30 março 2012

O filósofo do Méier

A justiça não é apenas cega. Sua balança está desregulada e a espada sem fio.
Pode ser até que tenhamos alguns direitos iguais. Mas nossa justiça faz questão de manter os deveres bem diferentes.
A justiça é cega, mas quando vê um pobre diabo por perto, baixa a bengala nele.
Livrai-me da justiça que dos malfeitores livro-me eu.
Tenho certeza de que o mundo está-se aproximando de uma era de verdadeira justiça e estabilidade social, em que todas as boas ações serão devidamente punidas.
(Millôr Fernandes, Millôr definitivo – A Bíblia do Caos, 1994)

Um país que não coloca na sua Academia de Letras um Mário Quintana e um Millôr Fernandes não pode ser considerado sério, nem mesmo por um general francês. Se eu tivesse vez e voz no assunto, não teria a menor dúvida: imporia ditatorialmente minha vontade aos nossos preclaros acadêmicos. Nada de Jô Soares nem Chico Buarque. O nome a ser escolhido, diria eu do alto de minha prosopopéia, seria bem outro.
Nada pessoal contra o Chico, de quem me tenho afirmado e confirmado ser uma das muitíssimas viúvas musicais. Nosso querido rapazinho de belos olhos verdes, o maior letrista que o país já produziu, deu pra envelhecer, tornar-se até avô, veja que disparate!, e resolveu fazer o caminho inverso daquele percorrido pelo amigo de seu pai. Em lugar de evoluir de literato para cantor popular, com direito a um copo de uísque em cada mão, ou a passar o dia inteiro dentro de uma banheira telefonando para meio-mundo, como fazia o Vinicius, não é que o rapaz resolve fazer o contrário? Não mais achados extraordinários como esta definição antológica: “saudade é o revés de um parto, saudade é arrumar o quarto de um filho que já morreu”. O ex-futuro-arquiteto agora, duplamente balzaquiano na idade, quer sê-lo também na vida literária. Em lugar de caipirinha num bar do Leblon agora é um copo de kir num bistrô parisiense. Pode?

Fôssemos falar de sua junguiana anima, que, já no início da carreira, o fez compor “com açúcar, com afeto, fiz teu doce predileto, pra você parar em casa”, que ele só gravaria muitíssimos anos depois, suspiraríamos, desanimados: “esse moço ‘tá diferente!” A verdade é que monsieur Holandá jamais mentiu sobre a atração que o Velho Mundo exercia sobre ele. “Tu ris, tu mens trop; tu pleures, tu meurs trop. Tu as le tropique dans le sang et sur la peau" reclamava ele languidamente em Joana Francesa, misturando a língua de ontem com a língua de hoje. Prenúncio do que nos aguardava. Mas, para chegar a acadêmico vais ter de tomar muito kir, meu prezado Carioca.

Já o José Eugênio Soares é da mesma estirpe do Caetano Veloso. Ninguém em sã consciência irá negar o valor indiscutível deles, como artistas. Mas ambos, tão distintos fisicamente, têm em comum a mesma megalomania. Sugiro-lhe, caro leitor: quer enriquecer? Então compre qualquer um deles por aquilo que ele efetivamente vale no mercado e, depois, o revenda por aquilo que ele pensa que vale. Você ficará milionário!

Pois nenhum deles seria meu candidato à Academia Brasileira de Letras. Ligasse ele para essas coisas e eu faria lobby pelo Millôr Fernandes, este, sim, o brasileiro mais adequado a ocupar uma das cadeiras daquela casa que já recebeu até outro distinto velhinho, que, embora não seja escritor, tinha uma qualidade rara entre os brasileiros de hoje: era amante dos livros. O Millôr, que nasceu Milton e já foi Emmanel Vão Gôgo, deu à cultura brasileira tanto que muito Ruy Castro só estava esperando o homem dar sua última boutade, como diria o Chico, com quem, aliás, o Millôr já trocou socos,  para biografá-lo. Em livro de vários tomos. Um para o “Dicionovário”, outro para o “Ministério de perguntas cretinas”, outro para suas “Composições Infantis” e mais não sei quantos para seus desenhos, que, fosse ele norte-americano, e estariam no New Yorker, a fazer sombra ao Saul Steinberg. Mas isso fica por conta do Ruy.

