29 janeiro 2013

Carpideiros(*)


Isso para não falar naquela mocinha distraída que acabou por engravidar e olhe os pais dela, gente séria a mais não poder, a dar-lhe ordens a ela: tira essa criança! tira essa criança! tira essa criança! E ela agüentando os nove meses daquela importunação diária até que chegou o tal dia da dita délivrance e olha a moça indo pra maternidade aquele barrigão na frente dela os pais é que não lhe dariam carona à filha pecadora, que lá vai chorando e chorando desce do dito coletivo e mais chorando ainda entra na maternidade São Caetano, onde encontra prestimosa senhora de meia idade, ali nas vezes de enfermeira e conselheira, a lhe dizer chore não minha filha, chore não, que eu tenho um casal de São Paulo que está doidinho pra ter um filho e nada de a natureza lhe dar e agora vem você com esse filho mal querido de seus pais e pode deixar por minha conta que amanhã sem falta.

E a criança nasce e lá vem o tal casal invadindo a pobre sala hospitalar com perfume importado e elegância a mais não poder. E a moça fica feliz ao saber que seu amado filhinho ficará nas mãos de gente que lhe proporcionará a ele um futuro dito radiante, coisa que ela, dependente dos incompreensivos pais, jamais nunca que lhe poderia dar a ele. Melhor assim, seja feita a sua vontade. E vai até o carro importado dar um adeus sentido ao filho que lá vai no carro que se afasta agora é só tomar o ônibus voltar pra casa, ali na Vila Gerti, e dizer aos pais, sou obediente, fiz o que me mandaram agora não me encham mais o saco.

E ali estão os pais dela, junto ao portão, a esperar aflitos pela volta da filha não é que pensaram muito e então. Cadê nosso neto? cadê nosso neto? cadê nosso neto?

A pobre da moça pensou que iria enlouquecer pagando por ter cão e pagando por não ter cachorro se é que se pode assim falar seja tudo por conta da licença literária. E já no dia seguinte vai o trio à dita maternidade entrevistar a tal enfermeira dizendo-lhe isto e mais aquilo que o curador de menores não isto que o juiz de menores aquilo e a pobre senhora que julgava estar a fazer o bem acaba muito aflita por dar a eles nome e endereço do benemérito casal, talvez até um aqui está o telefone de casa mais o do trabalho, e dias depois lá vão eles, não mais um trio mas um quinteto que nada tem de violado, a criança, a mãe da criança, a enfermeira e o casal dito adotante à procura do juiz de menores que esse sim dirá quem aqui tem razão, homem sábio que é ouvi dizer que.

Entra na sala do sábio juiz o tal quinteto, cada um falando ao mesmo tempo o que obriga o ponderado magistrado, modéstia às favas, a dizer um por vez um por vez, menas a criança que inda não fala pois se soubesse falar diria que que eu vim fazer neste mundo de doidos, Deus meu? O juiz, que não tinha mais nada que fazer, nem processos mil para despachar nem gente esperando na outra sala a audiência que já está atrasada ouve todos com paciência e atenção, não fosse ele aquele um que.

A essa altura, a criança, única ali a mostrar um mínimo de juízo, perdoado que seja o inevitável trocadilho, põe-se a fazer exatamente aquilo que as circunstâncias exigem: começa a chorar, no colo da enfermeira, que, neutra a mais não poder, segura o bebê à espera de que o justíssimo magistrado decida a quem entregá-lo. A mãe, tocada pela chamada vocação materna, pega a criança no colo e põe-se a balançar o corpo pra lá e pra cá, como as mães todas entendem de fazer, por mais que eu desconheça o que isso significa, parece mais coisa de barman. E, contaminada pela chorona criança que traz agora nos seus finos braços, a mãe chora também. A enfermeira, esta, mulher calejada e vivida, faz o que as circunstâncias convidam a fazer: chora. Assim chora também a dupla final que, elegantíssimos e perfumados, abraçam a mãe e a filhinha que esta traz no seu maternal colo.

E o juiz? Eu, para não destoar daquilo tudo, nada mais tenho a fazer senão chorar também.

Vencidos os minutos necessários a que aquele carpidimento todo se esmoreça, eu bato delicadamente palmas, para trazer todos os presentes à ordem, que é como as circunstância exigem, law and order! law and order! eu diria culto se conhecesse o filme da televisão, e faço um sermão daqueles. Quer dizer que a senhorita engravidou quando não estava ainda preparada para fazê-lo? A senhora pôs-se a decidir a quem caberia a criança, indo além de suas enfermeirais atribuições? Vocês dois aí resolveram então fazer uma adoção à moda da casa, pensando que este país é um? E agora vocês todos querem que eu banque o Salomão, partindo a criança ao meio e distribuindo metade para cada um? Nem pensar, meus caros!  Nem pensar! Minha decisão está tomada: a mãe que deu à luz é mãe e ponto final. O casal ali será o padrinho. Agora saiam da minha sala e vão direto para o cartório registrar a criança. Feito isso vão à igreja matriz de São Benedito, ali naquela praça mais adiante do fórum, marcar dia do batizado, que eu quero ser convidado para ele com tubaína e sanduíche de pão de metro. E à senhora, digo eu dirigindo-me à enfermeira em tom severo atemorizante, fique sabendo mais o seguinte: eu no seu lugar teria feito exatamente o mesmo que a senhora fez. E agora, fora!, fora!, fora!

