31 julho 2013

Justiça & Caos


"Número 2 da polícia científica de SP é acusado de mais fraudes."
Jornal Folha de S.Paulo, edição de 1° de Dezembro de 2009

"CPI pede investigação sobre diretor da Aneel."
Jornal Folha de S.Paulo, edição de 1° de Dezembro de 2009

"Procuradoria acusa de novos crimes diretores de empreiteira."
Jornal Folha de S.Paulo, edição de 1° de Dezembro de 2009

"Depois do PT e PSDB, Democratas enfrentam escândalo de pagamento de propinas a aliados de Roberto Arruda."
Jornal Folha de S.Paulo, edição de 1° de Dezembro de 2009

"Não existe nenhum país no mundo que ofereça tamanha proteção (aos acusados). Portanto, se resolvermos politicamente - porque esta é uma decisão política que cabe à Corte Suprema decidir - que o réu só deve cumprir a pena depois de esgotados todos os recursos, ou seja, até o Recurso Extraordinário ser julgado por esta Corte, nós temos que assumir politicamente o ônus por essa decisão."
Ministro Joaquim Barbosa, quando do julgamento do HC 84078/MG pelo STF

 

Se você conhece alguma coisa da vida sabe que o criminoso é alguém que demonstrou não respeitar as regras de convivência social. Se conhece alguma coisa do Direito Penal certamente sabe que uma das finalidades da pena é proporcionar a ressocialização de quem cometeu um crime.

Imaginemos, porém, que você seja leigo em Direito. Você passa por uma avenida pela manhã e vê um automóvel inteiramente desfeito, com aqueles ferros retorcidos empilhados junto a um poste, sangue na calçada correspondendo ao passageiro que ali era transportado. Se você é um adulto que conhece as coisas naturais da vida, o que os juristas costumam chamar de illud quod plerumque accidit, aquilo que normalmente acontece, sabe que: a) automóveis não foram feitos para colidirem contra um poste, mas para trafegarem no chamado leito carroçável; b) os automóveis são construídos com material resistente e só se desmancham quando colidem contra um obstáculo, em alta velocidade. Aqueles dados à sua disposição permitirão que você chegue a algumas conclusões: a) o automóvel colidiu contra o poste por haver saído indevidamente do leito carroçável; b) os danos produzidos na colisão sugerem que ele estava trafegando em velocidade incompatível com a que seria razoável nas circunstâncias. Logo, concluirá você que esse motorista acaba de cometer um crime de trânsito, causando danos físicos ao passageiro ou sua morte.

Se, entretanto, ao seu lado estiver um advogado criminalista, ele bradará: "Enquanto não for comprovada a culpa desse motorista em um processo judicial, assegurando-se a ele ampla defesa, com a possibilidade de interpor todos os recursos previstos em lei, ele deve ser considerado inocente".

Circula por nossa rua o Pepeu, um desses homeless (dito em inglês dói menos no ouvido) que há em todos os bairros, que arrasta consigo, além das conseqüências da falta de banho, um carrinho de feira repleto de pacotes e mais pacotes, todos cheios de inutilidades que ele colhe nas ruas. Imagine que amanhã, em lugar de um carrinho desses, ele aparecesse dirigindo uma Mercedes-Benz. Que você pensaria? Se fosse advogado, diria que não podemos prejulgá-lo, confundindo Código Penal com Evangelho.

Você então concluirá que os operadores do Direito são gozadores ou débeis mentais, pois, de acordo com o citado illud quod plerumque accidit, a presunção evidente, decorrente daquilo que ali está exposto, é no sentido de que o motorista foi imprudente, ao imprimir velocidade inadequada ao veículo, e imperito, ao deixar o automóvel desgovernar-se. Logo, a menos que ele justifique cabalmente sua conduta, a presunção será de culpa, não de inocência, até porque o fato se passou na madrugada e não havia qualquer testemunha presencial. O tal advogado, ao ouvir isso, lhe entregará um cartão de visitas. "Não saia à rua sem ele", dirá a você, com um sorriso de mofa no rosto.

Imaginemos agora que você more num prédio de apartamentos, no qual moram várias famílias, cujas crianças costumam brincar num playground situado nos fundos do terreno. No terceiro andar mora um rapaz, dono do apartamento, cujo quarto tem a janela voltada para o talplayground. Ele encontra-se em gozo de férias e, por isso, pretendia dormir até mais tarde, o que o barulho da criançada não permite. Ele então empunha sua espingarda de caça e vai abatendo, uma a uma, as perturbadoras crianças, como se estivesse em Columbine.

Ele vem a ser preso, é lavrado o auto de prisão em flagrante e arbitrada fiança, pois ele é primário, tem residência fixa e emprego. Paga a fiança, ele é solto, voltando para casa.

Vamos dramatizar ainda mais: uma das crianças mortas era seu único filho. Como você se sentiria cruzando diariamente com aquele vizinho no corredor do edifício ou subindo com ele no mesmo elevador? Que ideias lhe viriam à mente?