É claro que eu poderia fazer lobby para mim mesmo, como o Sarney. Bastaria uma dose diária do mesmo tônico que o Jô e o Caê tomam em silêncio e lá estaria eu percorrendo os corredores da Casa de Machado de Assis a mostrar a meus futuros colegas o respeitável currículo que ostento. Livros de contos? Tenho vários. De crônicas? De poesia? Infantis? Juvenis? Em português ou em outra língua? Viktor var en meget kvikk og livlig gutt. Han var nærmere fem år gammel, og var beveget av en uforstoppelig nysgjerrighet, como eles iniciaram, na Noruega, um livro infantil chamado Doc Vik.  “Quer que traduza?”, perguntaria eu ao Paulo Coelho, vingando-me das prateleiras e mais prateleiras dos livros do homem que aparecem em todas as livrarias de Oslo. Um acinte!

Sabemos, aliás, todos os que escrevemos como é terrível esse momento de quererem publicar nossos livros em outro país. Imagine alguém pretendendo mostrar aos japoneses, amantes que são da bossa nova, algum trecho meu, em que, com a ironia que me compete, falo de coisas mundanas. Como seria isso dito na língua deles? E como eu poderia saber se o tradutor foi fiel às minhas ideias e a meus propósitos? Sei muito bem que tradutore, traditore, mas ser traído por algum samurai é morte na certa!

Mas voltemos ao Millôr, cuja verve é simplesmente imorredoura: “Morte súbita é aquela em que a pessoa morre sem o auxílio dos médicos” disse ele premonitoriamente. Aí veio um médico e assinou atestado dizendo que ele morreu de parada cardíaca. Algo bem adequado a um humorista.

23 março 2012

Carol

Carolinda é o nome dela. E ela faz questão de não desmentir quem lhe deu um nome tão belo. Sabem quem escolheu esse nome para ela? Foi a comadre da madrinha dela, que, por sinal, é casada com o pai do irmão dela.

Ela tem uns olhinhos puxadinhos, coisa que só um anjo pode fazer nas crianças antes de elas nascerem. Esse anjo foi contratado especialmente pelos pais dela, porque, normalmente, ele só repuxa olhos de criancinhas chinesas. Os olhos da Carol foi uma gentileza especial daquele bondoso anjinho.

Os cabelos dela então, nem te digo! São rolinhos e mais rolinhos de cabelo, que, vistos de longe, parecem nuvens sapecas. E ainda tem uns rolinhos bem pequeninhos na nuca e atrás das orelhas, que estão só esperando espaço para crescerem e ficarem do tamanho dos demais.

A mãe da Carolinda penteia os cabelos da menina com muito cuidado, que é para não acordar os filhotes de beija-flor que às vezes nascem dentro daqueles cachinhos dourados. É muito comum haver ninhos de passarinho dentro dos cachinhos da Carol e se os cabelos dela forem penteados sem muito cuidado, podem-se quebrar alguns ovinhos ou serem acordados os filhotes que esperam a mãe para trazer-lhes comida. E aí é um berreiro danado.

Um dia desses, depois do jantar, os pais perguntaram aos filhos o que eles queriam ser quando crescessem. O irmão da Carol foi muito prático: “quando eu crescer eu vou querer ser adulto!”.  Palmas para ele. “E você Carol?”

Os pais teriam de adivinhar qual seria a escolha feita por ela. Ela subiu na mesa, pegou um pão de queijo, tirou toda a massa de dentro daquela bolota e ficou só com a casca na mão. Aí ela cobriu o narizinho minúsculo dela com aquela casca de pão de queijo. “Adivinhem o que eu vou ser quando crescer!”
A mãe pensou bastante, olhou aquele narigão e disse: “Vai ser uma tartaruga!” Todos riram muito, pois nunca haviam visto uma tartaruga com um nariz daqueles. Essa dona Vavá, onde está com a cabeça?
O pai também arriscou: “você vai ser um pé de carambola!” Mais risos, pois ninguém jamais tinha visto carambola redonda. Seu Carlito, mas que fora!
O irmão pensou, pensou e concluiu que não dava para adivinhar só com aquela indicação. Ele queria mais. Aí ela se pôs a dar cambalhotas sobre a mesa. Agora ele já estava em condições de dar sua opinião. “Você vai ser um ventilador!” Nana, nina, não. Erraram todos.

Carol pegou uma fatia de bolo de chocolate e deu nela a maior mordida que ela conseguiu. Aquele chocolate se espalhou pela cara da menina, aumentando a boquinha dela, que agora parecia uma bocarra enorme. O pai, a mãe e o irmão viram aquilo, olharam um para o outro e chegaram à conclusão de que ela, quando crescesse seria uma comedora profissional de bolo de chocolate. Que gente sem imaginação!

