28 junho 2013

Sobre a normalidade e outras bobagens


“A aprovação, na última terça-feira, de uma proposta que permite a psicólogos tratar a homossexualidade como doença abriu o caminho para que gays, lésbicas e transexuais peçam aposentadoria compulsória por invalidez, na avaliação de ativistas homossexuais.” (Dos jornais)
 
Que é normalidade?
Tenho um respeito muito grande pelas pessoas que chamamos “anormais”, pois normais somos quem se acha no direito de apodá-los assim, tal como ironizou Machado de Assis no sempre citado O Alienista. Tenho respeito especial pelos perturbados mentais, talvez porque tenha conhecido, há tantos lustros, os tormentos da síndrome do pânico, essa doença elitista que já atormentou gente muito mais importante do que eu. Até o divertido Mário Prata, que não me deixa mentir. Quando se enamorou de uma bela cantora portuguesa, lá se foi ele de mala e bagagem para a santa terrinha dela. Bateu-lhe o pânico e ele veio correndo para o solo materno. Tempos depois descreveu, com humor, os conselhos que os pretensos amigos lhe deram para sair daquilo. Alguns diziam que aquilo era excesso de mulheres em sua vida; outros diziam que era carência de mulher. Uns diziam que ele estava bebendo muito; outros recomendavam um porre.
Alguns atores e atrizes que você não mais vê na tela ou no palco devem essas férias forçadas ao angustiante pânico, que vem a partir de nada, racionalmente falando. De repente, a pessoa se convence de que aquele satélite espacial que os jornais dizem que se está desintegrando vai cair na cabeça dela. E por mais que os amigos argumentem que isso não tem lógica, a pobre senhora respondia com toda lógica: que ele vai cair na Terra todos garantem que vai; pode cair no mar ou em terra firme; quem garante que esse lugar em terra firme não é justamente aquele local em que eu vou estar quando isso ocorrer. “Bem, quer dizer.” Viu como eu tenho razão?
Também conheci as não menos tormentosas noites infindáveis da depressão, que um filme delicado retrata à perfeição. A fotografia e a música de As Horas, com interpretações magníficas de três atrizes de primeira grandeza, mostram que aquilo é mais do que apenas uma homenagem a Virgínia Wolf, uma dentre tantos escritores atormentados por seus demônios interiores, que a escrita não conseguiu exorcizar completamente, mas uma autêntica  moção de respeito a todos os que conheceram esse terrível caminho em direção às trevas, como disse um deles, o escritor William Styron, autor do emocionante livro Escolha de Sofia, que, transformado em filme, tem, coincidentemente, como atriz principal uma das três a que me referi acima, a extraordinária Meryl Streep.
O fato real é que, em 1941, em uma crise de depressão profunda, Virgínia, tal como se mostra no filme, encheu os bolsos da roupa com pedras e entrou no rio que passava perto de sua casa, para afogar os seus fantasmas, e de lá não retornou viva.
Aliás, Mercedes Sosa imortalizou o drama da escritora e poetisa Alfonsina Storni, que, em 1938. fez algo semelhante: portadora de uma doença atormentante, avançou mar adentro. Diz a belíssima canção de Ariel Ramirez e Felix Luna, cuja letra fala bem do peso que carregam pessoas que costumamos chamar de “anormais”:
Por la blanda arena que lame el mar 
su pequeña huella no vuelve mas. 
Un sendero solo de pena y silencio llegó 
hasta el agua profunda. 
Un sendero solo de penas mudas llegó 
hasta la espuma.
Sabe Diós que angustia te acompañó, 
que dolores viejos calló tu voz 
para recostarte arrullada en el canto 
de las caracolas marinas 
la canción que canta en el fondo oscuro del mar 
la caracola.
Te vas Alfonsina con tu soledad. 
Que poemas nuevos fuiste a buscar? 
Una voz antigua de viento y de sal 
te requiebra el alma y la está llevando. 
Y te vas hacia allá como en sueños, 
dormida, Alfonsina, vestida de mar.
Cinco sirenitas te llevarán 
por caminos de algas y de coral 
y fosforescentes caballos marinos harán 
una ronda a tu lado. 
Y los habitantes del agua van a jugar 
pronto a tu lado.
Bájame la lámpara un poco mas. 
Déjame que duerma nodriza en paz. 
Y si llama él no le digas que estoy. 
Dile que Alfonsina no vuelve. 
Y si llama él no le digas nunca que estoy, 
di que me he ido.
Te vas Alfonsina con tu soledad. 
Que poemas nuevos fuiste a buscar? 
Una voz antigua de viento y de sal 
te requiebra el alma y la está llevando. 
Y te vas hacia allá como en sueños, 
dormida, Alfonsina, vestida de mar.
 