Oferecida denúncia contra ele, o defensor arrola meia dúzia de testemunhas, dentre as quais Gisele Bündchen e Ricardo Izecson Santos Leite. Serão expedidas cartas rogatórias para ser tomado o depoimento da itinerante modelo onde quer que ela esteja desfilando e para ser ouvido o tal rapaz, que atua no futebol da Europa sob o nome de Kaká. Anos depois, quando voltarem as cartas rogatórias devidamente cumpridas, a defensoria requererá que o jogador e a modelo sejam submetidos a acareação, cujo indeferimento caracterizaria cerceamento de defesa. Quanto tempo mais será necessário?

Imaginemos que um dia a instrução desse processo termine e sobrevenha uma sentença condenatória. Condenatória? Coisa nenhuma. Será uma sentença determinando que o réu seja submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri. O acusado continuará a circular pelo edifício onde vocês dois moram, pois é primário e tem bons antecedentes. E continua sendo legalmente inocente.

A primeira providência da defensoria será apresentar um recurso de Embargos de Declaração, para que o juiz explique melhor algum trecho da sentença. Esse recurso será rejeitado ou acolhido, publicando-se o resultado meses depois.

Sobrevém então o recurso propriamente dito, que deverá ser apreciado pelo Tribunal de Justiça, recurso esse no qual a defensoria certamente arguirá umas tantas nulidades e pedirá a despronúncia do recorrente, como é de praxe. Os autos do processo irão à Procuradoria de Justiça, de onde retornarão no ano seguinte. Enquanto isso você continua a cruzar com o mesmo vizinho no corredor do edifício onde ambos residem.

Anos depois, o recurso será julgado, confirmando-se a decisão que mandara o réu a julgamento pelo Tribunal do Júri. O Acórdão será então lavrado, assinado, registrado e publicado, o que exigirá uns tantos meses. A defensoria, então, apresentará recurso de Embargos de Declaração, para que seja esclarecido isto e mais aquilo. Meses depois os tais Embargos serão julgados, o respectivo Acórdão será lavrado, assinado, registrado e publicado, o que exigirá mais alguns meses. Enquanto isso você continua a cruzar com o recorrente no corredor do edifício onde ambos residem, pois ainda não é o caso de expedir-se mandado de prisão, já que o réu continua sendo legalmente inocente.

Agora a defensoria apresenta não apenas um, mas dois novos recursos. No primeiro, dito Recurso Especial, ela invocará violação de algum preceito constante de lei federal; no outro, dito Recurso Extraordinário, a defensoria alegará violação de algum preceito constitucional, coisa que qualquer rábula sabe fazer. Os autos irão novamente à Procuradoria de Justiça, de onde retornarão no ano seguinte, com pareceres sobre um e outro desses recursos. Eles serão então despachados pelo Presidente do Tribunal de Justiça que ou manda que o recurso seja enviado ao tribunal de Brasília competente para apreciá-lo, ou indefere o recurso. Do indeferimento caberá novo recurso, dito Agravo de Instrumento, que será apreciado por um Ministro de um Tribunal Superior, em Brasília, sabe-se lá quando. Em Brasília caberão tantos recursos de Embargos de Declaração quantos a imaginação e a criatividade do Advogado conseguirem criar. Quando algum deles for indeferido liminarmente, sob a alegação de ser meramente protelatório, sempre caberá o recurso de Agravo Regimental, cuja decisão também admite novos Embargos Declaratórios.

Enquanto isso você continua a cruzar no corredor do edifício, onde ambos ainda residem, com a pessoa que, anos atrás, quando os cabelos de tua esposa ainda não eram grisalhos e quando havia cabelos em tua cabeça, disparou contra crianças que faziam algazarra no playground do edifício onde você e ele já viviam. Lembra-se?

Repare que até agora ele ainda não foi submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri. Quando isso ocorrer e ele for condenado, finalmente ele será preso e começará a cumprir a pena. Certo? Errado. Ainda faltam ser interpostos muitos e muitos recursos.

Quando tiver sido definitivamente julgado, o tal rapaz, agora um respeitável senhor, casado e bem empregado, deverá deixar o emprego e a família para passar uns tempos atrás das grades. Uns anos mais e ele sairá de lá presumivelmente ressocializado.

Esse trabalho merece uma crítica técnica: enquanto o Tribunal do Júri não afirma sua culpa, o homicida deve ser considerado tecnicamente inocente. Acontece que mesmo depois de condenado pelo Júri, sabe-se lá quando, ele continua em liberdade. Depois de confirmada a condenação no Tribunal de Justiça, ele continua solto. Rejeitado o Recurso Especial pelo Superior Tribunal de Justiça, ele continua solto. Denegado Recurso Extraordinário pelo Supremo Tribunal Federal, ele ainda continuará solto. E tanto num como em outro desses tribunais caberão ainda recursos e mais recursos. Tudo em nome das "garantias do acusado".

E como ficam as garantias da sociedade?

 
 
 
"Só existe crime organizado numa sociedade desorganizada,
na qual os poderes estão contaminados pela corrupção."
 



