24 fevereiro 2012

Fuzuê no sambódromo


Tenho dificuldade em levar o carnaval, como tudo neste país, a sério. Quando sei que algum jurado deu nota 9,76 para alguma escola de samba, no quesito “adereços”, eu me arrepio. Que é isso? Segundo o Aurélio, é o mesmo que “acessórios cênicos de indumentária ou de decoração”. “Objeto vistoso, geralmente levado na mão do sambista ou de pessoa fantasiada nas escolas de samba, blocos de carnaval etc. e que compõe a sua indumentária carnavalesca” ensina-nos o moderninho Houaiss, que, ao contrário do outro dicionarista, não separa singular de plural.
Ora, se os homens que entendem disso não se entendem sobre isso, quem sou eu para saber o que são adereços?
E há escolas de samba que são rebaixadas ou conquistam o primeiro lugar em face de tão enigmático quesito.
O meu assunto, é claro, não é bem esse. Quero falar da confusão no final da apuração dos votos dados às escolas de samba pelos jurados e da questionável decisão dada à situação gerada pelo fuzuê ocorrido no sambódromo quando da leitura desses votos.
Para você que acabou de chegar da Ásia eu explico. Imagine que na Tailândia estivesse sendo realizado o campeonato mundial de surf, coisa aí de umas seis ou sete baterias. Nas primeiras cinco ou seis baterias, cada competidor, mais de uma dezena, obteve pontos proporcionais à sua atuação, de acordo com um júri especializado. Quando da última prova, por força de um tsunami, as ondas, que até então tinham 5 metros, subiram para 20 metros, levando terra adentro os surfistas, os membros do júri, os vendedores de picolé e os de pipoca e tudo o mais que encontraram pela frente. Se coubesse a você decidir quem deve ser proclamado o campeão, que você faria?
Aqueles que passaram, como eu, ou ainda passam, boa parte da vida tendo em mãos problemas semelhantes, sabem como decidir é difícil. Se duvida, vá ver o excelente filme “A separação”, sério candidato ao Oscar deste ano. Diante dos efeitos do tsunami, um leigo diria: “cancela-se aquela prova e marca-se outra”. E para que serviu o esforço dos competidores, que, possivelmente, talvez não tenham desempenho semelhante numa próxima prova? Para não dizer que algum deles talvez tenha morrido durante a tragédia.
Pense numa prova de natação. Dois nadadores estão bem à frente dos demais, disputando, cabeça a cabeça, o primeiro lugar. Isso vai ser decidido pelo cronômetro eletrônico que um deles tocará em primeiro lugar na chegada. Exatamente nesse momento fatal, o cronômetro entra em pane e ficamos sem saber quem o tocou em primeiro lugar. Você, como diretor da prova, que decisão tomaria?
A hermenêutica contempla princípios que não apenas servem para auxiliar na interpretação das leis como também para que se resolvam as questões jurídicas do melhor modo possível, até porque interpretar uma lei é buscar a melhor maneira de fazê-la atuar no caso concreto sob julgamento.
Que princípios são esses? Fala-se muito em “bom senso” que alguns confundem com “senso comum”. Vejamos um exemplo: é do senso comum que as mulheres são más motoristas. “Volta pro tanque, Dona Maria”, que algumas delas ouvem no trânsito, não é bem um elogio. Entretanto, as companhias de seguro cobram menos das mulheres proprietárias de veículos motorizados do que dos marmanjos. Mera gentileza? É claro que não. É que as estatísticas demonstram que as mulheres causam menos desastres de automóvel do que os homens, o que significa que, se apenas as mulheres dirigissem, as despesas das companhias seguradoras com pagamento de indenização seriam bem menores. As companhias de seguro não se guiam pelo “senso comum”, mas pelo “bom senso”, isto é, um juízo feito a partir de dados concretos e não mero fruto de preconceito machista.
