29 maio 2009

Décimo conto



“A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.”

(Mário Quintana)

O pai da mãe dos meus netos resolveu fazer uma surpresa para eles. Queria dar-lhes um presente de desaniversário. Presente de aniversário todas as crianças sempre ganham, ora bolas. Entretanto, presente de desaniversário só os netos dos avós espertos.

Mas, que presente ele poderia dar, se os filhos de sua filha tinham de tudo? Pensou em dar um par de meias, com um furo no dedão, mas descobriu que meias com furo no dedão eles tinham quase meia dúzia. Só de pé esquerdo! Pensou em dar uma bola de futebol furada e rasgada pelo cachorro da casa, mas no quintal dormiam umas três ou quatro dessas bolas, plantadas dentro de um vaso de barro. Acho que eles pensavam que dali nasceria um pé de bola de futebol. Só que eles tinham preguiça de regar o vaso e, como se sabe, sem água não há bola de futebol que se transforme em pé de bola de futebol. Pensou em dar cocô de cachorro, para eles espalharem pelo gramado do quintal. Mas já havia tanto cocô de cachorro espalhado que seria difícil encontrar algum que fosse diferente daqueles que já existiam. Que coisa difícil é escolher um presente de desaniversário!

“Já sei”, disse ele, “vou dar um carrinho de corda sem a roda dianteira.” Bobagem! Eles já tinham uns dois carrinhos faltando pelo menos uma das rodas. “Um jogo de lego faltando uma porção de pecinhas é um bom presente” pensou o esperto velhinho. Mas desistiu da idéia, porque sua filha lhe disse que eles só gostavam de brincar com as peças que não conseguiam formar nenhuma figura completa. Cavalo sem orelha, castelo sem telhado, trenzinho sem fumaça, navio sem ondas de mar, gavião sem céu pra voar. Era isso que eles gostavam de montar com aquelas peças de lego que espalhavam pelo chão, sempre procurando aquelas que não estavam ali. Formar alguma coisa com peças existentes qualquer um forma, diziam eles.

Foi ao shopping e procurou na loja de brinquedos alguma coisa que faltava no quarto dos meninos. “A senhora tem antipatia para vender?” perguntou o avô de meus netos à gentil senhorita que os atendeu. Ela fez uma cara de quem não estava entendendo nada e ele precisou explicar. “Eu preciso dar a meus netos alguma coisa que eles ainda não têm.” Ela fez uma cara alegre e disse que ali não se vendia antipatia. Aliás, todos os vendedores tinham simpatia para dar e vender. “Então eu prefiro que eles me dêem, assim eu economizo uns tostões”, disse o sovina.

“E me veja aí um pacotinho, desses bem pequeninos, de pó de tristeza, coisa que falta naquela casa que tem tudo.” Ela cochichou bem baixinho no ouvido do velhinho que venda de tristeza estava proibida pela dona da casa, aquela senhora gordona que quase não cabia naquele espacinho que ficava entre a caixa registradora e a parede dos fundos. Quando a mulher dava gargalhadas, a impressão era que aquela gordura passaria por cima do balcão e cairia no chão, esparramando-se toda. E as pessoas escorregariam ali e ficariam também dando risada deitadas no chão.

Ele era meio surdo e não entendeu direito o que a gentil senhorita disse, mas pela cara dela ele concluiu que tristeza ali nem pensar, inda mais com aquela senhora alegre esparramada atrás da caixa registradora, sempre pronta para explodir de alegria.

“Então vamos fazer o seguinte”, disse ele: “faz de conta que meus netos são seus filhos e a senhorita vai escolher um presente para cada um de seus imaginados filhos. Mas eu quero que a senhorita me faça um desconto.” Ela concordou com a proposta do velhinho ladino e os dois ficaram passeando por aqueles corredores como se fossem dois namorados, pois ele era meio atrevidinho, fingia que estava tendo uma tontura e pegava no braço das moças, quando elas eram bonitas. Só perto das moças bonitas ele tinha tontura.

“Quando eu era mocinho,” foi dizendo o avô dos meus netos, “assim como a senhorita, mas não tão bonito, o dinheiro era o mil réis. Dez contos de réis era muito dinheiro, dava pra comprar a metade de uma loja do tamanho desta” exagerou ele, que gostava de aumentar um ponto naquilo que ele contava. “Quando meu avô ia comprar alguma coisa, ele sempre pedia desconto. De tostão em tostão se chega ao milhão, havia ensinado o pai dele. Um dia ele foi comprar alguma coisa que custava dez contos de réis, que era um dinheirão, não sei se eu já disse isso para a senhorita. Não me lembro se era uma bengala nova, ou um par de botinas, ou um navio, ou um cachimbo, ou um par de nuvens. Mas sei que custava dez contos de réis. Aí, como fazia sempre, ele pediu ao vendedor que lhe desse desconto. E o homem, seduzido pela simpatia de meu avô, coisa que ele deixou em testamento para os filhos e os netos, como a senhorita pode perceber, caiu na cilada e lhe deu o tal desconto. Aí meu avô disse que então não tinha de pagar nada pela mercadoria que estava levando, porque os dez contos do preço menos o desconto que o vendedor havia dado era igual a zero. Dez contos menos dez conto é igual a nada, percebeu? E saiu da loja com o presente debaixo do braço, para espanto do vendedor.”