Então ela abriu as pernas e os braços, formando uma enorme letra X e disse: “quando eu crescer eu vou ser palhaça!” Todos deram palmas e vivas. Os pais da Carol subiram na mesa e abraçaram a filha, contentes com a precoce vocação demonstrada por sua menina. “Grande escolha, minha filha. Médico, advogado, motorista de táxi, varredor de rua, sapateiro e costureira qualquer um pode ser. Mas palhaço não é para qualquer um. Palhaça, então, é para pouquíssimas. Parabéns! Parabéns!” E não pararam mais de dar beijos e mais beijos na pobre da Carol, que não tinha mais espaço no rosto para tantas beijocas.

Desse dia em diante, a menina passou a aprimorar sua vocação. “Não basta ter vocação, é necessário aperfeiçoar-se” dizia-lhe o pai, que era professor de algum matéria de nome complicado numa escola de nome ainda mais complicado.  Deixa pra lá. O que importa é que a Carol agora não subia para seu quarto à noite, quando ia dormir, nem descia para a sala de manhã, logo que acordava, do modo como faziam as demais pessoas da casa. Ela subia e descia andando sobre o corrimão da escada. A rigor, para ela não era mais corrimão, era corripé. Quando ela já estava craque em subir e descer pelo corripé, ela dava umas piruetas enquanto subia e enquanto descia. Uma gracinha!

Outra coisa que a Carolinda fazia era ir até o supermercado andando com as mãos e tendo as perninhas esticadas para cima, com os dois pezinhos lá em cima, olhando a paisagem. Ela usava um macacão que tinha uns nove bolsos, todos eles com zíper, que era para não ficar espalhando moedas pela rua. Se você for a um supermercado e vir um par de pés passeando na altura das prateleiras, pode procurar mais embaixo que vai encontrar a carinha da Carol. A vendedora já conhece a menina e faz um pacote com as compras, colocando com todo o cuidado sobre os dois pés juntos da Carol, que assim carrega o pacote até sua casa.

Outra coisa que ela pretende fazer é brincar com malabares.  Sabe o que é isso?  São aquelas garrafas feitas de madeira, pintadas de branco, como se fossem pinos de jogo de boliche. É por isso que quem joga aquelas garrafinhas para cima e fica equilibrando no nariz ou na testa se chama malabarista. Alguns desses malabaristas até aparecem na rua, diante do nosso carro, quando o sinal de trânsito está com a luz vermelha para nós.

Por enquanto, ela treina com laranjas. Ela joga com três laranjas. A mão direita joga a primeira laranja para cima.  Quando a laranja está lá em cima, a mão direita lança a segunda laranja. Enquanto uma está subindo, a outra já está caindo na mão esquerda.  Nesse momento a mão direita lança a terceira laranja. E o processo continua. O segredo é movimentar a mão direita mais depressa do que o movimento das laranjas. Com o tempo ela vai aumentar o número de laranjas, até chegar a umas sete ou nove.
Ela tentou fazer esse malabarismo usando ovos, que são um pouco menores do que as laranjas e cabiam melhor na mãozinha dela. O resultado foi que nunca se comeu tanto omelete naquela casa como depois que ela começou esse tipo de treino. Nem ela agüentava mais tanto omelete, motivo pelo qual preferiu voltar às laranjas.

O sonho da Carol é realizar um número sensacional, desses que vão levar o nome dela para a lista dos maiores malabaristas de todos os tempos. Ela vai comprar um fio de prata muito resistente, vai amarrar uma ponta dele na canela do porteiro do teatro onde ela irá apresentar seu número. A outra ponta ela vai amarrar na batuta do maestro que ficará no palco, regendo os músicos que farão aquele tralalalalala que antecede o número final do espetáculo. Embaixo do fio esticado ficarão os boquiabertos espectadores, com seus fraques e roupas longas.