Em todas as cidades sempre há um louquinho, como o Zé do Arquinho, em Nova Granada, onde judiquei. Passando diante da janela de meu escritório, na casa onde ele sabia que eu morava, me mostrava as duas mãos espalmadas e os oito dedos cruzados quatro a quatro, a significar a cela para onde eu estaria mandando algum réu. Era atencioso com todos. Alguém que ainda não o conhecia estava a manobrar o automóvel e ele, solícito: “vem!, vem!, vem!”. Até que o confiante motorista, sempre indo em ré, bateu seu automóvel no carro estacionado atrás dele. “Vem que bate!” disse agora o doido, dando pulos e batendo palmas de satisfação.
No bairro em que moro há um que carrega no carrinho de feira pacotes e mais pacotes. Tudo lixo. Como reside na rua, aquilo parece coisa de Sísifo. Pergunto-lhe o que traz naquele carrinho e ele desconversa, preferindo falar do telefonema que irá dar ao Prefeito, para que mande limpar aquela rua, que está muito suja, onde já se viu um desmazelo desses, o senhor não acha? O que ele arrasta para cima e para baixo é o seu segredo e o seu tesouro.
Conheço um outro personagem, que todos os conhecidos reputam lúcido, e que pagou uma fortuna por um quadro pintado por alguém famoso. Deixa-o, porém, guardado no cofre forte de um banco, pois se pendurar na parede da sala ou do escritório, poderão roubá-lo. Qual a diferença entre esses dois doidos?
Minha sogra apresentou durante muitos anos um quadro de demência, que alguém já diagnosticou com nome pomposo: Mal de Alzheimer. Um jovem psiquiatra, muito prático, foi curto e grosso: para saber se realmente isso é um autêntico Alzheimer, eu teria de submetê-la a muitos exame e testes. Será necessário? É claro que não. O que importa é que ela não tem memória para fatos presentes. Se você viu o filme Procurando Nemo, lembra-se daquela simpática peixinha que vivia perguntando vezes e vezes a mesma coisa ao pobre pai do Nemo, este também um ser apresentava um defeito, este físico, numa das nadadeiras, o que mostra a sensibilidade do diretor do desenho animado, a falar de coisas que muitas pessoas preferem esconder. Pois aquela simpática peixinha deve ter sido inspirada na dona Adélia, que fazia a mesma pergunta vezes e vezes, irritando quem, achando-se pessoa normal, é incapaz de entender uma coisa tão simples: a memória daquela octogenária não tem mais espaço para armazenar mais nada. Não é assim com o computador?
Meu interesse por pessoas desse tipo me levava a fazer com minha sogra algumas experiências, o que me obrigava a entrar no mundo dela, até porque ela não tinha condição de vir até o meu. Quem desconhecesse meu real propósito, pode ver nisso um exercício de sadismo. Paciência!
Em um jantar de fim de ano que celebramos com o casal de velhos em um restaurante da cidade, fazia parte da refeição uma taça de champanhe, como é de praxe. “Que é isso?“ ela me pergunta. “É guaraná” digo a ela, que leva a taça à boca e toma um gole. Faz uma careta e me chama de mentiroso. Menos de dois minutos depois ela faz a mesma pergunta e eu lhe dou a mesma resposta. Ela leva a taça à boca, toma um gole, faz uma careta e novamente me xinga. Essa maluquice repete-se cinco, seis vezes e eu tentando saber quanto da experiência desagradável poderia produzir, pavlovianamente, um desbloqueio naquele cérebro. Inútil. Se eu não resolvo afastar a taça, aquilo se repetiria interminavelmente a noite toda, para desencanto do cientista russo e meu.
Por vezes faço uma de minhas especialidades sonoras: eu imitava Orlando Silva ou Nélson Gonçalves, pois ela gostava muito de música. Dizem que ela tocava piano muito bem quando era moça e parecia a Elizabeth Taylor, Veja só.
 