Imaginemos que um casal de milionários, o marido bem mais velho do que a mulher, sem descendentes nem ascendentes, esteja viajando de avião. O avião cai na floresta amazônica e os corpos dos passageiros, já sem vida, são resgatados vários dias depois do acidente. Como fica a fortuna do casal? Sabemos que, se o casal não tem descendentes nem ascendentes, morrendo o marido, os bens dele passam para ela; morrendo a mulher, os bens dela passam para ele. Assim sendo, no caso concreto, os irmãos da mulher, seus herdeiros, terão interesse em provar que o marido morreu antes, ao passo que os irmãos do marido, herdeiros dele, procurarão provar o contrário. Que nos diz o “senso comum”? Que nos diz o “bom senso”?
Falei em princípios interpretativos e ilustro. Imaginemos que todos os juízes de um Estado tenham direito ao recebimento de certo valor. Como o caixa do Estado anda baixo, isso é pago em parcelas mensais, a perder de vista. Acontece que alguns juízes, que, pelo cargo que ocupam, estão mais próximos do cofre, resolvem pagar a si mesmos, de uma só vez, aquilo que lhes é devido. Tal conduta é censurável?
Se, para responder a essas perguntas, ficássemos apenas no “senso comum”, cairíamos no achismo: uns diriam “acho que sim” e outros diriam “acho que não”. Melhor irmos à Constituição Federal, onde encontraremos os chamados “princípios superiores do Direito”. Quando cuida da Administração Pública, ela fala em alguns deles, dentre os quais “moralidade” e “impessoalidade”. O chamado nepotismo não é reprovável apenas por ser imoral. Ele viola o princípio da impessoalidade, pois a relação familiar, mais do que o mérito, é que determina a escolha do auxiliar. Com mais razão se o beneficiário é o próprio ocupante do cargo com poder de decisão.
A Constituição também contempla o princípio da “razoabilidade”, outro nome para o “bom senso”. Uma decisão, qualquer decisão, deve ser tomada racionalmente e não emocionalmente. Mais que isso: dentre várias decisões possíveis, devemos preferir aquela que, graças à nossa experiência na arte de interpretar, melhor atenda à maior parte dos abrangidos por ela. Uma das aplicações desse princípio pode ser notada durante um jogo de futebol, quando o juiz, em lugar de parar o jogo, por causa de uma falta, deixa de fazê-lo porque, mesmo tendo recebido a falta, o jogador conseguiu dar prosseguimento ao lance.
Se você for ao Código Civil, ali encontrará uma palavra curiosa: comoriência. Que instituto jurídico é esse? Diz o Código que, muito embora seja raríssimo duas pessoas morrerem na mesma hora, mesmo minuto e mesmo segundo, em determinadas circunstâncias, como durante um desastre, presume-se que todos morreram no mesmo instante. Com isso, o Código diz que, morrendo aquele casal no mesmo desastre, não é razoável seus herdeiros disputarem por causa da herança. Os irmãos da mulher herdam a metade que era dela e os irmãos do marido herdam a outra metade.
Tudo isso para concluir que, se as duas escolas de samba tinham condições de chegar em primeiro lugar e se a segunda colocada teve frustrada sua expectativa por algo alheio à sua vontade e ao torneio, teria sido mais razoável que a disputa fosse considerada empatada.
Aliás, essa possibilidade sempre existe, pois duas ou mais escolas podem perfeitamente obter o mesmo número de pontos totais.    