Terminado o repique do tambor, virá um silêncio enorme. Até pum de borboleta vai dar para ser ouvido, diz ela. Aí ela vem lá de fora, pede licença ao porteiro, que lhe estenderá a mão. Ela sobe no fio de prata e vem caminhando lentamente sobre ele. Um pé de cada vez. Às vezes ela finge que vai cair, só para provocar aquele Oh dos que estão vendo o espetáculo. À medida que ela caminha sobre o fio de prata, vem a parte inesperada do show: dos cachinhos dourados da cabeça dela vão saindo colibris, patativas, sabiás, tico-ticos e sanhaços, que voam em círculo por dentro do teatro. O público aplaude, sem imaginar o gran finale, que é como os artistas denominam o ponto mais alto do espetáculo: quando a Carol chega ao palco, o maestro lhe estende a mão e ela desce graciosamente apoiando-se no braço do gentil cavalheiro. Quando ela se volta para o público, do último dos cachinhos de seus cabelos sai uma arara azul, completamente azul, que dará uns vôos pelo palco, gritando “Carol!, Carol!” Depois a arara subirá, subirá, até que o seu azul se misturará com o azul do céu. 


Ainda falta acertar uns detalhes finais. Depois disso ela sumirá do palco? Voltará até a porta pelo fio de prata? Ela diz que ainda tem muito tempo para decidir isso.

15 março 2012

Obscenidades nossas de cada dia

“Ministério Público processa editora para que sejam retiradas do dicionário palavras que indicam preconceito.” (Dos jornais)

Mostrei certa ocasião a meus alunos como as palavras e as expressões têm um destino. Nascem, crescem e, muitas vezes, acabam morrendo. Outras vezes se prostituem, ou, quem sabe?, se regeneram. O exemplo clássico é a palavra formidável, que qualquer garota ficaria feliz de ouvir, referindo-se a ela. Será? Vamos ao dicionário: “formidável - que inspira grande temor, que é perigoso/a, que tem aspecto terrificante”. E você sempre dizendo que tem uma sogra formidável, é ou não é? Pois se o Jarbas não tivesse enterrado o latim, dizendo que a sepultura era o destino de uma língua morta, você saberia que formido, em latim, era o nome que se dava ao nosso conhecido espantalho, destinado justamente a causar medo aos pássaros. Formidável, né não?

A propósito, pergunte aos manos aí da sua rua que vem a ser galera. Onze entre dez deles dirá que é um conjunto de torcedores de uma partida de futebol ou de um show de forró ou de rock. Se você disser a eles que, na verdade, galera é “um antigo navio a vela, de mastreação constituída de gurupés e três mastros de brigue”, como diz tio Aurélio, eles te cobrirão de porradas. Palavra, por sinal, que provém de porrete (é uma síncope de porretada) e não deriva de porra, como muita senhora imagina, ao censurar seu uso pelo neto, aquele boca-suja, supondo que estejamos falando do líquido fecundante produzido pelos órgãos sexuais dos animais machos, o esperma, a que, em linguagem chula, porra se refere, tanto quanto esporro e langonha, ainda segundo o mesmo pai-dos-burros, muito embora eu jamais tenha ouvido esta última e medonha palavra, que mais parece nome de ex-diretor do Banco Central. Aliás, muito embora registre que porra! seja uma interjeição, mestre Aurélio dá a ela o sentido de enfado, impaciência, o que é menas verdade, como se diz por aí. Se alguém se admira com algo, lá vem o pô!, que, segundo o mesmo professor, é forma sincopada do termo que ele xinga de chulo. Se eu digo “pô, que mulherão que virou aquela mina!” eu não estarei mostrando impaciência, nem enfado, mas algo muito diverso, como sabeis.

Pois voltemos à minha sala de aula. Para confirmar o preconceito que encobre as chamadas chulices (na verdade, quando falamos em “baixo calão” estamos admitindo a existência de um “alto calão”, que são os palavrões utilizados pelas classes “superiores”), contei aos alunos a história da Tereza, uma prostituta que engravidou e deu à luz o José. Ela era conhecida na região como Terê, uma abreviatura de seu nome, da mesma forma como o filho passará a ser o Zé. E escrevi na lousa: “José é filho da prostituta Tereza”. A classe, a meu pedido, leu a frase, sem atentar para o destino que os aguardava. Depois de algumas considerações, suprimi o nome da mãe, risquei o José e escrevi no alto “Zé”, seu apelido. E fui suprimindo da profissão da mãe dele todas as letras desnecessárias, pois, da mesma forma como de Tereza ela se tornara Terê, eliminando várias letras do nome de sua profissão, teríamos uma abreviatura do nome da tal profissão, composto apenas da primeira e das três últimas letras da palavra prostituta. E pedi à classe que lesse o resultado. “José é filho da...” O número de alunos que conseguiram falar foi mínimo, embora eu estivesse querendo dizer a mesma coisa que eles haviam dito antes.