 



(*) Do livro Menas Verdades – Causos forenses ou quase 

03 janeiro 2013

Provas de suficiência


“As questões ortográficas podem ser resolvidas sem dificuldade com o dicionário. Mas, para isso, é preciso ter desconfiômetro. Duvidar sempre faz mal para a saúde, mas bem para o texto.” - Josué Machado, Língua sem vergonha

 “O alcandor do Conselho Especial de Justiça, na sua apostura irrepreensível, foi correto e acendrado no seu decisório. É certo que o Ministério Público tem o seu lambel largo no exercício do poder de denunciar, mas nenhum labéu o levaria a pouso cinéreo se houvesse acolitado o pronunciamento absolutório dos nobres alvazires de primeira instância. A sentença apelada é de enche-mão e végeta. Merece, por isso, o imbatível confirmatório dessa Corte.” (parecer do Ministério Público em Segundo Grau, citado por Rui Cavallin Pinto, in “MP – Histórias e historietas, A linguagem do foro”)

“Todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte do seu trabalho.” (Umberto Eco, Seis passeios pelos bosques da ficção)

 

O Oscar tem um filho, Tomás. O Tomás tem um filho, João. O João tem um filho, Pedro. O Pedro tem um filho, Antônio. O Antônio tem um filho, Francisco. E o Francisco tem uma dúvida. De fato, ele sabe dizer qual é a relação parental entre ele e Pedro, que é o pai do seu pai. Daí pra cima, nada! Oscar, por exemplo, avô do seu avô, o que é dele? E Tomás?
Eu disse que ele tem uma dúvida, mas retifico. Ele tem duas dúvidas. Sua namorada é a Maria Aparecida, que só fala em casamento. A dúvida dele: se eles se casarem, ela será sua parente? Se for, qual o grau desse parentesco?
Pensando bem, suas dúvidas são três. Eis a terceira: se a noiva se chamasse Dilma e se ele se casasse com ela, ela seria sua parente ou sua parenta?
É que o Francisco entrou para a faculdade de Direito (quem entra na faculdade é o carteiro, mas ali não assiste os professores, até porque quem assiste os professores é o médico, já que os alunos assistem às aulas dos professores) e está encontrando alguma dificuldade em entender o que alguns professores dizem.
Por exemplo, quando o professor fala em “bem fungível” o Francisco deve incluir aí a sua Cidinha ou não? O professor mostrou a diferença entre coisa útil, coisa necessária e coisa supérflua. A serra elétrica que o Chico tem em casa é coisa necessária, útil ou supérflua?
Embora esteja no primeiro ano, ele trabalha como “fórum boy” no escritório de advocacia de um amigo de seu pai. O tal advogado entrou com uma ação junto à Vara de Família e pediu a concessão antecipada da tutela reclamada, a ser concedida “inaudita altera pars”. Você acha que isso está certo? Pior: o curador de família deu um parecer dizendo que os argumentos da pretensão vêm de encontro à opinião da doutrina. O advogado quer saber se o promotor concordou ou discordou dele. Que lhe parece?
Não bastasse isso, a juíza que recebeu os autos mandou retificar a petição inicial porque está dirigida ao “Exmo. Sr. Juiz de Direito” e ela é uma “Exma. Sra. Juíza de Direito”. Como você faria no futuro para que outra juíza não se abespinhasse com um cabeçalho que ela reputa machista?
Perguntas semelhantes a essas eu costumava apresentar a meus alunos, no século passado, muitos dos quais ainda viam nas petições do escritório onde trabalhavam coisas como “E.R.M.” e “Nestes termos pede deferimento”, conforme me relatavam no intervalo de aulas. Tem sentido isso? Que pode me acontecer se eu omitir essas velharias?
Já na primeira aula eu dava uma indicação de como seria o curso. Entregava a cada um deles uma folha de papel com algumas indagações, precedidas de uma observação: “Leia com atenção toda a folha e depois faça o que vem determinado”. Depois disso vinham os itens a serem obedecidos:

1.   Nome:
            2.   Matrícula:
            3.   Data de nascimento:
            4.   Se você for do sexo masculino, assobie a primeira estrofe do Hino Nacional Brasileiro
            5.   Se você nasceu em outro Estado da Federação, fique de pé e erga o braço direito
            6.   Se você tiver filhos, fique de costas para a lousa
            7.   Se você trabalha, além de estudar, erga os dois braços
            8.   Se você fala uma segunda língua, bata palmas
            9.   Se você for viúvo, rasgue a folha
          10.       Agora que leu tudo, atenda apenas as primeiras duas determinações

Eu não fazia isso por sadismo, mas para que aprendessem que um advogado, um promotor, um juiz ou mesmo um delegado de polícia somente deve iniciar o seu trabalho depois de ter conhecimento de todos os dados do problema a ser por ele equacionado. Ou passará a mesma vergonha daqueles alunos que, açodadamente, foram atendendo às determinações por mim feitas antes de ler a última e caíram no ridículo.
Além disso, ficava a lição de que, antes de utilizar uma palavra ou uma expressão incomum, especialmente se for em língua estrangeira, o profissional do Direito deve certificar-se do seu exato sentido e de sua correta grafia, até porque há alguns conceitos ou redações vulgares que não correspondem ao conceito ou à redação técnicos, como se dá com a palavra “tataravô”. Quem é seu tataravô? Tataravô ou tetravô? E seu trisavô?
E chega de fazer perguntas. Agora quero saber das respostas. No fim da próxima semana darei as notas aos alunos que voluntariamente acederam a este desafio. Como diz o Umberto Eco, “que problema seria se um texto tivesse de dizer tudo o que seu receptor deve compreender. Não terminaria nunca.”