“Boemia,
aqui me tens de regresso,
e, suplicante, te peço...”
canto eu. E dona Adélia, no mesmo tom e no mesmo ritmo:
.. a minha nova inscrição.”
Não apenas pessoas com alterações psíquicas me chamam a atenção e despertam minha compaixão. Impressionou-me, por exemplo, uma lúcida jovem que, em razão de suas características pessoais, vive nas dependências do Hospital das Clínicas de São Paulo. Seu trabalho é algo para ser visto e aplaudido.

Depois que vi a Eliana pintando, simplesmente aposentei meus pincéis.

20 junho 2013

Pátria


“Mais de 60 mil pessoas paralisam a avenida Paulista.” (Dos jornais)
 

Cacá Diegues é alguém que conhece o país onde nasceu e onde vive. Seu filme Bye, Bye Brasil é um registro crítico de um Brasil que muitos brasileiros preferem não conhecer. Quando você vê o cenário de um Jardineiro Fiel, belíssimo filme que narra uma história que se passa quase toda na África, não por acaso dirigido por outro brasileiro, você fica impressionado ao descobrir que do outro lado do Atlântico há um segundo Brasil. Aliás, quem já esteve no Congo ou em Angola, que correspondem àquele pedaço de terra que o mar e o tempo retiraram da Bahia, ou vice-versa, nota que até mesmo as palmeiras de lá se parecem com as palmeiras de cá. A areia das praias, os negros e a pobreza são os mesmos. Veja o filme, se não viu, e confirme isso.

Ninguém imagina que o fato de um filme mostrar o que esses dois filmes denunciam implicará a imediata tomada de consciência de que as coisas, cá e lá, podem e devem ser diferentes. Essa mudança da cultura não se faz de um dia para outro. Mas isso acaba acontecendo, para o bem ou para o mal.

A História, como o ônibus do Cacá Diegues, é algo que vai construindo o seu caminho e sendo reparado à medida que avança à procura dele. Pense na dificuldade de trocar os pneus com o ônibus em movimento antes de dizer que “isso não tem mais jeito”. A pergunta é outra: isso é fácil?

Quando você reclamar que a fila no banco ou para entrar no cinema está muito comprida, lembre-se de que na China não há fila. Ou não havia até as recentes Olimpíadas. As pessoas chegam lá na frente para serem atendidas a golpes de cotoveladas. Pergunte à Maria Helena, que queria comer um hambúrguer de carne de cachorro em Beijing, que é como eles, ignorantes que são, chamam a cidade de Pequim. Mulheres, velhos e crianças são derrotados nessa disputa, o que está perfeitamente de acordo com uma cultura em que a companheira jamais anda de braço dado com o marido, mas pelo menos um metro lá atrás. Perguntei à nossa guia como ela se sentia vendo aquilo. E ela, doutrinada pelo machismo: “Mas isso é feito porque cabe ao homem proteger a família”.

