30 agosto 2013

A moral de cada um


“Aos amigos tudo; aos inimigos nada; aos indiferentes a lei.” (Getúlio Dorneles Vargas, Promotor de Justiça e Presidente da República do Brasil)

 O filme O leitor que rendeu, merecidamente, o prêmio de melhor atriz para Kate Winslet, é baseado no livro de mesmo nome, no qual se alude a um fato que aqueles que se debruçaram sobre o Tribunal de Nuremberg conhecem de sobra: até onde você é livre para contestar uma ordem que considera imoral? Eu mesmo refiro-me ao tema em livro lançado pelo Instituto Memória, Justiça & caos, onde me demoro em considerações sobre a legalidade/ilegalidade do julgamento daquele tribunal.
Sabemos que o chamado Eixo, composto de Alemanha, Itália e Japão, avançava sobre países vizinhos, numa típica guerra de conquista, ao mesmo tempo em que os alemães promoviam um pavoroso programa de “aprimoramento da raça ariana”, que compreendia a eliminação de homossexuais, ciganos, aleijados, negros e judeus. A certa altura, o Japão resolveu bombardear território norte-americano. Uma série de investidas contra Pearl Harbor causou danos de monta aos norte-americanos, que tiveram o motivo que lhes faltava para entrar na guerra e botar os pés na Europa, de onde nunca mais sairiam. Até hoje historiadores perguntam o que pretenderiam os japoneses provocando quem estava quieto do outro lado do mundo. E também se perguntam como o governo norte-americano não detectou esse possível ataque. Muitos e muitos anos depois historiadores indagariam como o serviço de contra-espionagem norte-americano também não detectou o ataque terrorista às torres gêmeas de Nova Iorque, mas isso é outra história.
O fato é que, a pretexto de convencer os adversários de que a guerra estava perdida para eles, os norte-americanos despejaram bombas atômicas sobre Nagasaki e Hiroshima. Considerando que o líder adversário era alemão, porque lançar aquelas bombas sobre cidades japonesas? Havia, de fato, motivo para isso ou aquilo foi um simples ato de vingança pelas mortes ocorridas em Pearl Harbor?   
Encerrada a guerra, criou-se um Tribunal para julgar eventuais crimes de guerra. O despejo aparentemente desnecessário das bombas atômicas constituíram, em tese, crimes de guerra, mas apenas os dirigentes nazistas foram submetidos a julgamento pelos crimes referidos. O que impressionou os observadores neutros, que assistiram aos julgamentos, foi o fato de muitos desses réus serem pessoas normais, com família bem constituída, que se limitaram a cumprir as leis alemãs.
Veja-se o contraste: é difícil imaginar que algum alemão continuasse vivo se, por questão de consciência, se recusasse a cumprir as ordens que lhe eram dadas por uma autoridade nazista. O mesmo não se pode dizer dos pilotos que despejaram as bombas atômicas. Aqueles foram condenados; estes nem foram processados. Anos depois, os norte-americanos despejaram bombas de napalm sobre número incontável de vietnamitas. Quem viu a famosíssima foto da menina Phan Kim Phuc jamais se esqueceu disso. O massacre de My Lai produziu quantos condenados? A quais penas? Muitos norte-americanos, como Muhammad Ali, recusaram-se a lutar naquela guerra. E estão vivos até hoje. Preciso dizer mais?
O Exército de Israel também tem utilizado bombas proibidas contra seus vizinhos. E daí?
Pois no livro e no filme referidos acima discute-se exatamente isso: aquela jovem alemã poderia recusar-se a fazer o que lhe havia sido determinado por seus superiores? E aquele jovem estudante de Direito tinha o direito de silenciar o que sabia, para não se indispor com os demais membros de sua comunidade?
Para encerrar este mero memento, faço-lhe algumas perguntas: se você fosse aquela moça ou aquele jovem, você teria agido diferentemente? Se você hoje morasse em Israel, aplaudiria as entidades que pretendem submeter a um Tribunal Internacional os responsáveis pelo despejo de bombas incendiárias sobre a população do Líbano e por aquilo que passará para a História como o “Massacre de Gaza”?
Algo semelhante está para acontecer na Síria, pois, antes mesmo de apurar-se quem despejou armas químicas sobre a população civil já se conclui que “só pode ser o Bashar al-Assad”.
No Brasil de hoje, o que temos? A Câmara dos Deputados passa por cima da Constituição ao manter o mandato de um deputado cujos direitos políticos estão suspensos automaticamente por sua condenação criminal e consequente prisão. Nosso Judiciário, cujos membros deveriam, por espelhar, em tese, o padrão ético médio de conduta de cada um de nós, dar-nos exemplos de bom proceder, está muito longe disso. Ministros da Suprema Corte batem boca como se estivessem na apuração do resultado de desfile de escolas de samba. Só falta trocarem sopapos.
Seria enfadonho rememorar fatos semelhantes para ilustrar a crise de moralidade que assola o mundo e, em particular, o nosso país. Aonde dará isso tudo?

