele "pra que isso?", mas quem fala alguma coisa naquele momento? Ele tirou a minha arma da cintura e eu lhe garanto que me tiraria também as calças, se quisesse.

"Você sabe que não estamos aqui para brincadeira", ele me disse, assim com essa voz forte. Foram legais comigo, não me agrediram, apenas me falou assim, solene. E a arma encostada nas minhas costelas. O senhor reagiria? Claro que não. Enquanto ele me levava para dentro do banco, as pessoas ali em volta do carro, tentando apagar o fogo que nem existia. Aí eles nos levaram todos para o banheiro. Um cubículo daqueles e coubemos eu, o gerente, as três caixas, a dona Zefa da limpeza e mais dois clientes. Foi a dona Zefa quem fez um curativo na testa do seu Lindonor. Um cortinho de nada, mas pegou uma veia e fez aquele rio na cara dele.

E a velha ficou onde?

A velhinha não veio, não, senhor. Acho que eles devem ter matado ela. Eu vi um deles dando uma gravata nela e falar alguma coisa de miolo, mas eu não sei o que foi. A velha foi ficando branca, mas não veio para o banheiro com a gente. Acho que ela morreu nas mãos deles.

Fui eu que fiz o curativo na testa do gerente, sim, senhor. Lá no banheiro havia uma caixa de primeiros socorros e eu peguei o curativo lá. Eu vi quando os rapazes saíram do banco arrastando a velhinha pelo pescoço, assim como se fosse coisa de filme de televisão. Eu ainda pensei em dar uma vassourada num dos rapazes, mas o que que isso iria adiantar, seu delegado? Aí eles me mandaram ir com os outros para o banheiro. Que eu poderia fazer com uma vassoura se eles tinham até espingarda? Além disso, eu sofro de asma, desde que dei à luz meu caçula. Aquela maldita fábrica ali perto. Eu moro, de favor, nos fundos da agência bancária. Logo cedinho eu varro tudo ali. Sou viúva e moro sozinha. Mas, depois desse assalto e com o que eles fizeram com aquela pobre velhinha, eu não sei se continuo a morar ali, não, senhor. Além da asma, assalto. É demais para uma mulher da minha idade. Eu posso dizer tudo o que eu vi, mas só o que eu vi. Eu enxergo mal, veja as lentes dos meus óculos, não posso fixar os olhos na claridade. Por isso, só me chamou a atenção aquele grito de "todos pro banheiro, todos pro banheiro, rápido". Até ali eu não tinha percebido nada. A velhinha não entrou no banheiro, acho que eles levaram a velha com eles. Eu vi quando o rapaz que segurava a velha caminhava de costas, sempre com ela na frente dele, sendo arrastada como se fosse uma coisa. Agora eu posso ir, doutor? Estou tão nervosa!

Pode ir, dona Zefa. O caso está encerrado. O seu depoimento foi o último. O Sanches aí vai dar uma tinta para a senhora apor no fim da folha a sua impressão digital. Da próxima vez quero ver a senhora assinar seu nome. Que que está esperando para aprender a ler?

Caso encerrado, doutor Fagundes?

Caso encerrado, Sanches. Em vinte anos de escrivão você já havia pensado em um caso assim? Uma senhora não tão velha veste-se como se fosse muito velha, para despertar o amor filial de um pobre diabo que não viaja ao Nordeste há muitos anos, para ver sua velha mãe. Esperta, não? A senha para o assalto era a ida do homem ao bar, tomar o café habitual. Dois dos filhos da velha descem com o automóvel, enquanto a falsa velhinha se põe a atravessar a rua em estudado passo de cágado manco. Dentro do banco a velha é estrategicamente colocada diante do gerente, enquanto um terceiro filho dela, vindo por trás, recebe a escopeta que ela trazia dentro do casaco. Os outros dois entram na agência, com o guarda dominado. Eles teatralizam o sequestro da própria mãe, para fins óbvios: "se eles fazem isso com uma velha indefesa, que farão comigo?", pensará cada um deles. Para mostrar que não estão brincando, agridem desnecessariamente o gerente do banco. Trancados todos no banheiro, os quatro saem pela porta dos fundos, onde haviam deixado outro automóvel. Que tal isso? Família que rouba unida permanece unida.

No dia seguinte, a grande manchete do jornalzinho da cidade não era o assalto à agência bancária, mas o corpo de uma velhinha, vestindo um casaco cinza, encontrado a boiar nas águas plácidas do riacho local. Seus olhos estavam fechados, diz a notícia.