No livro O Livreiro de Cabul, que está esgotado nas livrarias, a jornalista norueguesa Asne Seierstad informa, a quem interessar, o que é ser mulher nos países islâmicos. Elas são vendidas e compradas como uma cabra ou uma porca. Imagine o impacto disso para quem vive na Noruega, um país onde o sexo fraco é o masculino.  Você acha que no Brasil isso é muito diferente? Pergunte às mulheres que “fizeram concessões” para obter certos empregos ou serem promovidas e elas lhe contarão coisas interessantes. O famoso “teste do sofá”, no qual as candidatas a emprego na televisão deveriam (ou ainda devem?) passar, não é folclore.

Quando Mary Quant inventou a mini-saia, foi imitada no mundo todo. Em que ano se deu isso?

Pois do lado de lá da cortina de ferro essa moda, indecente para os donos do poder, penetrou, levada certamente por agentes capitalistas, que pretendiam, com isso, destruir os valores morais dos soviéticos. Coisa da CIA. Felizmente, o primeiro ministro Nikita Kruchev, sempre alerta, fez condenar à morte dois costureiros que se atreveram a tentar implantar a nova e inadmissível moda, que nem por isso deixou de ser ali adotada algum tempo depois. As pessoas quiseram, as pessoas fizeram.

Quando a modelo brasileira Rose Di Primo, acho que ainda está viva, inventou, por mero acaso, o biquíni, foi aquele escândalo. O presidente Jânio Quadros, que, atendendo a pedido da escritora Adelaide Carraro, havia proibido a briga de galo, pois ela, que escrevia livros eróticos que nossos pais não permitiam que as filhas lessem, tinha muita pena dos bichinhos, agora talvez atendendo a pedido de outra fã, certamente de corpo menos aplaudível do que o da modelo, não deu para proibir também o uso daquela peça indecente? Fê-lo porque qui-lo.

É nessas idas e vindas que se constrói o que, ao fim de algum tempo, se chama cultura. É claro que cultura é muito mais do que isso, mas isso está nela incluído.

Comecei com o Cacá e termino voltando a ele. Qual será o maior amor do mundo?

A julgar por outro filme do Diegues, poderemos pensar que é o amor materno. Mas, quem é a mãe, no filme? Veja e descubra.

Em nossa linguagem comum, falamos em “pátria mãe”, expressão aparentemente contraditória, pois, originalmente, pátria é o local onde estão enterrados os nossos antepassados do sexo masculino, os nossos patres.

Disse o Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego: “Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente, mas odeio, com ódio verdadeiro, quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a página mal escripta, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a orthographia  também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a fala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha”. O Caetano se apropriou da idéia: “Eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria.”

É óbvio que pátria é muito mais do que isso, da mesma forma como cidadania não é apenas fazer passeata. Mas é também isso.

As palavras, como as pessoas e as nações, são coisa viva. Formidável é um adjetivo que abre sorriso na cara mais séria. Quem não gostaria de ser assim chamado? Saber que é bonita, inteligente, boa praça, bacana, nota dez, pedra noventa e tantos outros sinônimos que a palavra comporta? Para os romanos, porém, formido era aquele espantalho que nós pomos no milharal para afugentar os pássaros. Formidável para eles era algo que metia medo, que espantava, que afugentava. Quando as pessoas (isto é, o povo) resolveu mudar o sentido da palavra, ninguém segurou.

Que tal se fizéssemos hoje o mesmo que os nossos ascendentes fizeram outrora? Se pegássemos o nosso formidável país da corrupção e o transformássemos em um país realmente formidável?

O sentido da palavra lá e cá fica por tua conta.

14 junho 2013

O Mito da Ressocialização


 “Para o Presidente Ayres Brito as decisões do Supremo na ação penal 470 sinalizam uma virada de página na direção de um Brasil com melhor qualidade na vida política.”