23 agosto 2013

Deus


"Putas quid est Deus?" (clique aqui)
         

            “- Você acredita em Deus, vô?”
 Será que os netos não têm mais nada para perguntar aos seus avôs?  Eu aqui descansado, tentando decifrar um livro do Guimarães Rosa, e vem esse fedelho me desafiar com suas dúvidas existenciais.
Marquei a página do livro até onde eu havia conseguido chegar, coloquei-o sobre a mesinha, ao lado do abajur e de outros três livros que disputam entre si a prioridade da leitura, sentei meu neto em meu colo e tomei fôlego para uma conversa longa.
Como falar de algo tão transcendente sem ser pedante nem ser, como direi?, ingênuo? Conheço meus netos e sei que eles estão sendo criados com toda liberdade e num clima de diálogo, sem a imposição de verdades absolutas, como era comum no meu tempo de criança e como sei que ainda ocorre em certas famílias, principalmente quando os pais não têm tempo para dialogar com os filhos ou, por modéstia ou ignorância, se acham sem competência para isso.
“- Para que eu fale de um assunto desses, primeiro quero saber o que você já sabe a respeito dele” comecei, malandramente, invertendo, de certa forma o problema por ele trazido.
Ele falou de coisas vagas, fantasiosas, que, certamente, havia aprendido em aulas de religião. São os conceitos tradicionais, que falam na criação do mundo, no surgimento do primeiro casal, em céu e inferno e coisas tais. Uma criança que tem o mundo diante de si, por força da Internet, aprendendo ali o que deve e o que ainda não precisa aprender, aceitará essas histórias que intimidavam nossos pais e nossos avós? Será que não há um modo mais adequado para despertar a criança para os valores transcendentais? Para a chamada conduta ética?
Abri um dos livros que estavam sobre a mesinha e dei para ele ler uma das páginas. Era um desses best-sellers do dia, traduzido para o português, numa linguagem sem afetação. Ele leu atenciosamente o texto por duas vezes e depois, a meu pedido, explicou-me, sem grande dificuldade, aquilo que havia lido.
Depois, entreguei a ele um livro de poesia e repeti o mesmo processo. Agora ele embatucou na hora de me explicar o que havia lido. Olhou o nome do autor e me indagou quem era Fernando Pessoa. Sem comentar sua dificuldade, indaguei-lhe se ele seria capaz de cantar as primeiras estrofes do nosso hino nacional, pois eu já sabia que uma vez por semana eles são obrigados a cantá-lo no colégio. Ele sapecou o “ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heroico o brado retumbante.” Mandei que ele parasse aí e me explicasse, com suas palavras, o que aquilo queria dizer.
“- Agora você me pegou” disse ele.
“- Quer dizer que vocês cantam o nosso hino todas as semanas e os professores nunca lhes explicaram o que quer dizer isso?” indaguei.
“- Eu nem sabia que isso quisesse dizer alguma coisa” disse o cínico. Em lugar de um sermão sobre a má qualidade do ensino em nosso país, propus a ele que puséssemos em ordem direta aquela frase. “Aliás esse é um exemplo daquilo que os gramáticos chamam de hipérbato, ou seja, a colocação das palavras em uma frase fora da ordem a que estamos acostumados. Logo logo o teu professor de português lhe ensinará isso.”
“- Algum dia ainda vou aprender isso tudo e serei tão culto como você, vô”, bajulou-me o garoto. Passamos então à ordem direta daquela pomposa frase: “as margens do (riacho do) Ipiranga ouviram o brado de um povo heroico”. Eis o que o poeta quis dizer.
“- Mas um riacho tem ouvidos, vô?”