 

26 julho 2013

Um marciano entre nós


“Todo e qualquer animal dotado de instintos sociais bem definidos inevitavelmente adquirirá senso ou consciência moral assim que suas faculdades intelectuais se tenham tornado tão bem desenvolvidas, ou quase tão bem desenvolvidas, quanto no homem.” (Charles Darwin, citado por Frans de Waal, em Eu, primata)     
                                                                                                 

A questão da moralidade tem tirado o sono de praticamente todos os filósofos, que buscam, fundamentalmente, dar uma resposta a uma pergunta que pode ser apresentada de duas formas: “o ser humano é intrinsecamente bom e precisa do apoio social para agir de acordo com sua natureza?” ou “o ser humano é intrinsecamente mau e deve ser contido em seus impulsos pela autoridade social?” Escolha a que lhe parecer mais correta.
É claro que ambas as perguntas trabalham com um dado a ser esclarecido: que é a bondade? Que motivos teria o ser humano para, contrariamente a quase tudo o que se vê na natureza, dar aos interesses alheios igual ou maior importância do que aquela que ele dá a seus próprios interesses?
Vejamos uma família de leões. Pai, mãe e filhotes. Eles precisam alimentar-se. Infelizmente para seus vizinhos de pasto, as folhas das árvores não os satisfazem como ocorre com os elefantes e as girafas. São naturalmente carnívoros e, portanto, devem alimentar-se de outros animais. Se voltassem esse impulso para o interior do grupo, estariam violando uma lei natural, que obriga os membros de um grupo a lutar por sua preservação. Não só preservação, mas também seleção natural, para que as gerações futuras sejam compostas de membros mais resistentes. Ou seja, paradoxalmente, o leão procura fortalecer seus filhos, mesmo sabendo que, no futuro, certamente o desbancarão na liderança do grupo. Não é, certamente. o que ocorre nas tragédias de Shakespeare. Teríamos então lá o interesse do grupo posto acima do interesse do chefe do grupo? Por enquanto, o que nós temos é o casal de leões e três belos filhotes, que ainda se amamentam, mas a mãe necessita de ir à caça, pois foi encarregada pela natureza de alimentar a família, de cuja segurança cuida o pai, quando não está dormindo. Obtida a presa, por vezes com o auxílio de alguma comadre, lá estão as crianças recebendo porções pequenas de carne, compatíveis com a capacidade alimentar delas. Esse cuidado não existe em relação aos velhos, que, certamente, já foram deixados para trás, para servir de alimento a outros carnívoros, talvez hienas ou chacais.
Poderíamos ver no comportamento dessa família algo que pudesse chamar-se “moralidade natural”? O quadro de valores que comporia essa “moralidade” é de extrema simplicidade, pois fundamentalmente compreende sobrevivência e segurança, não apenas de cada membro, mas da espécie. Alguém mais romântico até veria no relacionamento deles alguma troca de afetos, como quando a mãe lambe o filhote, o que, ao que tudo indica, tem apenas a finalidade de marcá-lo com algo que o ligue a ela.
Subindo na escala animal, teremos oportunidade de estudar sociedades mais complexas, como as dos primatas inferiores (gostemos ou não, os cientistas dizem ser o homem um “primata superior”), em especial os chimpanzés e os bonobos. Enquanto nos reino animal em geral prevalece o que Darwin chamou “a lei do mais forte”, entre esses símios aparece um dado novo: a esperteza. Enquanto rinocerontes e hipopótamos disputam a liderança do grupo mediante lutas ferozes, muitas vezes sangrentas e fatais, esses primatas lançam mão de estratagemas, onde não falta até mesmo a união de adversários para derrubar o líder. Entre os bonobos, cuja sexualidade é incrivelmente exaltada, não falta até mesmo sedução sexual para obtenção de benefícios.
O primatólogo Frans de Waal, depois de descrever fatos de que teve conhecimento pessoal em sua atividade profissional, afirma: “O fato de animais se ajudarem mutuamente está longe de ser uma observação nova, mas ainda assim é intrigante.” E indaga: “Se o que importa é só a sobrevivência dos mais aptos, os animais não deveriam abster-se de tudo o que não os beneficia? Por que auxiliar outro a resolver um problema? Há duas teorias principais. Uma, de que tal comportamento evoluiu para ajudar familiares e prole, portanto indivíduos geneticamente aparentados. Isso favorece também os genes de quem ajuda. Essa teoria de que ‘o sangue fala mais alto’ explica, por exemplo, o sacrifício das abelhas, que dão a vida pela colmeia e pela rainha quando picam um intruso. A segunda teoria segue o princípio de que ‘uma mão lava a outra’: se os animais ajudarem os que retribuírem um favor, ganham os dois lados.” Mas conclui: “Ambas as teorias relacionam-se com a evolução do comportamento, mas nenhuma nos diz muito sobre motivos reais. A evolução depende do êxito de uma característica ao longo de milhões de anos; os motivos originam-se aqui e agora.”  