19 fevereiro 2012

Bate-boca magistral


”Mestre em Direito, juiz Federal, presidente do CADE, tantos são os títulos que o magnífico reitor da USP João Grandino Rodas possui que seria difícil encontrar um que ele ainda não tivesse. Mas os alunos, antigos e atuais, do Largo de S. Francisco, querendo homenagear seu antigo diretor, encontraram. Encontraram e outorgaram. Com efeito, desde ontem, João Grandino Rodas ostenta a desditosa láurea de persona non grata no território livre da Academia de Direito de S. Paulo.”

“Sem julgamento, ações contra juízes prescrevem nos tribunais estaduais.” (jornal O Estado de S. Paulo, edição de 22.11.11)


A doutora Eliana Calmon Alves é, antes de tudo, uma pessoa prática. Antes de colocar seus comentários ao Código Tributário à disposição dos internautas, publicou livro de culinária. Como não fica bem a magistrados dedicarem-se a coisas menores, aquele livro não foi incluído no rol de suas obras constante da biografia oficial divulgada pelo Superior Tribunal de Justiça. Publicar livro de receita não pode; jogar tênis no clube de juízes em dia da semana pela manhã pode.
Já no Supremo Tribunal Federal a coisa é muito outra, pois um livro mais picante do que muitas das comidas feitas por aquela  baiana Ministra consta da biografia do ex-Ministro Eros Grau.
Se alguém se detiver na produção da Corregedoria da Justiça do sarneyento Estado do Maranhão, verificará que representações contra magistrados são ali tratadas com todo cuidado para que não se coloque em dúvida a lisura do Poder Judiciário local. Segundo noticia a imprensa, de 120 representações feitas contra magistrados daquele infeliz Estado em um ano, nenhuma, simplesmente nenhuma redundou em punição.
Claro que isso não é exclusividade daquele tristemente famoso Estado. Na Bahia, o professor J. J. Calmon de Passos (“é seu parente, doutora?”) dizia em palestra na OAB aqui em São Paulo que, certa ocasião, recebeu gentil telefonema de um ex-aluno, agora magistrado, que pretendeu justificar-se: “Caro professor. Examinei detidamente o processo patrocinado pelo professor, tendo como partes fulano e sicrano. Cheguei à conclusão de que seu cliente tem toda razão, mas acabo de receber um telefonema do doutor Antonio Carlos e não tenho como recusar pedido do governador. Espero que o professor compreenda.” Educadamente o J. J. não nos disse qual foi sua resposta.
Eu já disse o que tinha a dizer sobre o Poder Judiciário e suas mazelas, uma das quais o acintoso afastamento definitivo do magistrado faltoso, sem prejuízo de seus vencimentos, preferindo hoje mostrar o seu lado pitoresco, que, aliás, renderia mais alguns volumes de causos. Cobram-me, porém, um posicionamento sobre o episódio envolvendo a Ministra Corregedora-Geral do Judiciário brasileiro e o Presidente do STF e eu não sou de refugar. Fixo-me, porém, em aspectos laterais.
A presidência da Associação dos Magistrados Brasileiros censura publicamente sua ministra associada, por haver dito que há bandidos na Magistratura. Segundo o Estadão, disse o presidente da AMB que “antes de fazer tal afirmação tem ela que apresentar uma denúncia (sic) formal ao Ministério Público, essa pessoa tem de ser processada, se for o caso tem que ser presa e afastada de suas funções”. O que ele quis dizer, sob o correto fundamento da presunção de inocência, é que ninguém, chame-se ele Paulo, José, Dirceu ou Valdemar, pode ser considerado culpado antes do julgamento do derradeiro recurso de Embargos de Declaração opostos em face da decisão do Agravo Regimental interposto contra a decisão que indeferira o recurso de Agravo de Instrumento interposto contra a decisão do ministro relator que indeferira o pedido de Incidente de Uniformização apresentado em face do Recurso Extraordinário interposto contra acórdão em Agravo Instrumental apresentado contra decisão que não conhecera de Recurso Especial interposto contra Acórdão que negara provimento a Embargos Declaratórios interpostos em face de decisão que negara provimento a Recurso interposto contra o recebimento de denúncia oferecida contra o interessado. Ponha quatro meses na tramitação de cada um desses recursos e veja quando se teriam passado os fatos.
Tal entidade, ao hipotecar sistematicamente solidariedade a magistrados envolvidos em confusão, cumpre o seu papel. Aliás, um de seus ex-presidentes foi contemplado com aposentadoria compulsória. Quando, no entanto, diz seu presidente que “na magistratura brasileira 99,80% são absolutamente corretos”, ele me dá o direito de perguntar-lhe: “Onde estão os dados estatísticos que demonstram isso?” Allegare et non probare et non allegare paria sunt, como certamente diz S. Exa. e seus colegas em suas decisões.
Certa ocasião, defendi, como advogado, um magistrado paulista que estava sendo processado disciplinarmente. Na sessão de julgamento, o desembargador relator não só descreveu a conduta irregular do magistrado como enfatizou que contra ele já havia sido apresentada meia dúzia de representações, “todas, é bom que se diga, arquivadas”, ressalvou. Indaguei-lhe o motivo daquela referência, pois, em primeiro lugar, se foram arquivadas, não podem ser consideradas maus antecedentes. “Demais disso, quem arquivou essas representações não foi ele, foram Vossas Excelências”, disse eu aos desembargadores.
O juiz foi punido, como não poderia deixar de ser, ante a gravidade dos fatos que ficaram provados no processo, e posto em disponibilidade remunerada, com a obrigação de não poder advogar. Certamente, como tantos outros nessa mesma situação, trabalha normalmente no escritório de advocacia da esposa, do filho ou de um amigo, tendo o cuidado de por nas petições os nomes deles e não o seu.
A propósito, meu caríssimo Calandra, qual a posição da nossa AMB diante desse tipo de “punição”, que, na prática, é um convite ao cometimento de infrações?
Aliás, para horror dos economistas, recentemente S. Exa. declarou que as férias anuais de 60 dias, privilégio dos magistrados, deveriam ser estendidas a todos os trabalhadores, coisa que nem algum país socialista adotou. Como essa extensão é economicamente inviável, especialmente neste momento que uma crise global vai levando de roldão economias outrora sólidas, aquela proposta é um autêntico tiro no pé: ou são elas uma necessidade real, constituindo direito de todos, ou é um privilégio odioso e deve ser cancelado. 
A propósito: se elas são realmente essenciais ao bom exercício da judicatura, como explicar que parte delas costume ser "vendida" e, portanto, não ser gozada?     

