23 abril 2012

Placas



"Justiça condena USP a devolver doação de R$ 1 milhão.” (O Estado de S.Paulo, edição de 23/04/2012)


Moro num 11° andar. Bem defronte de minha varanda nasce e morre uma ruazinha, aí dos seus dois quarteirões, se tanto, que tem o pitoresco nome de Caboquenas. Não sei bem quem ali terá sido homenageado pela Câmara local. Teria sido ele algum militar? Um professor universitário? Um banqueiro? Ignoro. Ora, se é para dar àquela insignificante rua o nome de alguém desconhecido, por que não o de alguém não tão insignificante quanto ela e seu nome atual? Por que não lhe dar, num futuro que espero distante, o nome de alguém que, sentado na varanda, entre os vasos de orquídeas parafusados na parede, olha para o nada enquanto redige mentalmente sua próxima crônica semanal? Com a palavra o Paulo Frange, que, além de ser um dos mais laboriosos vereadores de São Paulo, tem a vantagem de ser meu amigo, e saber muito bem que nossos amigos não têm defeitos; e, quanto a nossos inimigos, de nada lhes serve termos qualidades.


Aqui em São Paulo, aliás, algumas placas contendo o nome da rua, praça ou avenida traz um indicativo sob o nome: jornalista, escritor etc. Não sei bem qual o critério que leva alguém a escolher determinado bairro para homenagear determinada pessoa. Meu pai, por exemplo, revolucionário de 32, sim, senhor, é nome de rua no bairro da Mooca, talvez porque foi lá que lhe nasceu um dos filhos. O esclarecimento não consta da placa respectiva, que poderia esclarecer: pai de fulano de tal, batizado na Igreja de São Rafael. 


Recentemente houve um charivari dos diabos na USP por causa de umas placas que andaram colocando em portas da tradicional Faculdade de Direito do largo de São Francisco, as quais, até então, só abrigavam nomes de antigos professores, bote antigos nisso!, sob o subjetivo critério do merecimento. Agora o critério seria objetivo, segundo seu diretor anterior: pelo preço módico de R$ 1.000.000,00 algum respeitável morto poderia ter seu nome encimando uma daquelas portas, mesmo que jamais tenha dado, ali ou alhures, ao menos uma única palestra. 


Vejamos a biografia de um dos mais recentes agraciados. Indo à Wikipédia, ficamos sabendo que "Pedro Conde, nascido Pietro Conde (Itália, 1922), formado em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi um destacado banqueiro brasileiro. Nos anos 80 foi um dos mais ativos investidores das bolsas brasileiras. Nos anos 90 vendeu o seu banco, o BCN, para o Bradesco, ficou ainda no conselho do banco, mas logo faleceu." Epa! A placa, pelo jeito, foi colocada em faculdade errada, se é que deveria estar em alguma faculdade e não num panteão destinado aos nossos grandes empresários.


Qual a explicação para a contemplação de figuras públicas como essas, postas ao lado das venerandas figuras que já lá estavam antes de eles nascerem? Eis o que disse seu ex-diretor, responsável pelo chapéu na mão: "Em 2007, a Associação dos Antigos Alunos, a diretoria e o centro acadêmico haviam encetado campanha para a obtenção de fundos para dotar a faculdade de salas de aulas modernas. A campanha pedia contribuição de R$ 1 mil de cada antigo aluno, mas apenas cerca de R$ 650 mil foram arrecadados. Surgiu a possibilidade de que dois doadores construíssem cada qual uma sala. O documento foi assinado pela Associação dos Antigos Alunos, pela diretoria e por representantes de agremiações discentes." Repare na sutileza: "o documento". Qual? Note que não se alude a fundamento legal, algo estranhável vindo de um ex-juiz de Direito, que conhece de cor e salteado o art° 458 do Código de Processo.