 Também sou daqueles que entendem que o famigerado processo 470 do STF poderá vir a ser um divisor de águas em nossa sociedade. Não apenas no campo da política. Essa dívida nós teremos, por menos que queiramos, com os aloprados que levaram às últimas consequências a nacional crença de que “é preciso levar vantagem em tudo”, imortalizada em uma peça publicitária inesquecível (clique aqui). Necessário é, no entanto, que nos debrucemos criticamente sobre o “processo do mensalão”, não só no seu nascedouro, mas no seu desenvolvimento, em suas conclusões e nas lições várias que pode trazer-nos, desde que estejamos dispostos a recebê-las.
Em primeiro lugar, como tem dito e repetido o Ministro Marco Aurélio, esse autêntico grilo falante que, de longa data, trombeteia o antigo mote de seu colega Mário Guimarães, no sentido de que “o voto vencido de ontem pode vir a ser a jurisprudência de amanhã”, a definição da competência de uma Suprema Corte como instância única para o julgamento criminal de alguns réus, sob o irônico epíteto de “foro privilegiado”, faria rir uma criança, se tivesse ela noção mínima do princípio da razoabilidade. “Cuida-se de aferir a compatibilidade da lei com os fins constitucionalmente previstos ou de constatar a observância do princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsprinzip), isto é, de se proceder à censura sobre a adequação (Geeignetheit) e a necessidade (Erforderlichkeit) do ato legislativo”, segundo nos diz o Ministro Gilmar Mendes.
Em segundo lugar, a função de decidir tem peculiaridades diferentes das que tem a função de rever decisões. Imagine-se a cena: juízes da Suprema Corte norte-americana de lápis na mão a fazer contas de chegar quando se cuida de apenar os condenados. Coisa digna de filme de Woody Allen.
Em terceiro lugar, os mesmos juízes, ao baterem boca se os réus devem ou não devem entregar seus passaportes, parecem desconhecer a jurisprudência da Casa no sentido de que, presumida a inocência, a tentativa de fuga do réu não se pode presumir. Há de o decreto de prisão preventiva ou qualquer outro ato de restrição total ou parcial da liberdade especificar os motivos pelos quais tal restrição é decretada, tanto mais necessária quando se cuida de mais de uma vintena de réus, cada um com suas características individuais.
Por fim, digno de recordar que a linguagem compõem-se de frases e as frases de palavras, como diria o imortal personagem de Eça. Assim sendo, não é de estranhar que muitas palavras de nosso uso comum sejam fruto do preconceito, como “urbanidade”, que supõe, pré-conceituosamente, que as pessoas da cidade sejam mais educadas do que as pessoas interioranas. A palavra “judiar”, para muita gente, refere-se ao que os judeus, genericamente considerados, fizeram a Jesus. Caldas Aulete, no entanto, desmascara tal versão: ela significa “tratar como antigamente se tratavam os judeus”. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, editado em Lisboa, supõe que o final “iar” sugere influência da língua espanhola, pois a palavra se refere às condições em que viviam os judeus, confinados em cidades cristãs da Europa, até porque, segundo Antonio Houaiss, ela teria surgido no século XV. “Por causa das condições adversas em que viviam e dos maus-tratos a que eram submetidos” os judeus, diz Márcio Bueno, em A Origem Curiosa das Palavras, “a palavra judiaria passou a significar também perversidade, ato de maltratar, de impor sofrimento, surgindo daí o sinônimo judiação”.