Isso para não falar da aluna que eu havia reprovado e que se expressou sem meias palavras: “mestre, você me fudeu!” Verbo esse, aliás, empregado por um advogado para ameaçar um oficial de justiça: “você comigo está fodido!”  Pois tal ameaça redundou em denúncia e condenação. O recurso caiu nas mãos de ninguém menos do que o Alberto Silva Franco, que deu por não caracterizada ameaça alguma, pois a palavra empregada era inespecífica. Ou, mais exatamente, plurívoca. E pode até mesmo ser elogiosa, conforme as circunstâncias, como quando designa valentia: “fulano é um sujeito fodido!” No dia do tal julgamento, a galeria (conjunto de espectadores, que os americanófilos e os comedores de mac-lanche denominam “audiência”, que, como sabemos, é sessão de julgamento judicial) estava repleta, para ter o prazer de ouvir o Silva Franco falar, vezes e vezes, a tal obscenidade. E ele, que é, de fato, um cara fodido, assim o fez. Quem diria!

Falo também (o trocadilho foi involuntário) da distinta senhora que, numa festa, se gabava de haver esculhambado seu desafeto em uma discussão. Apenas por curiosidade, perguntei-lhe o que ela havia feito com os colhões do homem, o que gerou um esporro daqueles, para continuarmos na chulice. E eu fui obrigado a recuar, sem que os presentes percebessem que eu estava indo com o cu para trás, mesmo porque poucos se dão conta da origem da tal palavra. E se numa reunião os componentes de um grupo também forem recuando e alguém ficar sozinho, ele certamente comentará que “ficou na mão”, sem atentar que se está referindo à situação de alguém que, tendo sido abandonado pelo companheiro ou a companheira, não terá outra forma de aplacar a inaplacável libido senão pela masturbação.

E olhe que eu poderia falar sobre as flores, essas maravilhas que Deus espalhou na Terra para encanto de nós todos, que não atentamos para o fato de serem elas, ao fim e ao cabo, o órgão sexual da planta. Olhe para um hibisco, por exemplo, e veja se há algo mais obsceno na Natureza. Ou uma orquídea. Cujo nome, aliás, lembra uma espécie que continha um talo e duas bolotas embaixo, donde o nome escolhido pelo seu nominador: orchis (em grego, “pênis”) e idéa (em grego, “aparência”).

Pensando bem, como as crianças estão entrando na sala, acho melhor fechar o meu dicionário, esse repositório de obscenidades, escrito pelo Aurélio, aquele fescenino, cujo “sobrinho” nos mandou jogar bosta na Geni.

09 março 2012

Curiosidade infantil


Vergonha é um pano preto que você quer para se cobrir naquela hora. Certeza é quando a idéia cansa de procurar e para.” (Adriana Falcão, Mania de Explicação)