Subindo um pouco mais, temos o tal “primata superior” e sua trajetória de guerras, conquistas, fome e destruição. A moralidade individualista sempre fora a regra na sociedade humana, até que um líder revolucionário (tentemos deixar de lado a questão de sua divindade, para não contaminarmos os argumentos com o peso da autoridade) propôs a inversão completa no enfoque da pessoa do Outro. Enquanto os hebreus falavam de si como “povo escolhido de Deus” (ou seja, superior a todos os demais), o líder revolucionário falava em igualdade de todos, zombando até mesmo daquela arrogância, como ao narrar uma de suas histórias, que pode ser lida no capítulo 10 do livro de Lucas: “Um homem descia de Jerusalém para Jericó, quando caiu nas mãos de assaltantes, que lhes tiraram as roupas do corpo, espancaram-no e se foram, deixando-o quase morto. Aconteceu estar descendo pela mesma estrada um sacerdote. Quando viu o homem, passou pelo outro lado. E assim também um levita, que, quando chegou ao lugar e o viu, passou pelo outro lado. Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando o viu, teve piedade dele. Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois, colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o a uma hospedaria e cuidou dele.” Sabendo quanto de desprezo os judeus dedicavam ao povo de Samaria (João, capítulo 4: “Jesus, cansado da viagem, sentou-se à beira do poço. Nisso veio uma mulher samaritana tirar água. Disse-lhe Jesus: ‘Dê-me um pouco de água’. A mulher samaritana lhe perguntou: ‘Como o senhor, sendo judeu, pede a mim, uma samaritana, água para beber?’”) imaginaremos o escândalo que tais comportamentos causariam, algo que, evidentemente, não era ignorado pelo pregador. Foram apenas três anos de provocações, que, como era de esperar, acabaram por levá-lo à morte.
Que ficou depois dele, em termos de moralidade? Mais guerras, conquistas, fome e destruição, não poucas vezes produzidas pelos que diziam seguir seus mandamentos. No final do século XII, porém, surgiu na Itália um jovem, filho de um rico comerciante, que, sendo mandado para a guerra, voltou de lá com o juízo virado. Renunciou aos bens materiais, entregando simbolicamente seus trajes ao pai e saindo à rua inteiramente nu, segundo alguns biógrafos. Levou às últimas consequências essa renúncia e morreu praticamente com a mesma idade de seu líder, sendo considerado até hoje o mais radical discípulo dele. Nenhum outro religioso chegou aos extremos de S. Francisco de Assis.
Passam-se os séculos e surge um novo líder empenhado em concretizar a moralidade crística, tão abandonada concretamente em nossos dias que já há quem diga que vivemos um momento histórico pós-cristão. Os assaltantes continuam a atormentar os passantes, os assaltados continuam estendidos na calçada, muitas vezes cercados de seus filhos, os seres humanos continuam a considerar-se superiores uns aos outros, os valores cristão parecem incompatíveis com uma sociedade hedonista, imediatista, individualista, sem compromisso com o futuro, quer material quer moralmente. Como reverter esse quadro?
Jorge Mário Bergoglio mostra-se, como Papa, utilizando sintomaticamente o nome do santo de Assis, embora seja de formação jesuítica, menos interessado na organização da Igreja do que no exemplo de aceitação plena dos ideais cristãos a que, em tese, todos os ordenados estão atrelados. Algo absolutamente incompatível com a suntuosidade e o esplendor que tem marcado a atuação de tantos Pontífices e religiosos em geral.
O aparente descompasso entre as propostas do Papa Francisco e a sociedade atual, no entanto, pode ser medido por dois acontecimentos recentíssimos. De um lado, o fato de, no exato dia em que se iniciava a Jornada Mundial da Juventude, haverem sido retidos na Via Dutra dois caminhões que se dirigiam ao Rio de Janeiro carregando nada menos do que 7 toneladas de maconha, com propósitos bem óbvios. De outro lado, a cena de um grupo de guarda-costas atarantados diante da súbita invasão da pista por onde trafegava o carro onde seguia o Papa. Aquilo tanto poderia ser manifestação de afeto, como de fato foi, como início de uma agressão. Lincoln, Ghandi, Kennedy e até mesmo João Paulo II conheceram os riscos da exposição pública, que atua como ímã sobre paranoicos com tendência magnicida.
Poder-se-ia pensar que estamos diante de um marciano, que desconhece o mundo onde desceu. Entretanto, a proposta de Jesus era fundamentalmente de um claro padrão moral: a descoberta do Outro. Qual tem sido a resposta dos pretensos cristãos à “regra de ouro” (“Façam ao outro o que desejam que lhes façam”)? Mais incompreensível é a resistência à “regra de prata”. Será tão difícil assim não fazer ao outro aquilo que não queremos que nos façam?
O espanto diante da figura do novo Papa serve apenas para mostrar quão distantes estamos de uma conduta minimamente cristã.