Nossos dicionários são lacônicos ao definir ressocialização, preferindo o óbvio: “tornar a socializar-se”. Mas, que teria levado alguém a deixar de ser uma pessoa “socializada”? Se, como quer a Sociologia, a socialização é um processo de integração dos indivíduos de um grupo social, tanto quanto a sociabilidade compreende as maneiras de quem vive em sociedade, para citarmos Aulete, quem, a não ser Tarzan e Robinson Cruzoé, necessitariam de um processo intensivo de readaptação à vida social? Trata-se, já se vê, da presença do preconceito: estamos falando de pessoas que, tendo nascido na periferia (para não falarmos “nascidos em favela”), habituados a “maneiras” diversas das nossas e que agora, vindos para a cidade grande, estão despreparados para aí viver, necessitam de passar algum tempo enjaulados para aprender como se vive fora das grades. Supuseram os criadores da infeliz palavra que nós, os citadinos, nós, os de curso superior, nós, os políticos, não precisamos ir para a cadeia porque, socializados que somos, não há falar em ressocialização diante das infrações legais que cometemos. Não fosse isso assim, que curso de ressocialização daríamos a um político infrator? Talvez mostrar-lhe o conteúdo das leis penais que ele ajudou a criar. E que curso de ressocialização daríamos a um advogado infrator? A um médico? A um padre? A um juiz?
Quando pessoas honestas e bem-intencionadas repetem, sem maior cuidado, a velha arenga de ser a pena instrumento dessa tal “ressocialização” e, ao mesmo tempo, reconhecem que os presídios do Brasil são uma vergonha, como, de fato, são, eu indago: onde estão os promotores de justiça e os juízes criminais que, por lei, têm o dever de visitar periodicamente tais estabelecimentos? Onde estão os desembargadores que, devendo fiscalizar os juízes, não o fazem? Como haveremos nós outros de ressocializar esses ressocializadores omissos?
Umberto Eco, um dos grandes pensadores de nosso tempo, nasceu em um lar católico. Como tantos jovens de seu tempo, educou-se sob o manto do fascismo. “Em 1942, com a idade de dez anos”, diz ele, “ganhei o primeiro prêmio Ludi Juveniles (um concurso com livre participação obrigatória para jovens fascistas italianos – o que vale dizer para todos os jovens italianos). Tinha trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema ‘Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?’ Minha resposta foi afirmativa. Eu era um garoto esperto”, ironiza ele. Caindo Mussolini e desacreditando da Igreja católica, especialmente por sua passividade diante da ditadura, buscou “ressocializar-se” por outros meios, como registra em inúmeras obras, uma das quais Cinco Escritos Morais, de onde se extraiu o texto acima. No oportuno Em que Creem os que não Creem? podemos ler a troca de correspondência entre ele e o cardeal Carlo Maria Martini, Arcebispo de Milão, cada um narrando os fundamentos de sua “sociabilidade”. Ali, ele afirma: “Devemos, antes de tudo, respeitar o direito da corporalidade do outro, entre os quais o direito de falar e pensar. Se nossos semelhantes tivessem respeitado esses ‘direitos do corpo’, não teríamos tido o Massacre dos Inocentes, os cristãos no circo, a noite de São Bartolomeu, a fogueira para os hereges, os campos de extermínio, a censura, as crianças nas minas, os estupros na Bósnia”. É claro que o rol não pretendeu esgotar os exemplos possíveis. E indaga, como se cuidasse do tema aqui trazido: “Mas, como é que , mesmo elaborando de imediato o seu repertório instintivo de noções universais, a besta que coloquei em cena poderia chegar a compreender que deseja fazer certas coisas e que não deseja que lhe façam outras, e também que não deveria fazer aos outros o que não quer que façam a si mesmo?”
O nosso sistema prisional premia com a chamada “progressão no regime de cumprimento da pena” não o sincero arrependimento do pecador, como pode sugerir a palavra “penitenciária”, mas o mero e cínico afeiçoamento às regras da prisão. Quem dirige essas prisões? Quais as regras ali vigentes?
O que nos permite concluir que “ressocializar-se” não é, entre nós, realizar uma metanoia (“mudança de atitude por força da conversão”, como dizem os dicionários teológicos), a partir da descoberta dos valores alheios (“A dimensão ética começa quando entra em cena o outro”, resume Umberto Eco), mas aprender a realizar a arte da dissimulação.
Sendo isso assim, concluamos, pragmaticamente, que os já cínicos não necessitam de pena.
 