Segundo o mesmo informe, Pedro Conde Filho, ex-aluno da faculdade, disse lamentar a reação dos alunos e afirma que não esperava os protestos contra o nome de seu pai. "A faculdade precisa se modernizar, mas o Estado não tem condições de arcar com isso. Por que ex-alunos bem-sucedidos seriam impedidos de colaborar? Muitas faculdades, no Brasil e no mundo, adotam esse modelo. Agora, não dá para pedir contribuição e não dar nada em troca", diz Conde Filho.


Ou seja, segundo o próprio filho do banqueiro, não se cuidava de homenagem, mas de um autêntico do ut des, como diziam os romanos. Dou-te isto para que me dês aquilo, no dizer de qualquer de nossos civilistas.


Minha perplexidade decorre de minha notória ingenuidade, para não dizer ignorância. Até aqui eu havia suposto que a estátua que se vê na entrada e que desde tempos pré-históricos tem um cigarro aceso colocado por algum gaiato entre os dedos, de há muito amarelados, fosse para lembrar aos alunos daquela faculdade a figura de alguém que se destacou na área jurídica. Quem foi ele? Um tal José Bonifácio, o Moço, sobrinho-neto do outro, o Velho. Vamos, por amor ao tratamento igualitário dos envolvidos, algo que o filho do tal banqueiro certamente sabe chamar-se isonomia, à mesmíssima Wikipédia, para sabermos quem foi o eterno fumante: "Foi professor de direito na escola de Recife e depois em São Paulo, tendo sido titular da cadeira de Direito Criminal e da de Direito Civil. Teve como alunos figuras como Rui Barbosa, Castro Alves, Joaquim Nabuco e Afonso Pena." Nada mau, não achas? Quanto alguém terá pago para ter ele um busto de corpo inteiro logo ali na entrada da nossa velha e sempre novidadeira Faculdade? 


Quanto ao José Bonifácio, o Velho, diz a mesma enciclopédia que foi tutor de outro Pedro, cujo nome jamais poderia caber numa placa de porta de sala de aula. Ou de rua: Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga, filho de Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon. Conhece ? Se uma placa comum não sai por menos de R$ 1.000.000,00, evidentemente com financiamento bancário, imagine-se por quanto sairia uma placa em que coubesse o nome do tal tutelado. Nem pensar. 


Há nessa questão de venda de placas um pormenor que todos os envolvidos deixaram de lado ou não perceberam. Quando se coloca uma placa com o nome do Barão de Ramalho, por exemplo, implicitamente se está colocando também uma placa invisível, com dizeres como: "Faça como eu fiz, dedique-se, estude e também terá alunos como Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e Afonso Pena." Se no futuro vier a ser colocada ali uma placa com o nome do ex-aluno José Celso Martinez Correa, da nossa gloriosa turma de 60, também se estará colocando a segunda placa invisível que, se conheço bem a irreverência do Zé Celso, teria estes dizeres: "Passei cinco anos aqui e eles não me serviram para nada. Melhor fazer como o Paulo Autran."


Talvez valesse a pena levar-se o mote para um comercial, projeto que meu amigo Gomes Filho acaba de fazer abortar ao revogar a portaria do diretor anterior: ir de metrô à Praça da Sé e, dali, ao Largo de São Francisco: R$ 2,70; ter o nome na porta de uma sala de aula da Faculdade de Direito da USP: R$ 1.000.000,00; merecer, por seu currículo, que seu nome seja dado a uma sala de aula da velha e sempre nova Academia das Arcadas: não tem preço.


16 abril 2012

- Ping



Você gosta de pingue-pongue? Nunca jogou? Então vamos lá: ao fim da última estrofe há um tag, que é aquela palavra de cor diferente. Aperte o tag e abrirá um link. Bom proveito!






Há um rapaz na minha rua
que me parece tão triste.
Por que será que ele insiste
em pensar que não existe
gente como eu: só fracassos?


Se esse moço se insinua,
dizendo qualquer gracejo,
se me olhasse como o vejo,
se me acendesse o desejo,
que atitude eu tomaria?