“- Aí é que entra algo que nos ajuda a entender a linguagem religiosa. Nem sempre aquilo que está sendo dito significa aquilo que parece significar. Por causa disso, surgem pessoas que se dispõem, de boa ou de má fé, a mostrar às pessoas o significado daquilo que nossa inteligência não consegue entender”.
“- Eu, por exemplo, não entendi nada de todo esse seu discurso, vô.” 
“- Então me diga: você acredita que exista a Austrália?”
“- Claro, vozão. Eu vi na televisão um programa que mostrava o deserto da Austrália e os cangurus saltando pra todo lado.”
“- Mas quem lhe garante que aquele deserto é mesmo na Austrália e não na África? Quem lhe garante que aqueles animais estranhos, que têm as pernas da frente bem menores do que as pernas de trás, não é um truque de cinema, um efeito especial como alguns personagens da série Guerra nas Estrelas?”, provoquei.
O garoto ficou sério, pensou um pouco e saiu-se com esta: “Quer dizer que eu não devo acreditar em tudo que me mostram? Em tudo que me contam?”
Dei uma sonora gargalhada e um abraço no meu neto mais velho.
“- Você agora falou como certos filósofos gregos, que diziam exatamente isso: desconfie sempre. Eu não aceito essa filosofia, porque ela torna a vida um inferno. Já imaginou eu pondo em dúvida se você é meu neto, pondo em dúvida se a água que sai da torneira está boa para se beber, se a comida que me servem no restaurante não está envenenada, se a notícia que li no jornal é mentirosa e assim por diante. Quem consegue viver assim?”
“- Mas eu também não posso aceitar tudo o que me dizem, é ou não é?” diz ele com seriedade.
“- Viu como isso é complicado? Pois quando alguém, por mais importante que seja, afirma que Deus lhe disse alguma coisa, a primeira pergunta que nossa inteligência faz é: se ninguém sabe como é Deus; se ele, ao que tudo indica, não usa carteira de identidade, como é que aquela pessoa, mesmo estando de boa fé, sabe que falou com Deus?”
“- Então esse problema não tem solução”, concluiu meu esperto neto primogênito.
“- Algumas pessoas, de fato, entregam os pontos e chegam a afirmar que Deus não existe, o que é uma grande bobagem. O fato de eu nunca ter estado na Austrália e nunca haver tocado num canguru não me dão a certeza de que eles não existam. Se eu pegar um avião e for à Oceania, que é um outro continente, eu poderei saber, sem ter de confiar na palavra dos outros, se a Austrália e os cangurus existem ou não.”
“- Isso quer dizer que, se eu pegar um foguete e for pelo espaço eu acabo descobrindo se Deus existe e onde ele está“ disse o garoto.
A conversa estava indo mais longe do que eu esperava, mas eu não poderia encerrá-la sem dar um fecho razoável ao assunto, para não deixar meu neto mais confuso do que estava antes. Dizer a ele que só na nossa Via Láctea, uma das milhões de galáxias que há no universo, deve haver mais de 200 bilhões de estrelas e que, de acordo com qualquer cálculo de probabilidades, deve haver algum outro ambiente no espaço sideral onde a vida, tal como a conhecemos na Terra, é possível, seria algo adequado à idade dele? 
“- Então me responda o seguinte: o que é o sol para você?” indaguei-lhe.
O garoto, sem pestanejar, foi objetivo: “é uma bola de fogo que circula no céu e produz luz e calor.”
“- Bravo. Bem na mosca. Se você olhar esse mesmo céu à noite, especialmente quando não há lua, você verá um número incalculável de estrelas. Que é uma estrela?”
“- É um pontinho luminoso azulado”.