07 junho 2013

Diálogo ao pé do monte


Se é verdade que os sonhos são o meio pelo qual nós conversamos conosco, eu não quero saber de papo comigo. Sujeitinho chato, metido a besta, sempre querendo interpretar isto e mais aquilo. Um caga-regras, enfim. Resultado: quando acordo, tenho uma vaga impressão de que sonhei, meu espírito viajou por aí a fora, mas se esqueceu de fotografar os pontos turísticos. Nem roteiro, nem imagens, nem personagens. Nada me vem à lembrança. Apenas aquela sensação idiota de que carreguei pedra a noite toda, tal o cansaço que sinto depois de, em tese, haver descansado.
Como toda regra, essa teve ontem uma exceção. Acordei hoje tendo a nítida certeza de que, na noite anterior, fiz uma viagem ao Oriente. E que viagem! Lembro-me claramente de estar sentado num camelo, tanto quanto outros turistas e o nosso guia. A certa altura, como é próprio dos sonhos, não havia mais ninguém, além do camelo que eu cavalgava desajeitadamente. Nem o guia. Olhei para um lado, olhei para o outro e tudo o que vi foi aquele deserto árido, como se eu estivesse nos Lençois Maranhenses. Estivesse no emirado do Sarney e, seguindo a noroeste, cedo ou tarde eu chegaria ao Oceano Atlântico. Mas ali? Sem saber o que fazer, exclamei instintivamente “Meu Deus!” Foi a senha para o camelo seguir a galope em direção a nada, o que, para mim, não faria a menor diferença. Chegamos a um local onde havia um pequeno morro. Perto do cume, uma árvore de Natal, com luzinhas piscando. O camelo, com o beiço, apontou-me a árvore e deu um corcoveio, derrubando-me ao solo. Não tendo escolha, subi até o local da tal árvore.
“- Senta-te!” foi o que ouvi. Uma voz tonitruante, que se espalhava pelo vale. Olhei para o camelo e ele, positivamente, não tinha cara de ventríloquo. Ou então seria o melhor ventríloquo que já encontrei na vida.
“- Senta-te!” ecoou a mesma voz. Não tive escolha.
“- Quem sois vós?” indaguei, solene.
“- Sou aquele que chamaste.”
Esse camelo ficou louco. Quem eu chamaria num deserto desses? Com um calor de 40° na sombra, se houvesse sombra, até juízo de camelo pifa, eis minha conclusão. Olho em torno e nos 360° próximos a sombra maior era aquela das luzinhas da árvore, quando apagavam momentaneamente, antes de acender novamente.
“- Para alguém que vive dizendo que é ateu, chamar-me numa hora de perigo é uma contradictio in adjecto. Não concordas?”
 “- Em primeiro lugar, eu nunca disse que sou ateu. Eu sou agnóstico. Ateu, no grego, significa ‘ausência de Deus’ (a+theos) enquanto a palavra agnóstico expressa um juízo suspenso (desconsideração de tudo o que não pode ser provado). Se Deus me deu inteligência foi, certamente, para ser utilizada. Se ele não me convence de que ele existe é, certamente, porque ele não quer provar que ele existe. Logo, ser agnóstico é respeitar a vontade de Deus. Em segundo lugar, eu não chamei ninguém. Utilizei de uma reles interjeição, que, como sabeis, não tem sentido algum, servindo apenas para expressar admiração, alegria, aplauso, desejo, despedida, dor, medo, susto e coisas assim. ‘Puta merda!’ não quer dizer absolutamente nada. O mesmo se diga de outras expressões, como ‘Vixe!’, ‘Bah!’, ‘Taquipariu!’ É um mero desabafo diante de um risco que se correu. Ou de uma surpresa. Ou sei lá de que mais. Só alguém muito egocentrado pensaria que estamos falando nele quando estamos simplesmente fazendo um natural desabafo.”