Que pensa o gajo da lua,
que ilumina os namorados,
circulando, braços dados,
com ares de apaixonados,
em passos de romaria?


Se ele me quisesse sua,
se me desse um só sorriso,
mesmo sem um prévio aviso
eu perderia o juízo
e cairia em seus braços.

15 abril 2012

Law & order

“Demência na prisão é um fenômeno ainda pouco comentado nos EUA, mas que está crescendo com rapidez e muitas das prisões do país não estão preparadas para lidar com ele. É uma consequência não prevista das políticas de ‘tolerância zero’ com a criminalidade. Cerca de 10% dos 1,6 milhão de presidiários nos EUA cumprem prisão perpétua, enquanto outros 11% receberam penas de mais de 20 anos.” (Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 14/04/2012)

Quem disser que sala de espera de consultório médico ou de dentista nada tem a ver com cultura merecerá minha total desaprovação, pois está redondamente enganado. Não saberia contar de quantos fatos importantíssimos já tomei conhecimento em razão daquelas revistas que ali somos praticamente obrigados a folhear. Ainda agora fiquei sabendo, graças a uma dor de dente que me levou ao consultório do Pedro Paulo, que a princesa Diana sofreu um acidente fatal. O carro, aparentemente dirigido por um motorista alcoolizado, colidiu contra um poste ou um barranco, a reportagem não esclarece isso muito bem. Daqui a alguns meses talvez eu fique sabendo se o motorista teve culpa ou não, dúvida que me assalta no momento. É só ter uma nova dor de dente. O importante para mim não é a data, mas o fato. Não era assim que aprendíamos história na escola?


Creio que o leitor não conhece, como eu não conhecia até minha última visita ao cardiologista, o John Mendez. Nem jamais dele ouviu falar, tanto quanto eu. A julgar pelo prenome, cuida-se de cidadão norte-americano, já que reside nos Estados Unidos da América do Norte. O nome de família, no entanto, deixa claro que se cuida de descendente de um dentre tantos latinos que subiram o continente para proporcionar melhor padrão de vida aos seus familiares, cruzando o rio Grande. Suporá o leitor que talvez estejamos diante de um desses jogadores de baseball que, vindos de Cuba ou São Domingos, fazem carreira no Eldorado do esporte profissional praticando esse jogo de taco que nos parece tão enfadonho e nos remete à infância. 


Ou um desses atores, como um Antonio Rudolfo Oaxaca, que, vindo do México, encantou o mundo com os personagens marcantes que interpretou em Hollywood tanto quanto na Europa. Não conhece? A senhora nunca ouviu falar do Rudolfo Oaxaca? Pois saiba que um dos personagens mais famosos por ele interpretado foi Zorba, o grego, sob o nome artístico de Anthony Quinn. Que, aliás, era também um conceituado pintor. De telas, acrescento. E que publicou uma autobiografia na qual nos dá uma pálida ideia do que é ser ator famoso. Você termina o livro adorando ser anônimo.
Informo, porém, que Mendez não é artista. O motivo que o levou ao noticiário televisivo foi, talvez, uma expressão que teria tudo para enquadrar-se nessa categoria, a julgar pelos feitos de um Pollock, por exemplo, aquele que brincava de pintar, salpicando tela, chão e parede de borrifos de tinta. Pena que as autoridades norte-americanas assim não pensassem.