“Acho que meu avô era advogado”, rematou o simpático velhinho.



16 maio 2009

A cegueira de cada um

Dizem que João Paulo II visitava um hospital infantil. Lá do fundo da sala vinha um grito infantil: “Io voglio vedere il Papa! Io voglio vedere il Papa!” João Paulo ia avançado calmamente, dizendo algo a esta criança, passando a mão na cabeça daquela, abençoando cada um. E os gritos continuavam: “Io voglio vedere il Papa! Io voglio vedere il Papa!” Quando o Papa chegou à cama onde o garoto gritava, os gritos não cessaram, pois a criança era cega. Chorando, o Papa teria exclamado: “Siamo tutti cecatti!”

O assunto voltou à ordem do dia, menos pelo intrigante livro do Saramago e mais, como tantas vezes ocorre, por causa do filme do Meirelles, nele remotamente baseado. Tenho algo de pessoal a dizer sobre isso.

Fui juiz no bairro do Ipiranga, na capital do Estado de São Paulo, onde funciona, há 80 anos, o Instituto Padre Chico. Certa ocasião, houve no bairro uma briga entre dois rapazes que estavam num ponto de ônibus. Tapa de cá, sopapo de lá e um deles empunha um revólver e faz dois disparos, que não atingem seu desafeto. Havia duas outras pessoas na fila que, assustadas, entraram na primeira casa que encontraram. Eram dois cegos. Feito o inquérito policial, oferecida denúncia e interrogado o réu, lá vem a primeira testemunha da denúncia, que entra na sala com sua inseparável bengala branca. Informa isto e mais aquilo. O Promotor de Justiça faz aquela que lhe pareceu uma oportuna pergunta: “Os tiros foram disparados em direção à vítima?” E a testemunha: “E eu lá vou saber?”

Como juiz eleitoral eu era daqueles poucos que, no dia da apuração, visitava cada seção, para eventualmente solucionar algum problema in loco. Numa das mesas apuradoras de votos, a pilha de cédulas nulas, para espanto meu, compreendia quase todas as cédulas da urna. Indagado, o responsável pela turma apuradora me explica que, inexplicavelmente, todos os eleitores haviam resolvido anular o voto, furando a cédula. Preciso dizer aquela zona eleitoral ficava no tal Instituto?

Minha mulher fazia pós-graduação em Direito Internacional na Faculdade de Direito da USP. Naqueles idos e vividos tempos, aluno de Direito não comparecia à aula com bermuda e chinelo de dedo não, senhor. Homem era de paletó e gravata e mulher era com vestido ou tailleur. Bons tempos aqueles! Além disso, os alunos, mesmo no pós-graduação, ficavam em pé quando o professor entrava na sala. Bons tempos! Pois deu-se que o renomado Prof. Cretella Júnior entrou na sala para dar sua primeira aula. Todos levantaram-se em silêncio, como era a praxe. Bons tempos aqueles, não sei se já disse isso. Todos menos um. O Cretella veio até a cadeira do insubordinado e lhe sapecou: “Acaso o senhor é cego?” E o aluno, mostrando a bengala branca: “Sou!”

A coisa não ficou por aí. O Cretella ficou tão chocado com o fato que mandou, às suas expensas, como então se dizia, passar todas as suas aulas para o Sistema Braile e entregou ao tal aluno.

Quando pertencia a um dos órgãos da OAB/SP cheguei a dar parecer entendendo que as “pessoas privadas da visão” (será tal expressão mais perfumada do que “pessoas cegas”?) não podem ser admitidas à Advocacia. Se um dos meios de prova é a juntada de documentos, como alguém que não enxerga pode examiná-los e aferir de sua autenticidade? E se essa pessoa resolver ser Juiz? Como analisar as provas com essa restrição física? E eu falava com conhecimento de causa, pois em minha juventude havia-me emocionado com a biografia da Helen Keller. Não sei se eu admirava mais aquela extraordinária mulher ou sua professora, um relacionamento complexo que foi levado ao palco e às telas.  Devo dizer, a bem da verdade, que fui voto vencido e aquela restrição física não tem impedido que portadores de tal deficiência possam advogar.

Por falar nisso, você sabia que há ilustração em Braile? Até muito recentemente isso fazia parte do enorme rol das coisas que compõem minha ignorância. Aliás, também conheci a professora Dorina, outra mulher admirável.

Pois se ainda me restasse alguma dúvida sobre o erro em que laborava meu quase lúcido parecer, bastaria haver conhecido o Francimar Torres Maia para convencer-me da necessidade de alterar meu voto.