19 julho 2013

Habemus novum Papam


Fui criado num lar cristão, mas jamais me foi imposto aderir a este ou àquele ramo do Cristianismo. Na minha juventude, quando ainda não se dizia que a única religião digna de tal nome era o catolicismo, sendo as demais meras seitas, travei contato com autores sérios, como Jacques Maritain, que me mostraram não haver incompatibilidade entre fé e inteligência. A honestidade do padre Paul-Eugène Charbonneau, ao reconhecer que eles padres haviam tantas vezes metido os pés pelas mãos, desgraçando a vida de muitas pessoas que se deixaram levar por alguns de seus descabidos conselhos, encantou-me. Em seu Moral Conjugal no Século XX ele não deixa por menos: “Quisemos fazer cristãos onde ainda não havia homens. O fato é que hoje não temos nem homens nem cristãos”. Li Alceu Amoroso Lima e me encantei com sua visão humanista da fé, a mesma visão que havia levado o advogado Sobral Pinto, católico de missa diária, a defender comunistas, jamais por serem comunistas e sempre por serem seus irmãos em Cristo. Entre o estilo duro do Tristão de Ataíde e a leitura aprazível de um Lições de Abismo, do “direitista” Gustavo Corção, eu creio que sabia distinguir entre fundo e forma. Li tanto as obras de Helder Câmara como as de João Mohana. A leitura do Catecismo Holandês convenceu-me de que era possível declarar-me católico e partir para leituras que meu despreparo e falta de atrevimento até ali não me haviam permitido.
Um movimento de cristianização de lideranças, nascido na Espanha, onde era considerado “de direita”, deu com os costados no Brasil e, por força da influência da Teologia da Libertação, passou a ser aqui considerado de “esquerda”, simplesmente porque falava em “direitos fundamentais do ser humano”. Arrebatado pelos “Cursilhos da Cristandade”, procurei acelerar meus conhecimentos da teologia católica, valendo-me do pouco tempo que minhas atividades profissionais me permitiam. Tornei-me “rollista”, ou seja, pregador e passei a divulgar, juntamente com outros leigos e sacerdotes, os preceitos evangélicos nas trabalhosas e cansativas sessões de fim de semana, para “cristianizarmos os ambientes”, como se dizia. Conservou-se no Brasil o termo “rollo” para designar cada um dos cinco sermões diários com os quais procurávamos incutir nos candidatos a “líderes cristãos” aqueles preceitos.
Dentre tantos nomes conhecidos, ali esteve, na casa da rua Marondésia, onde se realizavam esses encontros, até o Eugênio Soares, cujo nome artístico já era sinônimo de inteligência e sensibilidade. Tornou-se, graças aos Cursilhos, “ministro extraordinário da eucaristia”, mister que desempenhava nas missas dominicais das dez horas na Igreja de S. Gabriel, no Itaim Bibi. O fato de a fila de fiéis que preferiam receber a hóstia das mãos do Jô Soares enquanto o sacerdote ficava segurando a hóstia à espera de quem quisesse recebê-la de suas modestas mãos era apenas um pormenor folclórico.
João XIII dizia que deveríamos estar despertos para a movimentação dos ventos. E os novos ventos trouxeram o polonês Woytila, figura carismática que sabia utilizar sua inegável vocação para o teatro a serviço da Igreja. Muito embora batalhasse com afinco para mudar o regime político de sua Polônia, proibiu os católicos da América latina de misturar religião e política, algo que estava na base dos Cursilhos. Nosso líder Leonardo Boff pagou com um primeiro “silêncio obsequioso”, imposto por um bispo de formação teutônica, sua insistência em tentar identificar “cidade de Deus” com “cidade dos homens”. Quando o mesmo cardeal Ratzinger tentou ir mais adiante em sua blitzkrieg contra a Teologia da Libertação, Boff preferiu falar de águias e galinhas e concentrar-se na salvação do planeta.
Ironicamente, ninguém menos do que o mesmo Ratzinger é escolhido pelo Espírito Santo para guiar o atônito rebanho, que vê os templos católicos, em todo o mundo, transformarem-se em locais de peregrinação meramente turística, ao mesmo tempo em que as “igrejas eletrônicas” proliferam por toda parte, à custa da ignorância pragmática dos ingênuos e da passividade das autoridades públicas civis.
Minha ignorância não é tanta que eu desconheça a história da Igreja Católica e de seus principais Papas, dentre os quais o insuperável Rodrigo Gil de Borja i Borja, convertido, em inexplicável descuido do Espírito Santo, em Alexandre VI, pai de Cesar Bórgia e Lucrécia Bórgia, três nomes que dispensam apresentação.
Aprendi com Agostinho de Hipona que a fé nos testa a todo o tempo, o que ele expressou numa frase paradoxal: “Pai, que eu creia!” Com S. Juán de la Cruz identifiquei-me na descoberta de que entre a fé que tenho hoje e aquela que talvez eu volte a ter amanhã ou depois de amanhã podem medear noches oscuras, o que até me levou a desabafar:
 

Se tudo fosse como um faz de conta,

cabeça tonta que girasse ao vento

e o pensamento nos levasse longe

e a voz de um monge, de serena face,

nos ensinasse coisas do viver?

 

Talvez não ter com que preocupar-se;

 melhor calar-se que dizer tolice.

E quem nos diz se tudo isso é mentira?

 

E o mundo gira, qual um carrossel,

eu num corcel, saído do meu sonho,

onde inda ponho toda essa esperança.

 

Quem hoje dança? Que é da alegria?

Houvera um dia onde todos rimos;

depois saímos nós da juventude.

 

E quem se ilude quando há só velhice?

Quem foi que disse que há outra vida?

Gente iludida. A morte é que conta

e desaponta. Acabou-se o doce.

 

       Tivesse eu o talento inspirado do grande santo espanhol expressaria minha impaciência com coisas belas como:

 

“¡Sácame de aquesta muerte,

mi Dios, y dame la vida;

no me tengas impedida

en este lazo tan fuerte;

mira que peno por verte,

y mi mal es tan entero,

que muero porque no muero!

 

Lloraré mi muerte ya

y lamentaré mi vida,

en tanto que detenida

por mis pecados está.

 

¡Oh, mi Dios! ¿Cuándo será

cuando yo diga de vero:

vivo ya porque no muero?”