13 fevereiro 2012

Jardins verticais


“A ampliação da violência e da destrutividade em escala nacional e mundial tem chamado a atenção dos profissionais e do público para a elucidação teórica quanto à natureza e às causas da agressão. Uma preocupação desse teor não é de surpreender; o que constitui surpresa é o fato de que essa preocupação seja de data tão recente, especialmente quando um investigador da estatura de Freud, revisando sua teoria inicial, centrada em torno da impulsão sexual, já havia, na década dos anos 1920, formulado uma nova teoria em que a paixão de destruir (o instinto de morte) era considerado de igual potência à da paixão de amar (instinto de vida).” (Erich Fromm, Anatomia da Destrutividade Humana, 1973)

Embora combata o desperdício, por motivos óbvios, não pertenço ao time dos ecochatos, até porque não há como negar alguns fatos que não dependem de opinião nem de boa vontade, como as naturais consequências desgastantes da ação do tempo sobre o nosso planeta.
Por exemplo, nosso sistema solar está numa galáxia, como sabem até as crianças, batizada poeticamente de Via Láctea, ou Caminho Leitoso, pelos pastores da Antiguidade, que ficavam embasbacados diante de um céu estrelado, coisa que o “progresso” hoje nos impede de fazer, seja pelo excesso de luz artificial, seja pelo ar poluído das grandes cidades. É composta de número incalculável de estrelas, entre 200 e 400 bilhões. A simples dificuldade de fazer-se uma afirmação a respeito disso já mostra o tamanho da encrenca. Nem é preciso lembrar que há bilhões (ou seriam trilhões?) de galáxias no Universo, uma das quais sendo Andrômeda, nossa vizinha. Pegue um foguete interplanetário e dentro de uns 3.000.000 de anos (luz!) você estará lá. Tanto a nossa galáxia como as demais estão em movimento. O único problema, simplesmente insolúvel, é que a Via Láctea e Andrômeda caminham em direções opostas, uma ao encontro da outra. Acho que dá para imaginar o que vai acontecer quando o espaço entre elas for igual a zero. Se você viu o premiado filme Melancolia, do Lars Von Trier, sabe do que eu estou falando. Felizmente, muito antes disso, se os cálculos dos especialistas não falhar, o calor do sol, que já vem aumentando de século para século, será tal que a Terra não passará de uma bola de fogo como tantas que gravitam no espaço sideral. Prepare o protetor solar, mesmo sabendo que isso deverá ocorrer daqui a 1 bilhão de anos. Vai que, como diz o comercial, tenham colocado alguns zeros a mais no cálculo...
Aliás, os continentes da Terra também não estão parados. O espaço entre a costa Leste da América do Sul e a costa Oeste da África, por exemplo, que se encaixam perfeitamente, que começou a aumentar há algum tempo, quando a Pangéia se foi enrugando, como resultado de forças que atuam subterraneamente, movimentando as tais placas tectônicas, aumenta à razão de 5 centímetros por ano. Se você leu “Jangada de Pedra”, do Saramago, sabe do que estou a falar. Isso quer dizer que nossos tetranetos demorarão mais para ir da Bahia a Moçambique, nadando, do que nós.