“- Pois fique sabendo que a maioria daqueles pontinhos luminosos azulados são também bolas de fogo, que produzem luz e calor. Em torno de cada uma dessas estrelas talvez girem planetas, como ocorre com o nosso sol, que, saiba você, é também uma estrela, menor do que muitos daqueles pontinhos azulados.“
A surpresa de meu neto, diante de minha revelação, foi muito menor do que imaginei que seria.
“- E o que isso tem a ver com Deus?” foi tudo o que ele disse.
“- Eu estou tentando mostrar que tanto o sol como as demais estrelas que vemos à noite representam uma parcela mínima, quase insignificante de um conjunto de estrelas que se chama Via Láctea. A Via Láctea é apenas uma das inúmeras galáxias que compõem o universo, cujo número exato nós desconhecemos.”
“- E onde entra Deus nisso tudo?” indagou o garoto, já demonstrando certa impaciência.
“- A nossa experiência nos ensina que tudo o que existe teve um criador. Se você vê na calçada um montinho de cocô” disse eu, usando, de caso pensado, um objeto de que ele certamente não se esqueceria, “você conclui que o criador daquele objeto foi um cachorro, até porque cocô não surge do nada. Certo?”
Ele não tinha como discordar de mim.
“- Ocorre, porém, que você não tem como saber qual a raça nem a cor do criador daquele objeto. O que, no entanto, você consegue saber é que o criador é muito maior do que aquilo que ele criou. De acordo?”
Ele não deixou por menos: ”você está tentando me dizer que Deus é um enorme cachorro e que esses bilhões de estrelas são como cocôs que ele deixou no espaço?”
Não pude deixar de dar uma gargalhada estrondosa, diante da irreverência do garoto. Agora era aproveitar a deixa.
“- Em termos poéticos, sua comparação não seria de se jogar fora, principalmente se levarmos em conta o que os homens fizeram com nosso planeta. Na verdade, o que estou tentando mostrar é que, pelo fato de nós conhecermos a obra, isso não significa que conseguiremos conhecer o seu autor. No caso do universo, nem podemos dizer que conhecemos a obra toda, pois ainda sabemos muito pouco a respeito dele. A rigor, nós sabemos quase nada. Quantas galáxias ele tem? Isso compreende quantas estrelas? Qual o tamanho do espaço ocupado por isso tudo? Nós não temos resposta para essas perguntas.”
“- E Deus deve ser maior do que isso tudo” diz meu neto, deixando-me emocionado.
“- É exatamente isso. Se nós não temos condição de conhecer a obra criada, como podemos atrever-nos a dizer que conhecemos seu criador, que, como bem disse você, deve ser maior e mais complexo do que ela?”
“- E como saímos dessa, vô?” indaga-me o garoto, com certa apreensão na voz.
“- Acho que a solução mais prática é esta: a nossa inteligência nos diz que nós nascemos para sermos felizes. E também ela nos mostra que nós não conseguimos ser felizes se as pessoas à nossa volta não forem também felizes. Se a ideia de quem nos criou foi a de permitir que cada um de nós alcance a felicidade, podemos extrair disso uma regra geral: não faça ao próximo aquilo que você não gostaria que ele lhe fizesse. E trate o próximo como gostaria de ser por ele tratado.”
“- Ou eu irei para o inferno. É isso?” indaga o guri.
“- Eu não gosto de falar em céu e inferno, porque acho que podemos ensinar as crianças a descobrir que fazer a coisa certa traz um prazer que não depende de uma futura gratificação. E que fazer a coisa errada acaba causando um enorme mal-estar, com sentimento de culpa e arrependimento, que fará a pessoa concluir que esse não é o melhor caminho. Talvez esse sofrimento é que seja o verdadeiro inferno.”
“- Acho que por hoje chega, vozão. Tenho que pensar em tudo isso, que já é muito para minha cabeça”, disse meu neto.        