17 agosto 2012

Uma cantora liberta


Quando nasceu meu filho, a mãe queria que ele levasse meu nome. Não concordei, pois sei bem o peso que isso traz ao filho. Imagine um Ruy Barbosa Júnior cometendo um erro de português. O comentário não seria outro: “Logo você, filho de quem é?” O ódio pelo pai seria inevitável. Luis Fernando Veríssimo demorou muito a decidir-se pela literatura, pois a comparação com o pai, Érico Veríssimo, seria inevitável. Talvez por isso tenha preferido um estilo bem diverso para sua escrita. O mesmo deve ocorrer com o filho de alguém julgado pela “opinião pública” como criminoso. Como será o ambiente que ele deve enfrentar na escola? Tendo apenas o sobrenome comum sempre fica a dúvida quanto ao parentesco. Como disse um estudante de direito, filho de uma importante jurista, ao ser indagado se era filho dela: “Conheço essa senhora de vista.”

Maria Rita refletiu muito até resolver ser cantora, pois a comparação com sua mãe, que muitos consideram a maior cantora brasileira de todos os tempos, seria inevitável. Preferiu um estilo mais leve, o que a tornou semelhante a tantas outras que surgem no cenário artístico brasileiro.

Eis que, a pretexto de comemorar o aniversário da morte da mãe, ela se dispõe a relembrar os maiores sucessos da Ellis Regina. E o resultado foi a liberação de uma voz magnífica, que, certamente, nada deve ao timbre e ao alcance da voz da mãe.

Aquilo que era uma sombra, parecendo um peso em suas costas, transformou-se em um aliado, que permite supor novos tempos para a cantora.

Se ainda não viu, veja

09 agosto 2012

Olimpíada e patriotismo

“Jogos resgatam patriotismo britânico” (Jornal O Estado de S.Paulo, 09/08/12)


Qual a origem da mais clássica das provas olímpicas, a corrida da maratona? Segundo reza a lenda, após uma árdua batalha na região de Marathon, quando os persas acabaram desistindo de invadir a Grécia, no ano 490 a.C., o soldado Filípedes foi encarregado de avisar os seus compatriotas da vitória dos atenienses. Para isso, ele correu cerca de 36 quilômetros, para levar a boa-nova a seu povo. Depois de fazer o feliz anúncio, morreu de exaustão. A maratona seria, assim, uma homenagem àquele herói grego e, portanto, recordação de uma batalha sangrenta.

No civilizadíssimo jogo de tênis, até há poucas décadas exigia-se que os disputantes, homens ou mulheres, se vestissem como vestais, roupa impecavelmente branca. Foi uma brasileira, Maria Ester Bueno, como boa representante de nossa irreverência, quem quebrou a tradição, mandando bordar umas palmeirinhas na barra de sua saia. Pois ali temos um duelo a espada: por força das normas de civilidade, a ponta dessa arma mortal voltou-se em direção ao próprio punho e ali se fixou, para afastar o perigo de ferir o adversário.  Ficou um espaço vazio, ovalar, que foi coberto com um cordoamento, transformando-se em raquete. Não será, obviamente, por acaso que os jogadores usam a expressão matar o ponto, quando dão um golpe vencedor. Mata-se o ponto em lugar de matar o adversário.

Inúmeros esportes coletivos, tanto quanto o mencionado tênis, são disputados em torno de uma bola.  E que é a bola senão a simbolização da cabeça do adversário?

E os uniformes coloridos dos competidores? Realmente, quando uma tribo pretendia partir para a guerra, a primeira preocupação era pintar o corpo com cores muito vivas, o que, evidentemente, também estava sendo providenciado pela tribo adversária, com cor diferente. Para que isso? Para que, durante a refrega, o guerreiro não perdesse tempo tentando descobrir se a cabeça em que pretendia desferir o golpe de borduna pertencia a alguém de sua tribo ou da tribo adversária. Pela diferença de cor da tintura essa dúvida não teria mais razão de ser, ganhando-se tempo precioso.

O que acontece em muitas disputas coletivas é precisamente isso: cada tribo veste um uniforme que distingue seus componentes dos componentes do outro time.  Em lugar de lutar-se para conquistar a cabeça do adversário, ela já vem trazida pelo árbitro: a bola. 

E se isso não é bastante para convencer meu prezado leitor, responda: por que motivo, ao fim de uma disputa, o vencedor recebe uma taça?  Trata-se, ainda uma vez, de uma cerimônia simbólica: originalmente, era na taça que os vencedores bebiam o sangue dos vencidos, para se apropriarem do espírito dos derrotados, da coragem por eles demonstrada na luta.

Nas guerras, entretanto, a medalha não é colocada no peito dos soldados, como nas competições desportivas, mas no peito dos generais, que ficam protegidos dentro de uma casamata, vendo um monitor de televisão.

Quem disse que numa Olimpíada “o importante é competir” devia ser um tremendo gozador. Quem entra numa guerra para não derrotar o adversário? Evidentemente ninguém.

Quando se olha o quadro de medalhas da atual Olimpíada isso fica bastante claro: em lugar de uma disputa entre Estados Unidos e União Soviética, temos hoje uma disputa “desportiva” entre China e Estados Unidos.

Eu poderia falar ainda de atletas negros, de nome arrevesado, que estão competindo como representantes dos Estados Unidos, da Dinamarca e da Grã-Bretanha, mas aí a conversa tomaria outro rumo.