Também não acredito que deixando de escovar os dentes e carregando as compras do supermercado no bolso da calça estarei afastando a possibilidade de faltar água para o gelo do teu uísque, caro amigo. Quando estive em Roma a primeira vez, indaguei ao guia, caipira como eu só, que história era aquela de fazer viaduto sem rua passando embaixo. E ele pacientemente me explicou que o que passara por ali, havia muito tempo, era água, tanto que aqueles arcos que o senhor está vendo ali, imitados por vocês na Lapa, Rio de Janeiro, chama-se aqueduto, ou seja, “aquilo que conduz água”. Alguém do grupo perguntou: “Quer dizer que viaduto...” O grupo achou melhor cantar o “La Donna è móbile” para que não passássemos mais vergonha.
Tudo isso para dizer que pertenço a um grupo de voluntários (ou malucos, segundo alguns) que, nas horas de folga, resolvemos embelezar as ruas do bairro onde moramos. Entre tapar os buracos da calçada e colocar fralda nos cachorros que por aqui desfilam, resolvemos fixar orquídeas nas árvores das calçadas, muitas das quais já estão florindo. A diferença entre a minha técnica e a dos demais é bastante sutil.
Sabemos todos que a orquídea, da qual se conhecem milhares e milhares de espécies, não é, rigorosamente falando, uma “parasita”. Isto é, como mera planta epífita (literalmente, “vive sobre árvore”) que é, ela apenas se apóia numa árvore e ali colhe seu alimento do ar e da umidade da chuva e da garoa. Hóspede e hospedeira convivem indefinidamente sem que uma cause problema à outra.
Dentre as modalidades em voga, destaco a falenopse, como escreve o Houaiss, que as casas especializadas preferem grafar em latim: phalenopsis. Ela tem a particularidade de lançar uma haste, que chega a atingir mais de 50 centímetros, em torno da qual se fixam as flores, que parecem borboletas. E é justamente essa semelhança que lhe deu o nome, pois falena, em latim, quer dizer borboleta. Apresentam-se, graças à hibridação, de vários tamanhos e de cores diversas, desde o branco ao roxo. Algumas são rajadas; outras são pintalgadas, como se fossem borboletas dálmatas.
Falemos da minha técnica.
A maioria das pessoas acha que a orquídea precisa do xaxim ou de cavacos de madeira ou de casca de coco para se alimentarem. Vai daí, fixam com arame nos troncos da árvore o próprio vaso da planta, criando um apêndice horroroso, que enfeia a árvore. Considerando que o que a planta necessita é de fixar as raízes no tronco da árvore, tudo aquilo é dispensável. Em razão disso, eu escolho uma árvore de tronco grosso e cascudo, vou a uma “axila” (aquele ponto em que um galho sai da árvore e sobe) e prego ali, parcialmente, 4 pregos de aço de bom tamanho. Coloco a planta sobre o quadrado formado pelos pregos e, valendo-me do arame mais fino que encontrar, faço uma teia com ele sobre as raízes da planta, unindo prego a prego. Assim fixada a orquídea, eu termino de fixar os pregos, enterrando-os totalmente no tronco da árvore. Como o prego é neutro, por ser de aço, não causará prejuízo nenhum à árvore e será coberto pela casca quando ela se renovar, como ocorre anualmente; como o arame estará sujeito à chuva, com o tempo ele oxidará e desaparecerá por completo. Ou seja, daqui a alguns anos a orquídea estará implantada na árvore, graças a suas longas raízes, sem vestígio algum da ação humana. 
Aí fica a sugestão, lembrando, porém, que a experiência mostra que, se a flor puder ser alcançada por um passante, ela ficará pouco tempo exposta.
Como dizia Fromm, Freud explica.