 

Assim é a vida. O dia-a-dia testando-nos em nossas convicções mais profundas. Quando, em nome da lei, submeteram a adúltera a julgamento, quem atirou a primeira pedra? Você atiraria, cumprindo ao pé da letra a lei de Deus? Aquele que os católicos dizem ser o Filho de Deus limitou-se a dizer “Vai-te e não tornes a pecar” (João 8,11), dando mais importância ao espírito do que à letra da lei. Como diria Saulo de Tarso, “a letra mata, o espírito vivifica”.
  Que faria aquele mesmo Jesus se uma aflita mãe lhe pedisse que salvasse a vida da filha, uma menina de míseros 9 anos de idade, grávida (de gêmeos!) por força de um estupro contínuo praticado por quem deveria dar a ela exemplos de vida? Será que exigiria que aquela gravidez de altíssimo risco chegasse a termo, talvez com a morte das três crianças? Exigiria que aquela criança, caso chegássemos ao inesperável parto, visse pelo resto de seus dias aquela lembrança viva da violência animalesca a que foi submetida por quem traiu seus deveres mínimos de pai? Qual seria o valor maior a ser preservado?
Não será descabido recordar que esse apego à letra da lei era uma característica dos fariseus, que o mesmo Jesus de Nazaré chamou de “sepulcros caiados”, pois eram, segundo ele, “brancos por fora e podres por dentro” (Mateus 23,27).
Como quer que seja, a assunção de um novo Papa sempre servirá para renovação de nossas esperanças em um futuro mais cristão em nossas sociedades.

12 julho 2013

Passeatas



O poder não presta contas.” William Shakespeare, Macbeth
Power tends to corrupt and absolute power corrupts absolutely.” Lord Acton (1834/1902)

Durante mais de 200 anos, entrava ano e saía ano e a França era governada por um Luís. Um deles sintetizou o que pensavam todos eles: L’État c’est moi. Se você pensa que essa frase foi inventada pelo Sarney ou pelo Renan Calheiros, saiba que essa coisa é tão velha como o mundo.
A nobreza francesa era, como a nossa atualmente, fonte de abusos de toda ordem. Para começar, nobres não pagavam impostos. Hoje eles fingem que pagam, mas ou o dinheiro veio de bolso alheio, geralmente uma grande empreiteira, ou saiu mesmo dos cofres públicos, sob a forma de “cartão de crédito funcional” ou viagem “oficial” de avião levando mulher, sogra, filhos e babás, ou juntando “notas frias” para justificar a despesa. Descobre-se a maracutaia, o gatuno devolve (ou diz que devolve) o dinheiro e tudo fica por isso mesmo. Peculato já era, mano. Os ladrõezinhos pés de chinelo, que não têm sangue azul, não contam com esse benefício. Contam?
Pois naquela época surgiu na França um José Dirceu. Chamava-se Georges Jacques Danton e era um homem de palavra fácil, especialmente quando se dirigia às massas. Seu nome ficou indissoluvelmente ligado à de outro líder: Maximilien Marie Isidore de Robespierre. Enquanto Danton era agitador, Robespierre era cerebral, com um raciocínio de rigor matemático. Um par perfeito.
Em 1789 houve uma passeata que terminou com a invasão do Castelo da Bastilha, onde ficavam os presos, todos pobres, evidentemente. Isso incrementou o movimento popular que, organizado segundo modelo proposto por Robespierre, acabou destituindo o rei Luis XVI, que foi submetido a um tribunal popular, que, como era de esperar, condenou-o à morte, mesmo porque os revoltosos haviam instituído a guilhotina, que ficava exposta em praça pública, para acalmar os mais nervosinhos. Cerca de 3.000 pessoas foram decapitadas desde 1.792, quando o aparelho do Dr. Guilhotin começou a trabalhar. Um deles, como visto, foi o derradeiro Luís, em 1.793.
Na verdade, paradoxalmente, a revolta popular teve origem na insurreição dos nobres, que se recusaram a aceitar a proposta do rei de passarem a pagar impostos, para melhorar o caixa do governo. Em um segundo momento, o rei convocou uma Assembleia Nacional para aprovar uma constituição. Desde logo, porém, foi baixada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que inspiraria a ONU a promulgar a Declaração Universal dos Direitos Humanos quase 200 anos após.
Voltemos à nossa dupla dinâmica.
Em meio ao caos, a França passou a ser administrada por um Conselho Revolucionário, criando-se um Comitê de Salvação Nacional, que, em nome do bem comum, passou a guiar-se pelo terror, pois o cerebral Robespierre entendia que os fins justificam os meios. Assim, a moralidade não pode ser deixada a cargo de cada um, mas deve ser imposta. Até as criancinhas devem saber de cor a Declaração dos Direitos, como um credo religioso. Danton não concordava com tais excessos, motivo pelo qual passou a ser chamado de corrupto, pois vivia nababescamente, segundo os padrões gerais, pois o povo passava fome. Condenado à morte, por iniciativa de seu antigo aliado, entregou-se como um mártir, declarando-lhe: “Já correu muito sangue. Melhor acabar com isso, pois hoje sou eu, amanhã será você”. Isso ocorreu em Abril de 1.794.
E não deu outra: em julho do mesmo ano a cabeça de Robespierre era afastada do corpo.
A insatisfação popular acabou por produzir uma situação irônica: a Revolução Francesa, que havia pretendido acabar com a realeza, acabou levando a França a ela, com a assunção de Napoleão Bonaparte no cargo de Cônsul Geral (1799) e declaradamente no de Imperador, cinco anos depois.
Muitos biógrafos apontam em Robespierre um fanatismo quase religioso, julgando-se pessoa com poderes de um iluminado. Um de seus projetos mais estapafúrdios, aprovado por seus temerosos pares, foi alterar o tradicional nome dos dias da semana, substituídos por referências à natureza (época de colheita, de geada, de calor, de colheita etc.):  