- Que que é isto, mãe?
- Ai, Jesus. Onde você pegou isso, menino?
- Na última gaveta da escrivaninha do papai.
- E o que você tinha de ir mexer na gaveta da escrivaninha do teu pai, Quinzinho? Você não sabe que ele não gosta dessas intimidades?
- Eu precisava de uma borracha pra apagar o desenho que eu estava fazendo para a lição da escola e não achei a minha.
- E quem lhe disse que havia borracha na gaveta da escrivaninha do teu pai, menino?
- Vai me dizer que o papai não erra quando ele faz os desenhos dele? Só eu?
- E quem te disse que teu pai faz desenhos?
- E o que ele faz quando fica atrás da mesa mexendo numas folhas de papel um tempão enorme? Aviãozinho é que não é.
- Isso não é de tua conta, moleque. Coloque isso de volta no envelope e reponha onde estava, antes que teu pai chegue.
- E quem te disse que isso veio dentro de um envelope? Foi o carteiro que entregou?
- Chega de embromação, seu Joaquim. Você sabe muito bem o que acontece quando eu perco a paciência, não sabe? Então faça já o que estou mandando
- Mas você não precisa perder a paciência. É só me explicar para que serve isto. Diz: pra que serve?
- Pare de assoprar isso, menino! Pare com isso! Dê isso aqui! Pare de assoprar eu já disse.
- Mas não é para eu colocar de volta na última gaveta da escrivaninha do papai? Então eu não posso devolver.
- É para você preparar a bunda para uma surra inesquecível, seu respondão. É a última vez que eu te mando levar isso de volta para a gaveta de onde você tirou.
- Se eu te entrego eu não vou poder repor na gaveta da escrivaninha do papai, concorda?
- Chega, Joaquim. Chega! Você me mata de vergonha.
- Vergonha de que? Não foram vocês que me disseram para eu perguntar quando não souber alguma coisa? Pois eu estou perguntando: o que é isso na minha mão? Para que serve? Se você não souber responder eu pergunto amanhã à dona Clotilde. Ela sabe tudo e responde a todas as perguntas que os alunos fazem, sem sentir vergonha.
- Nem pensar numa coisa dessas. Isso não sai desta casa nem que eu tenha de trancar a porta da frente e engolir a chave.
- E como você vai abrir a porta quando o papai chegar? Será que antes disso a chave já saiu de você?
- Positivamente, você tirou o dia para tirar a minha paciência, com uma pergunta mais idiota do que a outra. Chega, Joaquim. Cê agá e. Che-ga!
- Afinal de contas você sabe ou não sabe para que serve isto?
- Sei mas não te conto, pronto.
- Não é você que vive dizendo que não se deve ser egoísta? Se sabe, por que não me conta?
- Porque eu não quero. Eis o motivo: eu não quero.
- Tudo bem. Amanhã é quarta-feira, dia da visita da vovó Ana e eu pergunto pra ela. Aposto que ela sabe.
- Nem pensar, Quinzinho, nem pensar. Você quer matar minha mãe do coração? O que ela vai pensar se você fizer essa pergunta a ela?
- Ela vai pensar que você não está ensinando ao neto dela aquilo que ele quer saber. Só isso.
- Está bem. Está bem. Vamos fazer uma negociação, como diz o seu pai que faz com os operários da fábrica quando eles fazem greve. Fazemos nós dois uma negociação. Topa?
- Mas eu não estou de braços cruzados, estou? Não estou fazendo greve. Estou? Ao contrário, estou há meia hora querendo saber o que é isto na minha mão e para que serve.
- Escute, Quim. É uma comparação. O que estou querendo dizer é que nem sempre nós conquistamos aquilo que desejamos. Um operário quer um aumento de 15% e, com uma boa negociação, a empresa fecha acordo por 10%. Ou concede outro tipo de benefício, para por fim na greve.
- E para quanto você vai aumentar a minha mesada?
- Eu não estou falando em dinheiro, garoto. O acordo pode ser de outro tipo. 
- Nem pensar, como diz você, mami. Não foi o papi que disse que numa negociação nós devemos levar em conta as cartas que o adversário tem na manga? Somos adversários, não somos?
- Sabe o que os guardas da empresa fazem quando os operários não são razoáveis?
- Que é isso?
- Já disse que não vou dizer.
- Eu perguntei o que é “razoáveis”.
- Esquece, Quim. Esquece. Mais dez minutos e teu pai vai chegar e vocês que se entendam. Eu desisto.
- Pois fique sabendo a senhora que eu estou careca de saber o que é isto e para que serve. Minha namorada me explicou tudinho. Eu estava só tirando um sarro com a tua cara.
- Quinzinho!
- E a Estelinha até me demonstrou como se coloca. Senta aí que eu te conto tudo.

02 março 2012

Chico louco(1)