06 fevereiro 2012

Como diria madame


À Thais

“μανθάνει μόνον τος φιλοσόφοις διστον λλ κα τος λλοις μοίως, λλ π βραχ κοινωνοσιν ατο"(*)

Alô? Sim, eu sou ela. Como? É ela quem está falando, logo ela é eu. Oi, querida. Como está você? Não reconheci tua voz. Você deve estar cafônica. Sim? Cuidado com isso, que pode virar uma peneu mania. Há quanto tempo, não?
Eu também tenho dificuldade em aceitar esses modernismos. Confesso-lhe que ainda não sei se chamo a companheira de minha filha de minha nora ou minha genra. Meu personal trailer diz que tudo é uma questã de hábito. Havendo habitação, mais dia menos dia os bícepes casam-se com as trícepes e todos serão felizes para sempre, parentesco à parte. Ele me disse também que deu toddy não sei pra quem, que havia tido um esfriamento muscular, mas isso foi considerado drops e quase lhe calçaram a habilidade para continuar na sua profissão. Bem que o pai dele, que é almirante de navio, avisou que esses produtos importados do exterior são muito prejudiciais à saúde dos atletas. Mas, quem houve os pais e as mães nos dias e nas noites de hoje? Diga: quem?
O gerente do meu praime diz a mesma coisa no que conserve aos filhos dele. A filha dele, por exemplo, fez uma aplicação em Rarvard, ganhou um diploma de relações exteriores e um bebê que chora em inglês. Juros por juros ela poderia ter feito relações interiores e casar com um plantador de soja de Mato Grosso, diz ele. Pelo menos teria uma ou duas baby sisters para tomar conta da criança, coisa que na Europa são naves raras. Concorda?
Meu primo Eugênio, que, na verdade, não é meu primo, mas meu filho mais velho, como eu teimo em dizer ao pai dele, que é metido a sabe chão, é um encarpetado. Mesmo sendo baixinho, o Júnior, que tem o mesmo nome do pai,  com o Júnior a mais de acréssimo, ele é um peralto, saiba você. Outro dia, depois de ter assistido um filme de fricção científica na seção da tarde, pintou as alfaces com mercúrio cromo, dizendo que tinha tido um ataque de ermorróida. Pode?
Se eu vou na igreja? Pelo menos uma vez por semana procuro o padre nosso para confessar meus pecados, sejam eles capitais ou interiores. Sem isso, não tenho coragem de abrir a boca, na missa do domingo, para receber a santa eucarestia. Deus me livre de ir parar nas pro fundas do inferno, logo eu, que detesto calor. Ainda se lá tivesse ar acondicionado, como no nosso apê em Palm Bitch, que tem um calor senigualesco, vá lá, mas o padre Vigário me disse para tirar o cavalo da chuva, logo eu que nem cavalo tenho. Em matéria de gado, nossa fazenda tem apenas bovinos e ovinos, como diz meu marido, muito embora as galinhas sejam de pouca montaria. Gado vaquino tem só meia dúzia, que é para fornecer leite aos colonizadores, que são pessoas muito reforçadas. Eles fazem esforços sobre os manos para sobreviver e as proles deles demoram muito para crescer e ajudar na fanha diária.
De política? Quero distância. Meu marido não. Lembra dele, não? Era nosso colega de classe, quase não engordou, ficou crizálido e parecido com o Jorge Closet. Ele gosta muito de política e da presidenta, até porque a empresa dele nunca fraturou tanto como agora. Ele é muito patriota. Cada vez que cai um político ele corre pra saber o nome de todos os envolvidos nas facas tuas, como ele diz. Termina de ler e dá um suspiro de patriotismo. Só que se confunde com o nome dela, quando bebe um pouco. Ele é chegado numa manguaça. Fazia dupla lá com o outro, sabe quem é, não sabe? Nessas ocasiões ele chama ela de Cândida Vagareza e toda turma na mesa racham o bico de rir.