Outono:




Inverno:











 

Nem Jânio Quadros chegou a tanto.
Para Robespirre, embora reconhecesse o valor do trinômio “liberdade, igualdade, fraternidade”, deve-se sobrepor a igualdade à liberdade, a revolução à liberdade, o povo à liberdade e as razões do Estado à vontade do povo. Nem que seja oficializando o terror.
Como se vê, conhecer História nem sempre é perda de tempo, especialmente quando se procuram pessoas carismáticas, como em nosso momento presente, em lugar de procurarem-se projetos de governo. Sempre haverá um Napoleão à espreita, ainda que o uniforme não seja o militar.

04 julho 2013

Barbaridade


“Enquanto a religião prescreve o amor fraterno nas relações entes os indivíduos e os grupos, o espetáculo atual mais se assemelha a um campo de batalha do que a uma orquestra.” (Albert Einstein, 1951) 

Na minha distante juventude, a palavra bárbaro era elogio. Alguns até esmerilhavam, usando um pretenso superlativo: “tua irmã é tártara!” Não sei se hoje ainda se usa a palavra esmerilhar, mas tártaro está mais para problema dentário do que para elogio à beleza da irmã de alguém, vaga lembrança de Gengis Khan e suas conquistas. Lembra? Até foi feito um filme sobre ele, que tinha como intérprete ninguém menos do que o John Wayne, aquele que nasceu sobre um cavalo e sempre andava com as pernas abertas. Era comum também naqueles tempos ouvirmos a mãe, referindo-se ao filho, dizer toda orgulhosa à vizinha: “esse menino é o terror das meninas!” Terror! Ela queria dizer que o rapaz gozava de muito prestígio entre as garotas. Meus netos talvez falem em azarar, verbo que eu não sei bem o que significa. Azarados, para mim, foram aqueles japoneses que resolveram estar em Hiroshima e Nagasaki quando os civilizados norte-americanos resolveram treinar tiro-ao-alvo usando seus Littles Boys, com suas 12.500 toneladas de TNT.
No livro em que agradecemos ao Alberto Silva Franco tudo o que ele tem feito pela cultura jurídica brasileira, editado pela RT, há um capítulo em que o autor apresenta alguns lances da emocionante biografia do George W. Bush, coisa para ser interpretada pelo mesmo John Wayne, que, aliás, se orgulhava de suas convicções políticas, talvez daí o seu interesse na interpretação tanto do Gengis Khan, que, segundo diziam, por onde passava nem mato crescia, quanto dos boinas verdes, aqueles simpáticos rapazes que, em nome da civilização ocidental, despejaram napalm no Vietnã e que deixaram minas enterradas quando de lá saíram, matando civis anos e anos depois de oficialmente terminada a guerra, como se diz no tal capítulo do tal livro. Pois ali se fala em “Babárie e Civilização”, incluindo-se a opinião do pensador esquerdista de origem judaica Noam Chomsky: “Os EUA estão oficialmente comprometidos com o que é chamado de ações de guerra de baixa intensidade. Essa é a doutrina oficial. Se alguém lesse as definições padrão de conflito de baixa intensidade e as comparasse com as de terrorismo, em qualquer manual do exército ou no U.S. Code, repararia que são praticamente iguais.”
Quando estiver numa roda de amigos, pergunte ali quem sabe quem foram os vikings. Dez entre dez dos que levantarem a mão dirão que eram uns bárbaros escandinavos, que, hábeis navegadores, chegavam com seus barcos silenciosos e saqueavam as cidades abordadas por eles, retirando-se antes que as beatas locais dissessem “ai, Jesus!”. Será que eles sabem que os bárbaros vikings chegaram à América mais de 500 anos antes dos civilizados espanhóis? Os mesmos espanhóis que dizimaram as civilizações maia, asteca e inca, mais avançadas, em certos temas, do que os europeus? Os vikings se impressionaram tanto pela civilização existente do lado de cá do mundo que certo chefão deles enviou o filho para fazer uma espécie de MBA na Inglaterra. O tal filho de lá voltou tão impressionado com o que viu que modificou a história da Escandinávia. “Isso de Tor com um martelo que vai até a cabeça do inimigo e depois volta à mão dele como se fosse bumerangue não está com nada, velho” deve ter dito Olav a seu pai. “O deus Odin com um cavalo de oito patas? Onde nós estávamos com a cabeça? Jesus Cristo é dez!” teria dito ele, mostrando a camiseta por baixo da armadura, como fazem alguns jogadores de futebol hoje. O chefão Harald Grenske só ouvindo os descabidos comentários do filhote, isso por volta do ano 1.000 de nossa era, chamada cristã. Pois não é que o Harald morre e o Olav assume o comando de tudo aquilo? Pois lá está ele, embora rei, de espada na mão, a perguntar a cada um que encontra na rua: “Acreditas em Jesus Cristo?” No que o entrevistado vacilava ou ganhava tempo com um “hein?”, era degolado. Converteu mais gente do que esses pastores da televisão com sua falinha melosa e dólares marcando páginas da Bíblia. Pois esse civilizado degolador de incréus é o padroeiro da Noruega e santo canonizado pela Santa Sé.