Chico Louco era o singular apelido do magistrado, nome que dispensa maiores explicações, sendo famosa na comarca a motocicleta com que Sua Excelência cruzava as ruas da cidade, passando vezes e vezes diante do quartel local, sempre em alta velocidade, para ser homenageado com os cumprimentos do soldado de plantão na fronteira guarita, o qual lhe batia sonora continência, juntando estrondosamente os dois cascos tal como lhe determinava o RDE, a cada vez que isso se dava. E ele que não o fizesse! Se não for eu, a quem ele irá saudar para justificar o soldo recebido? dizia Sua Excelência.
Estando a acumular comarcas no período de férias, visitava-as a bordo de sua Harley Davidson devidamente equipado como convém a quem se dispõe a tal aventura que insta não dar azo às Parcas para não abrir vaga na carreira precipitadamente para gáudio de seus queridos colegas, como também dizia Sua Excelência e punha aquele belo capacete que parecia ter saído da falecida cabeça de algum soldado ariano do III Reich. E havia advogados que aceitavam carona no incômodo veículo, olha a temeridade! como o doutor fulano, que, no entanto, não conseguiu chegar a seu destino porque, respeitoso em demasia, furtou-se de circundar a cintura de Sua Excelência com os necessários braços que manteve ao vento até que numa curva, vencida com franco exibicionismo por parte do piloto, Sua Senhoria estatelou-se no asfalto, fato singular e inesperável de que Sua Excelência só tomou conhecimento quando, ao estacionar sua possante máquina na garagem do fórum do seu destino, deu pela ausência do causídico. Ingrato! Nem despedir se despediu!
Em sua comarca, como em muitas mais, a sexta-feira era destinada a trabalhos burocráticos, forma eufêmica de dizer que o juiz não aparece no fórum, em nome da chamada semana inglesa ou das inúmeras sentenças em atraso que insta por em dia e como fazê-lo tendo de atender partes e advogados? E foi precisamente numa sexta-feira que o doutor sicrano, titular do conhecido escritório de advocacia sicrano e associados, sendo estes inúmeros, mais os não associados também inúmeros e os inúmeros estagiários e inúmeras estagiárias, ditos solicitadores acadêmicos naquele tempo, desceu de um táxi aéreo no aeródromo local, que ele não era homem de vencer distâncias de automóvel, mesmo porque a despesa seria lançada na conta do augusto cliente, sendo que o fato de o próprio titular do escritório e não algum dos inúmeros associados ou dos inúmeros advogados não associados ou ainda algum dos inúmeros estagiários, ditos então solicitadores acadêmicos, não o terem feito já era indicação da magnitude da causa e do poderio econômico do cliente.
Chegado ao fórum, o ilustre advogado, desses de chamar desembargador de você, ali não encontrou vivalma para espanto seu que supôs haver chegado ao local em dia de feriado municipal, o que logo foi desmentido pelo porteiro que lhe explicou que Sua Excelência estava fora em correição. Mas cuida-se de medida extrema urgente e inadiável que insta seja submetida a Sua Excelência de imediato, sem tardança alguma, diz o advogado. A correição é no cartório da dona Geny, diz o porteiro com seriedade. E onde fica esse cartório senão no fórum como os demais? Esse fica num local mais retirado, como esclareceu então o porteiro, o senhor tem de pegar um táxi e ele lhe conduz até lá, sugeriu ele a errar a flexão do objeto direto como se indireto ele fosse.
E o nosso advogado que chama desembargador de você foi até o centro da cidadezinha onde perguntou: quem saberá levar-me ao cartório de dona Geny e todos eles disseram qualquer um de nós e ele escolheu o carro mais confortável e com ar condicionado sem atentar para isso de primeiro aquele, eu estou pagando eu escolho, e o carro mais confortável levou-o por estrada de terra até um local onde se avistava um sobrado situado no alto de uma pequena elevação ricamente gramada, com uma discreta rampa que levava até à porta principal do edifício, rampa essa cercada de flores que me pareciam ser petúnias não tenho muita certeza, talvez alamandas.
E ele agora tira do bolso direito interno do bem cortado paletó a carteira de couro alemão e procura ali umas notas para pagar o taxista, que lhe estende a palma da mão direita, deixe-se disso, é por conta da casa. Por conta da casa? Isso mesmo, tenha uma boa tarde e aproveite.
E o advogado com a pasta de couro também alemão debaixo do braço cruza o belo portal do sobrado e é atendido por uma bela moça que lhe diz em que posso servi-lo? Dona Geny por gentileza! Quem deseja? Diga que é o doutor sicrano, advogado em São Paulo, que tem uma petição para despachar em regime de urgência com o meritíssimo. Um momento, um momento, diz ela e se põe a subir a escada de mármore que havia à esquerda, com corrimão vazado que permitia ao importante advogado apreciar as belas pernas da moça, o que para ele não era muita novidade porque em seu escritório para serem admitidas como estagiárias as moças deviam de.