            Finda a exposição, meu primogênito deu-me um beijo no rosto e saltou do meu colo. Antes que ele se fosse, fiz-lhe uma última pergunta, que, de certa forma, concluía tudo o que eu havia tentado ensinar-lhe.
“- Você beijou meu rosto porque se sente bem quando está comigo? Porque sabe que isso me faz feliz? Ou porque está interessado em ganhar um bom presente no seu aniversário?”

 

16 agosto 2013

Entre o temor e o dever

 

“'Quem não deve, não teme', diz Joaquim Barbosa sobre apartamento adquirido por ele em Miami” (Dos jornais)

 “São deveres dos magistrados... manter conduta irrepreensível na vida pública e particular.” (LOMAN, artigo 35, VIII)

 

Segundo se tem noticiado e não foi negado pelo envolvido, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Joaquim Barbosa, comprou, a vista, um apartamento em Miami, nos EUA, em maio do ano passado, usando uma empresa que ele abriu para obter benefícios fiscais no futuro, por nome Assas JB Corporation. Não constou do noticiário qual a natureza da empresa (civil ou comercial), quem são seus sócios componentes nem quais as atividades a que se propõe. O valor do imóvel é estimado no mercado entre R$ 546 mil e R$ 1 milhão, valor que, segundo o Ministro, teria saído inteiramente de seu bolso.

 Entretanto, segundo se diz, o procedimento é perfeitamente legal e costuma ser adotado por outros brasileiros que investem em Miami. Se, em tais casos, o adquirente ou seus herdeiros quiserem vender o imóvel, o custo será maior do que se ele tivesse registrado o apartamento em seu nome. Empresas pagam 35% sobre os eventuais lucros. Pessoas físicas recolhem 15%. De acordo com a legislação local, porém, o Estado da Flórida poderia ficar com até 48% do valor do imóvel na hora da transferência para os herdeiros se ele fosse registrado em nome do cidadão Joaquim Benedito Barbosa Gomes. Como o apartamento foi adquirido por uma pessoa jurídica, em tal caso não haveria cobrança de imposto, pois as ações da empresa seriam transferidas aos herdeiros sem alteração quanto ao proprietário do imóvel, a tal Assas JB Corporation.

Tal fato presta-se a algumas considerações, mesmo porque nem sempre aquilo que é legal é também moral, como sabemos todos.

 Em primeiro lugar, os atos humanos são, em geral, informados de uma causa, que, quase sempre, diz com sua finalidade. Ao constituírem uma empresa, seja civil, seja comercial, os sócios têm em mente uma atividade duradoura, que compreende a prática de atos reiterados, que envolvem bens e/ou serviços. Uma empresa inativa é um autêntico contrassenso.

Bem por isso, afirmou o E. Superior Tribunal de Justiça, ao julgar os ED no REsp 1214382/RS (2010/0181061-6), relatado pelo Min. Humberto Martins e julgado em 07 de Dezembro de 2010, que “a sanção aplicada à contribuinte – cancelamento do CNPJ – deu-se
em decorrência da conclusão de que a empresa contribuinte não
existia, de fato, após avaliação de toda a documentação apresentada. Legalidade da sanção, com amparo no disposto no art° 81 da Lei n° 9.430/96, regulado pela IN 200/2000 da SRF, porquanto visa coibir as chamadas empresas 'fantasmas' ou 'laranjas', fiscalizando a atuação de estabelecimentos que agem por conta própria e por ordem de terceiros, possibilitando a real identificação das empresas que exercem suas atividades dentro dos moldes da legalidade."

Por outro lado, segundo se diz no noticiário, inúmeros brasileiros costumam aplicar seus recursos no Exterior, onde as vantagens fiscais são convidativas. Isso implica, em primeiro lugar, a remessa de numerário ao Exterior, o que exige um procedimento específico que, aliás, nem todos os brasileiros observam, como se verificou, por exemplo, no famoso Processo 470, dito “do mensalão”.

 No julgamento do Habeas Corpus n° 243889 (2012/0109202-3), relator o Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 11 de Junho de 2013, o Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade de afirmar a necessidade de examinarem-se cuidadosamente as circunstâncias que envolvem a remessa de numerário para o Exterior, pois, não poucas vezes “o modus operandi da suposta organização consiste na criação de empresas ‘de fachada’ ou ‘fantasma’, em nome de sócios ‘laranja’, com pouco ou nenhum patrimônio, que teriam a finalidade de atrair os ônus fiscais da cadeia produtiva, de modo que as empresas em que realmente estão congregados os fatores de produção e seus controladores ficassem imunes à tributação, tendo sido apurado, inclusive pelo COAF - Conselho de Controle de Atividades Financeiras, movimentação financeira expressiva, oriunda de empresas que não possuiriam capacidade econômica para tanto”