Alguns anos depois, o civilizado povo alemão resolveu aprimorar a raça. Nada de negros, nem ciganos, nem aleijados. Isso depõe contra a raça ariana. “E vamos incluir na lista também os judeus”, disse o líder deles. Claro que não foram os alemães que fizeram isso, mas alguns deles, uns lunáticos, que, em nome do nacionalismo, provocaram de um grande cientista judeu, Albert Einstein, não sei se o leitor conhece, um notório pacifista, estas palavras de ódio: “Os alemães, como povo inteiro, são responsáveis por esses assassinatos em massa e devem ser punidos como povo, se existe Justiça na Terra.” Recorde-se que ele nasceu em Ulm, uma cidadezinha situada no sul da Alemanha.
A família de Einstein era tão pouco ortodoxa que ele acabou se recusando a fazer o bar mitzvah, coisa que não tinha para ele qualquer sentido, além de ter estudado em um colégio católico, onde certo padre lhe mostrou a diferença entre os bárbaros judeus e os civilizados cristãos, ao exibir à classe um enorme prego, dizendo: “Foi com isto que os judeus pregaram Jesus numa cruz.” Os olhos de toda a classe se despejaram sobre ele, que talvez tenha respondido à muda indagação: “Tudo o que posso dizer é que eu não havia ainda nascido naquele tempo.”
 Pois nos últimos cinquenta anos muitos judeus tentaram convencer o mundo de que no holocausto nazista só morreram judeus. Eu, pelo menos, não me lembro de ter visto algum cigano, algum negro ou algum gay na lista do Schindler. Tudo isso foi por água abaixo quando meia dúzia de fanáticos resolveram devolver o sofrimento que seus antepassados conheceram na Alemanha hitlerista, despejando bombas incendiárias sobre populações civis. Se o Einstein fosse libanês, certamente diria: “todos os judeus merecem o inferno!” Mas o Hesbollah é um bando de terroristas!, havereis de dizer.
Passo, então, a outro assunto. Ou ao mesmo assunto, dependendo de como se queira considerar isso, pois, à maneira de Esopo e de La Fontaine, pode-se falar de lobos e cordeiros e deixar à imaginação do leitor identificar quem é um e quem é outro. Problema de quem lê, não de quem escreve.
Imagine que seu vizinho tenha no quintal uns cachorros que latem dia e noite, atormentando tua vida e a de teus familiares. Um terror! Você leva o problema ao tal vizinho que, ou porque não quer, ou porque não pode, não o elimina (falo do problema, não do cão). E os cães continuam a ladrar e a latir noite e dia. Um dia você perde a paciência, compra um galão de gasolina e atira todo o líquido sobre a casa do tal vizinho. Não contente com isso, você arremessa em seguida sobre a mesma casa uma tocha, o que, previsivelmente, provoca um incêndio. Pronto, o problema está resolvido, dirá você.
Pausa. Que será que o teu psicoterapeuta diria desse teu comportamento? E tua mulher? E teus amigos? E tua consciência?
Você já leu alguma coisa sobre war casualties, que você, naturalmente, traduzirá, pro domo sua, como dizem os advogados, por “meras casualidades” provocadas pela guerra, aqueles efeitos imprevisíveis que toda guerra acaba produzindo. O sentido, porém, não é esse, meu caro. Casualty pode significar, de fato, mera casualidade, mas quando vem acompanhada da palavra war significa simplesmente, na linguagem militar, “baixa”. A expressão war casualties refere-se ao número de mortos e feridos provocados por uma guerra. É como médico que jamais diz que o paciente morreu. Ele foi a óbito. Andando? 
Você dizer que o fato de a mulher do teu vizinho agora apresentar queimaduras de primeiro grau, provocadas pelo incêndio da casa, foi mera casualidade, coisa que você não desejava quando jogou a gasolina e nela ateou fogo, pode ser útil à tua boa consciência. Talvez até o sacerdote amigo te absolva depois de te mandar rezar meia dúzia de Ave-Marias. Mas, que dirão a isso os demais vizinhos, sabedores de que têm por ali alguém tão irresponsável como você? Tão odiento? Tão desprezível? Tão psicopata?
E as crianças que morreram esmagadas quando ruiu o teto da varanda onde elas brincavam? War casualties, dirá você, cheio de empáfia. E, em último caso, culpará os cachorros. “Se eles não tivessem começado isso tudo...”
De agora em diante, como você se sentirá quando sair à rua e notar nos olhos dos que te olham aquele misto de ódio e de desprezo, por terem ao lado deles alguém tão abominável? Você conseguirá conviver com isso? Ou acabará por levantar os muros do teu quintal, cada vez mais altos, para viver ali cercado de teu ódio, alheio à dor alheia?