Pode subir, doutor, pode subir. A voz feminina vinha lá de cima e não pertencia à moça que o atendera e ele agora está a subir a mesma escada, sem mostrar suas feias pernas porque o terno de tropical inglês impede a exibição delas, para sorte de eventuais espectadores, e logo ele está lá em cima, sendo atendido por uma senhora um tanto gordita cabelos louros penteados com laquê, colares e mais colares de falsas pérolas a cobrir-lhe o gordo pescoço, sendo que a falsidade das pérolas foi o juízo que ele fez, além de um decote que se poderia chamar de generoso, não mais do que isso, o que lhe trouxe à mente a velha anedota da mulher peituda com decote vasto onde homenageava em um broche o quadro célebre do Leonardo da Vinci, ali reproduzido em miniatura. Ao que ela lhe perguntou ao homem que não lhe retirava os fixos olhos dos peitos: o senhor está admirando a Ceia do Senhor? E ele: Não, estou é admirando os seios da senhora!
Acompanhe-me, doutor, acompanhe-me. E eles seguem pelo corredor acarpetado com uns desenhos de flores que se repetem a cada passo que eles dão até uma porta lá no fundo, em que ela bate duas vezes com dois dedos dobrados, com delicadeza, entre entre, e agora a mulher abre a porta em que havia batido delicadamente por duas vezes com os dedos dobrados e faz um sinal solene ao advogado que trata desembargador de você, indicando-lhe que entre, o que ele faz e ela fecha a porta sem entrar.
O advogado agora está com o chapéu de autêntico panamá na sua mão direita dele, pasta de couro alemão em baixo do braço esquerdo também dele, a olhar curioso as paredes daquela sala onde faunos e sereias dançam alegremente, ele não imagina como sereia poder dançar sem ter pernas, mas é isso que as pinturas sugerem, sendo que as pinturas parecem ter sido feitas por algum artista local, coisa que não se confundiria jamais com as pinturas das paredes da Igreja do Santíssimo Sacramento, no Vaticano, para citar apenas uma, que ele visitou naquele Ano Santo, como representante da Ordem dos Advogados, ele que é congregado mariano e membro da Sacrossanta Ordem dos Templários, partícipe desde remotos anos da anual festa dedicada a Santo Ivo, com direito de publicação da conferência então feita, dita homilia, no boletim da AASP, em folhas destacadamente azuis, e que jamais havia suposto entrar em uma sala tão insólita como aquela, sendo insólita a palavra de que ele se utilizou quando, em reunião ordinária, narrou a seus inúmeros associados aquela incrível aventura de que fora protagonista.
E a petição, foi despachada ou não foi? Calma, calma, uma coisa por vez, diz ele, fazendo uma pausa para tomar um gole da água que o aguarda ao lado, em copo de cristal da Boêmia onde quer que seja isso e lhe pergunta aos colegas são servidos? E uns dizem sim e outros dizem não e a maioria fica silente esperando o resto da história.
Pois não, doutor, foi a voz que ele ouviu, o que muito o encabulou pois, a falar verdade, não havia reparado que havia um homem naquela incrível sala. Um homem inteiramente nu, se permitido for imaginar, pois da cintura para baixo ele estava protegido por uma alvíssima espuma de sabonete Phebo, se não me falha o olfato, já que se encontrava o tal homem sentado dentro de uma banheira, mais exatamente um arremedo de um nipônico ofurô, tendo na boca um charuto certamente vindo de Havana se não lhe falham as narinas profissionais do doutor sicrano, ele mesmo um fumeur de bons charutos, o que ele faz no clube destinado especificamente a isso, fiquem os senhores sabendo! e aquele olor que lhe era muito familiar, pois charuto não tem cheiro mas olor, como ele disse aos colegas que se divertiram muito com a tirada, não fosse ele o chefe deles todos, e o homem do charuto na boca diz novamente pois não pois não.
Quer dizer que o senhor? Doutor, estamos perdendo tempo, diz o homem nu enquanto enxuga as mãos em uma toalha felpuda branca branca como a fumaça do charuto, e logo lhe diz o senhor tem uma caneta aí doutor, que a minha ficou no paletó. Pois não, pois não, diz o doutor sicrano tirando sua caneta preta do bolso do paletó e entregando-a ao homem sentado dentro do ofurô, que repara que ela tem uma estrela branca nos fundos externos da tampa, e com a outra mão o homem do charuto pega a petição e, com incrível perícia, escreve ali mesmo jota conclusos com urgência dia tal do mês tal e ano tal e assina com aquela assinatura escandalosa que ocupa quase meia página, ressalvado o exagero, e devolve a caneta, que olha demoradamente antes de entregar com a petição ao advogado que viera da capital e que agora vai pedir à secretária da dona Geny que lhe chame um táxi por obséquio, que o vai levar de volta ao fórum, onde ele protocolarizará, como dizem os pernósticos, aquela petição, se fosse para receber um despacho desses qualquer estagiário poderia ter vindo, resmunga ele que depois irá com o mesmo táxi até o aeródromo onde o aguarda o aviãozinho Bandeirante que o levará de volta à capital, onde, dentro de alguns dias, ele encontrará os amigos desembargadores no reservado restaurante do Jockey Clube, quando começará a conversa dizendo vocês não sabem o que me ocorreu nesse fim de semana!


[1] Do livro Menas verdades (Causos forenses ou quase)