Naquele caso, a paciente figurava como investigada, tendo em vista ser ex-esposa do "cabeça" da organização criminosa, aparecendo como sócia e procuradora de várias empresas pertencentes, em tese, à organização, com inúmeros vínculos demonstrativos de sua intensa participação nas atividades criminosas e aquisição de vantagens a partir dessas atividades. Ao denegar o Habeas Corpus n° 88590/SP (2007/0186473-2), relatado pela Min. Laurita Vaz e julgado em 28 de Março de 2008, afirmou o mesmo tribunal que “uma coisa é desconstituir o tipo penal quando há discussão administrativa acerca da própria existência do débito fiscal ou do quantum devido; outra, bem diferente, é a configuração, em tese que seja, de crime contra a ordem tributária em que é imputada ao agente a utilização de esquema fraudulento, como, por exemplo, a falsificação de documentos, utilização de ‘empresas fantasmas’ ou de ‘laranjas’ em operações espúrias, tudo com o claro e primordial intento de lesar o Fisco.”

No julgamento do Habeas Corpus n° 162957/MG (2010/0029590-2), relatado pelo Min. Og Fernandes e julgado em 04 de Dezembro de 2012, teve o mesmo Tribunal a oportunidade de discorrer sobre o processo de ‘blindagem patrimonial’, que consiste na colocação de empresas em nome de pessoas físicas de fachada (‘laranjas’) e pessoas jurídicas de fachada (off-shores), com o objetivo de "blindar" os seus respectivos patrimônios, protegendo-os de eventual execução fiscal.

Desnecessário enfatizar que ninguém jamais sugeriu fosse esse o caso da conduta do Ministro Joaquim Barbosa. Entretanto, há a considerar o que vem contido no artigo 36 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que diz ser vedado ao magistrado exercer o comércio ou participar de sociedade comercial, inclusive de economia mista, exceto como acionista ou quotista, bem como exercer cargo de direção ou técnico de sociedade civil, associação ou fundação, de qualquer natureza ou finalidade, salvo de associação de classe, e sem remuneração.

Isso sugere algumas indagações: a) qual a natureza da empresa Assas JB Corporation?; b) quem são seus sócios componentes?; c) como se constituiu seu capital social? d) quem é que a dirige?; e) quais os atos que já praticou desde que instituída?

Digno de considerar ainda que, segundo o contido no artigo 299 do Código Penal, constitui falsidade ideológica “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”.

A aquisição de um imóvel é, sem a menor dúvida, fato juridicamente relevante, quando mais não seja porque caracteriza fato gerador de tributo. Constituir uma empresa e, para permitir sua existência, destinar-lhe numerário, é ato natural e corriqueiro, respondendo, a partir daí, pelos encargos fiscais dela ela mesma, pois societas distat a singulis. Se – estamos falando em tese – pessoas físicas reúnem seus recursos e constituem uma empresa com a finalidade única de alterar, sem base na realidade, o fato gerador de tributo, beneficiando-se elas e/ou seus herdeiros disso, estaremos, de fato, diante de um procedimento que conta com o patrocínio da Moral e do Direito? Essa empresa tem existência real?

Como ressaltou o E. Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 130 MC/DF, sendo relator o Min. Ayres Britto, “princípio constitucional de maior densidade axiológica e mais elevada estatura sistêmica, a Democracia avulta como síntese dos fundamentos da República Federativa brasileira. Democracia que, segundo a Constituição Federal, se apoia em dois dos mais vistosos pilares: a) o da informação em plenitude e de máxima qualidade; b) o da transparência ou visibilidade do Poder, seja ele político, seja econômico, seja religioso.”

 Esperemos que o Presidente do E. Supremo Tribunal Federal, homem extremamente severo no que diz com o comportamento alheio, preste, em nome da transparência ali referida, os esclarecimentos que a nossa sociedade merece receber, independentemente de qualquer providência investigatória, que se faria necessária em outras circunstâncias.