“- Quando eu dei ao ser humano inteligência sabia que com ela viria a arrogância. Fé não tem nada a ver com inteligência. Fé é uma entrega cega. A inteligência, que só pus no ser humano, tem objetivos bastante limitados: compreender aquilo que pode ser entendido. Acho que até deixei isso escrito naquele livro que lhes deixei e que vocês costumam colocar como enfeite na sala de vistas. Entra visita e sai visita e aquela fitinha vermelha está sempre na página do salmo 23. Sinal claro de que o livro jamais é lido.”
“- Quando os astrônomos afirmam que Urano tem um sétimo satélite chamado Ilíada ou qualquer coisa assim, eles exibem sons e fotos que demonstram a existência de Urano e do tal satélite. Aí eu creio.”
“- O sol te afetou o cérebro, meu jovem. Você vive com a Playboy na mão, babando feito criança diante daquelas mulheres maravilhosas que aparecem ali. Você já viu alguma delas pessoalmente? Com certeza viu, mas não reconheceu, pois eu não uso photoshop para aperfeiçoar os meus trabalhos. O que eu fiz está feito. Vocês é que têm essa mania de querer combater os efeitos do tempo. Que sabem vocês sobre o tempo? Vivem falando que ontem deveriam ter feito isto, amanhã deverão fazer aquilo. O ontem e o amanhã são irmãos gêmeos que só existem na fantasia humana. Em realidade, eles não existem. A cada dia bastam suas tribulações. Acho que também escrevi isso.”
“- Se era para nós não entendermos tudo, para que vós nos destes a inteligência?”
“- Para vocês compreenderem que não é possível conhecer tudo. Se tua inteligência não te mostra isso, a culpa não é minha. Aliás, se a memória não me falha, Urano tem 20 satélites e nenhum deles se chama Ilíada: Cordélia, Ofélia, Bianca, Créssida, Desdêmona, Julieta, Pórcia, Rosalinda, Belinda, Puck, Miranda, Ariel, Umbriel, Titânia, Oberon, Calibã, Estêvão, Sicorax, Próspero e Setebos. Acho melhor você dirigir a sua fé para algo mais consistente. Permita-me uma pergunta: qual o benefício advindo para sua vida depois que você passou a acreditar que Urano tem um satélite chamado Ilíada? Qual será tua reação quando confirmar que não há em Urano nenhum satélite chamado Ilíada nem Odisséia?”
“- Lá vem o senhor com essa visão utilitária da fé. Creio para compreender.”
“- Quem disse isso foi o bispo de Hipona, que era tão humano como tu.”
“-E a Igreja não vive dizendo faça isto para merecer aquilo?”
“-Quem inventou a Igreja foram vocês, não fui eu. A vida é uma sucessão de encruzilhadas. Eu lhes dei livre arbítrio e inteligência para escolherem o caminho que acham melhor. Em lugar disso, diante da menor dificuldade vocês se prostram de joelho e pedem um GPS. Que eu ajude as tartarugas e os colibris tudo bem, que são praticamente indefesos. Mas uns cavalões desses que se acham os reis da criação? Deixem-me em paz que eu tenho Nn sistemas solares para cuidar. Faça os cálculos. Ou vocês acham que eu só existo nesse planetinha de, como direi?, insignificante?”
“- Quando nos criastes vós sabíeis aonde iríamos chegar”, disse eu, todo solene.
“- Era uma possibilidade e eu preferi correr esse risco. Mas seus colegas astrofísicos já estão vendo que minha atenção atual está centrada em outros sistemas solares, onde eles dizem que pode haver vida inteligente. Algo que mereça ser chamado vida inteligente. Por que não?”
“- E que vai ser de nós, senhor?” indaguei, de joelhos.
“- O que vocês quiserem que seja” respondeu ele, dando uma gargalhada que se espalhou pelo vale, sacudindo tudo à nossa volta.
 Acordei deitado no chão, embrulhado no tapete. Que nem era persa, até porque a Pérsia já era.