Nascido no Ceará, irmão de não sei quantos outros cearenses, todos filhos de um modesto sitiante, nosso personagem já não apresentava, em criança, o dom da visão. Quando seu pai procurou o gerente do banco para contratar um empréstimo e modernizar o roçado, deu a ele todas as informações necessárias, inclusive a condição de todos os membros da família, seus legais encargos. O gerente não deixou por menos: “Concedo-lhe o empréstimo se o senhor matricular esse seu filho na escola para deficientes visuais que temos aqui”. E assim foi. O aluno mostrou-se tão aplicado, sua inteligência impressionou tanto os professores que os pais do guri foram convencidos a dar a ele melhores condições de estudo. Onde, se lá não havia escola para isso? “Há uma escola especializada no Rio Grande do Sul” foi o que disseram aos pais do garoto. Imagine-se o esforço de todos para aceitarem tal idéia! Esforço de toda espécie. O fato é que o Francimar se removeu do Nordeste para o Sul deste país-continente e ali concluiu os estudos prévios. Sua idéia inicial era entrar numa Faculdade de Letras, pois sua vocação era ser professor. “Mas quem contrataria um professor cego?” disse ele de si para consigo. E foi fazer – ele certamente não conhecia aquele meu não tão lúcido parecer – o curso de Direito.  Formou-se e hoje advoga no Estado do Sul, além de redigir seus poemas e suas crônicas, escondido sob sugestivo pseudônimo que diz bem do seu bom humor: Cearucho. 

  Como advogado e como escritor não tem papas na língua. Ainda recentemente alguém resolveu arreliar com a seleção brasileira de futebol e seu técnico, que, além de não ser um Mestre em seu ofício, está mais para Soneca do que para Dunga. E o tal crítico assim se expressou:

"O pior cego é aquele que não quer ver, dizia o velho ditado. Quando era criança, eu imaginava que o ditado estava errado, que o pior cego era o que queria ver e, com isso, ficava chateando todo mundo. Só depois fui entender o significado da máxima popular. Mas, o adágio me veio à lembrança ao assistir o jogo de futebol para cegos, nos jogos para-olímpicos de Pequim, nos quais a equipe brasileira levou o ouro olímpico não conseguido pela seleção brasileira dos que só não enxergam porque não querem. Meninos, eu vi. Os cegos (aliás, a cartilha do governo nos ensinou que eles são deficientes visuais) jogam, sem dúvida, muito melhor do que os nossos fenômenos do futebol. A bola tem um guizo, o que deve ser adotado, urgentemente, pela CBF, se não por outro motivo, para acordar os jogadores em campo e lembrar que há um jogo em curso. A torcida deve ficar em silêncio total, o que seria bom em jogos da seleção oficial, até porque não há nada a dizer, principalmente levando-se em conta os últimos resultados, a não ser que haja alguma opinião a ser dada sobre Dunga ou sua genitora. Mas, a idéia de ter um chamador atrás do gol é boa, para orientar os jogadores do ataque, para que saibam onde está, afinal, o gol. Talvez, assim acertem o gol adversário. No mais, da maneira que a seleção está jogando, não são necessários mais do que cinco jogadores em campo. Os outros podem ficar assistindo. Uma coisa me deixou curioso: será que deram mesmo as medalhas de ouro para os nossos para-olímpicos de futebol? Afinal, de repente resolveram economizar dando de prata ou de bronze e a turma nem iria perceber. Mas, no duro mesmo, só um cego, ou um deficiente completo, não só visual, não consegue ver que com Dunga a nossa seleção não vai a lugar nenhum."

Pra quê? Lá vem o Cearucho de lança em riste:

"O pior cego é o que não quer ver. Eis o título do comentário de certo leitor, aproveitando as para-olimpíadas para registrar a deficiência do futebol dos que não são cegos. Foi bem até os 88 minutos, Dr. Wilson. No 89º e no último, porém, cometeu dois deslizes, ao meu ver. Primeiro: Ao cogitar da possibilidade de não terem sido dadas as medalhas de ouro e a turma nem iria perceber (caso não se trate de uma brincadeira), não levou em conta que, na solenidade, não havia só cegos, a não ser que, exatamente na hora do pódio, tivesse começado o filme do Meirelles (não o do Banco Central). Segundo: Lembra daquela novela do Dias Gomes em que o personagem interpretado pelo Lima Duarte, o manda-chuva do lugar, quis elogiar o delegado (que era preto), dizendo ser ele um negro de alma branca? Pois é: aqui, ao dizer que só um cego não consegue ver que com o Dunga a nossa seleção não vai a lugar nenhum, o senhor está desconhecendo a capacidade dos fisicamente cegos de raciocinar, de discernir. Embora sem querer, porque geralmente ninguém erra por que quer, o senhor pisou na bola, doutor. Mas, se preocupe não: a torcida não viu..."

Eis a verve do homem.