 







 


 





 

 

 


09 agosto 2013

O Bilhete


Toda cidade tem seu maluquinho, alguém que serve de diversão para os sádicos, que gostam de expô-lo nas situações mais ridículas. Vemo-los equilibrando-se em sapatos de salto alto, ou com uma peruca ruiva, colaborando de boa fé para as  maldades alheias. E sempre sorrindo.
Nas grandes cidades, como São Paulo, certamente cada bairro tem o seu. Ou mais de um. Quase sempre granjeiam algum tipo de simpatia, mesmo porque são, no geral, inofensivos.
Convivi com um deles. Seu nome era Burzeguim. Quem lhe lançou o apelido? Quando? Ninguém sabia. O que todos viam era aquele homem, com a idade indefinida dos mendigos, circulando permanentemente pelas ruas do bairro, a puxar, para cima e para baixo, um carrinho de feira repleto de pacotes de tamanhos os mais variados, provocando a curiosidade de tantos. Que haveria ali? Jamais alguém conseguiu saber, pois ele desconversava quando indagado a respeito. Seus andrajos eram sempre os mesmos, embora nas noites mais frias alguma alma caridosa lhe doasse um casaco que, mesmo sendo usado, destacava-se em face da sujeira geral da roupa que cobria. Por vezes um par de tênis aparecia em seus pés e ali ficaria eternamente. Cabelos e barba crescidos completavam aquela figura bizarra, que, ao que parece, jamais saiu do mesmo bairro, circulando pelas mesmas ruas, como se temesse ir muito longe, sem jamais ter tomado um banho. Dormia na calçada de alguma casa comercial, aproveitando o espaço que, durante o dia, era ocupado pelos veículos dos fregueses, coberto com um velhíssimo cobertor, que já merecia aposentadoria.
Seu café da manhã era servido pelo garçom de um bar, que, por motivos óbvios, trazia-lhe a refeição aqui fora. Por outro lado, um copo plástico de refrigerante acompanhava sempre seu almoço, certamente doação de algum dos bares da região, aproveitando a inevitável sobra. Esse era o Burzeguim.
Cheguei a puxar conversa com ele, mas tudo o que consegui saber é que ele havia saído de casa por causa “de um desgosto”, há tanto tempo que ele já não sabia ou não queria precisar a data nem o fato. Falou-me de seus planos mirabolantes, como telefonar ao prefeito para reclamar dos buracos na calçada e para fazer-lhe algumas sugestões, por sinal bem mais sensatas do que as de muitos prefeitos.
Como tantos outros mendigos, recolhia tocos de cigarro, que fumava quando conseguia encontrar quem lhos acendesse. Além deles, recolhia qualquer objeto que chamasse sua atenção, talvez para incluí-los nos incontáveis pacotes que arrastava de um lado para outro em seu carrinho, coisa aí de um Sísifo, aquela criatura mitológica condenada a repetir eternamente a mesma tarefa: empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, sendo que, quando estava prestes a atingir o almejado topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo, exigindo que ele renovasse seus esforços. Assim era com o Burzedguim.
Deu-se então que ele, nesse comportamento compulsivo, encontrou um bilhete de loteria, que, segundo a lenda, referia-se a uma data futura. Ou seja, alguém o perdera antes mesmo do dia do sorteio. Ele mostrou o objeto a seu amigo garçom, que se admirou do valor do prêmio prometido, algo capaz de acertar a vida de qualquer pessoa, imagine-se a de um garçom. Para não falar da de um mendigo. Solicitamente, o garçom sugeriu ao Burzeguim que deixasse com ele o bilhete, que no fim de semana conferiria se ele foi ou não premiado e lhe informaria. O mendigo, sem dizer palavra, recolheu o bilhete, dobrou-o várias vezes, colocou-o num dos bolsos da roupa e afastou-se sem fazer qualquer comentário, como se nada daquilo lhe dissesse respeito.
Os dias seguiram sua rotina, o Burzeguim fazendo suas caminhadas costumeiras e chegou o domingo. Ao servir o café da manhã ao mendigo, o garçom mostrou-lhe um pedaço de papel onde anotara os números premiados no sorteio da véspera. O outro caçou o bilhete nos bolsos e entregou-o ao amigo, que comparou os dois papéis, sem fazer qualquer comentário. O mendigo nada perguntou. Limitou-se a recolher o bilhete, como fizera anteriormente, dobrou-o e o guardou nalgum canto daqueles andrajos imundos.
Segundo se diz, esse bilhete jamais saiu do bolso dele. Muitos anos depois, o Burzeguim congelou em uma noite de inverno particularmente severo, tornando-se necessário revistar seus pertences em busca de conhecer a identidade do falecido e providenciar seu enterro. Lá estava, no meio de tanta inutilidade, o tal bilhete de loteria, que certamente foi com ele para a cova.