É claro que tudo isso é provocação, amiga. Resolvi fazer um curso de pós-graduação em lingüística e escolhi como tema a linguagem plebéia do Brasil. E venho treinando com os amigos. Uns demoram mais, outros menos para perceber a coisa. Pior é quando sugerem que seja Alzheimer. Como você sabe, nossa linguagem, mesmo a culta, não passa de um latim mal falado, resultado do contato dos soldados romanos com os povos bárbaros por eles conquistados. Daí a língua veio para o Novo Mundo e deu nisso que aí está.
Como se sentiria nossa presidenta se alguém se dirigisse a ela chamando-a de “Você”? Desrespeito? Mas isso é abreviatura de Vossa Senhoria ou de Vossa Mercê, tratamento de luxo. Dia chegará em que ela será chamada de “Exma”, abreviatura de Excelentíssima (pessoa muito excelente). Para não dizer “Ilma”, abreviatura de Ilustríssima, além de trocadilho.
Aliás, o nosso Houaiss, em seu festejado dicionário, fala em “tabuísmo”, palavra que não aparece no Aurélio. Sabe o que é isso? Ele faz preceder dessa classificação aquelas palavras chulas, popularmente designadas “palavrões”, como “merda”, por exemplo. Houve tempo em que pessoas “de berço” não utilizavam chulices em seu discurso social. As emissoras de rádio e de televisão bloqueavam o som delas, quando saíam inadvertidamente (durante uma partida de futebol, por exemplo). Hoje, temos treinador dizendo isto e mais aquilo diante daquele painel de patrocinadores. E todos aceitamos isso com normalidade. É o progresso, dizem.
A palavra “caralho”, por exemplo, além de referir-se vulgarmente ao pênis, tem, segundo mestre Houaiss, vários empregos. É interjeição demonstrativa de entusiasmo (“Caralho, que maravilha!”), de indignação (“Saia daí, caralho!”), além de expressar grande quantidade, que os antigos expressavam por “à beça” (“Veio gente pra caralho”).
Na Espanha, de onde nos veio a palavra, não é diferente. Segundo o dicionário da Real Academia espanhola, a palavra “denota enfado o rechazo (“Al carajo el informe.”), expresa disgusto, rechazo, sorpresa o asombro (“Del carajo.”), algo muy grande o intenso (“Un susto, un frío del carajo.”), no importarle nada (“Irse algo al carajo.”), echarse a perder, tener mal fin (“Mandar a alguien al carajo.”), rechazarlo con insolencia y desdén (“Qué carajo!”), denota negación, decisión o contrariedad (“Un carajo.”), ninguna cosa (“No entiendes un carajo.”), algo para ponderar (“Cuesta un carajo.”).
Pois é, amiga, vou ter trabalho pra chuchu.


(*) "Aprender é a maior felicidade do filósofo, e dos outros homens também, embora não da mesma maneira" (Aristóteles, Poética, Cap. IV, 4)

01 fevereiro 2012

Lacrimejos


E estas lágrimas,
que me extravasam d’olhos,
lavam-me a face,
deixando-me, pateta,
a soluçar sem jeito?
Que faço eu delas?

Já prometi que tal não haveria
nem terceira,
nem quarta vez.
Mas, cá estou eu
em nova recidiva.
Eis-me a chorar novamente,
convulsivamente,
descabidamente,
como se motivo houvesse.

E ela, onde está?
Que é daquela gaja
que me faz passar por isto?
E por nada!
Assoberbada c'os afazeres seus, dirá,
e esquece-me aqui,
facão na mão,
a descascar cebolas.