De fato, a arte de John Mendez (arte naquele sentido que nossas mães e avós empregavam para rotular nossa falta de modos) foi pouco menos do aquilo que fez Miró, ao aproveitar-se de fezes humanas para dar a uma de suas telas a cor exata que procurava, como revela em sua longa entrevista publicada como A Cor dos Meus Sonhos. Pois a arte de Mendez consistiu nisto: deu, por motivos que não vêm ao caso, uma solene cusparada no rosto de um policial. Algo que Nélson Rodrigues, comentando incidente semelhante ocorrido num Flamengo versus Canto do Rio, ocorrido nos idos de 1957, chamou de “cusparada metafísica”, muito embora naquele longínquo episódio o alvo não fosse uma autoridade, nem intra nem extra-campo, mas simplesmente a bola, que, humilhada pelo deboche, desviou-se da trave, num lance que “envergonharia até mesmo uma cambaxirra”, no dizer do mesmo cronista.
Mendez, por força do inoportuno gesto, foi levado a julgamento, como seria alguém que fizesse o mesmo por aqui. Talvez aqui isso fosse conceituado como um crime de injúria (que os técnicos chamam, no caso, de injúria real, pelo contato físico entre o que arremessou o autor e a vítima) ou, em derradeiro caso, um desacato, a girafa do Código Penal, ao juízo do Edmeu Carmesini, crimes para os quais a pena imposta por um juiz brasileiro seria a imposição de multa, ou, na pior das hipóteses, prestação de serviços à comunidade. 


O azar de Mendez é que ele não reside no Brasil, onde os juízes costumam aplicar em casos tais o chamado princípio da proporcionalidade, que aprenderam, ironicamente, com os signatários da Declaração Norte-americana dos Direitos Fundamentais (na verdade, um conjunto de emendas introduzidas na Constituição Federal dos EUA). Lá, uma cusparada metafísica como essa custou ao cucaracha condenado nada menos do que o resto de sua vida. Prisão perpétua, eis a pena que, em nome da necessidade de se manter a ordem e fazer obedecer a lei, foi imposta ao cuspidor. Foi o que aprendi na sala de espera do consultório do Feltrin.


A revista não informa que aqueles soldados norte-americanos que impuseram tanto sofrimento a prisioneiros paquistaneses foram condenados, pelos equilibradíssimos juízes norte-americanos, a apenas alguns meses de recolhimento. 


Nada a ver com isso, mas vem-me à lembrança, sei lá por que, episódio envolvendo nosso famigerado Lampião. Diz a crônica que, doidinho pra fumar, o cangaceiro entrou num boteco e se dirigiu ao primeiro conterrâneo que ali encontrou, indagando com sua voz grave: “Vosmicê fuma?”. E o conterrâneo, todo gaguejante, pelo sim, pelo não, respeitando a autoridade (coisa que nosso cucaracha não fez), não teve dúvida: “Até hoje fumei sim, senhor. Mas, se o capitão quiser, eu paro agorinha mesmo”. 


Quando for aos Estados Unidos da América do Norte não se esqueça dessa historinha.



12 abril 2012

Amanhã vai ser outro Dia



"O que mais me preocupa não é nem o grito dos violentos, dos corruptos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética. O que mais me preocupa é o silêncio dos bons." (Martin Luther King Jr.)


Quando ele se mandou, muita gente torceu o nariz. “Logo agora?” Aí está a sabedoria do homem. Já imaginou algum jornalista perguntando a ele se ainda indicaria a alguém algum candidato do PT? Ou então: “Já houve na história recente do Brasil um Ministro da Cultura pior do que o teu colega?” Aliás, num dos inúmeros DVDs que ele deixou para consolo meu e de todo mundo, ao lhe perguntarem se havia preconceito de cor no Brasil, ele não teve dúvida: “Pois meu genro não teve de vender o apartamento que tinha em Ipanema, já que os moradores do tal prédio não aceitam preto? Que que eu posso fazer? Sair no tapa?”


Eu seria pouco original se começasse uma crônica sobre o Chico dizendo que esse moço tá diferente. Pudera, tomando kir no Les Deux Magots e lendo Baudrillard a bordo do Bateau Mouche até eu. Eu nem precisaria morar na Ille de Saint Louis, ali onde só os chiques e novaes, como a minha amiga Noca, compram apartamentos. Ser esquerdista na França até o Sartre, meus caros. Vinhos excelentes, comida boa, companheira compreensiva com tuas puladas de cerca. Que mais queres? E, além disso, quando calha, o dia todo no Roland Garros, vendo o Nadal ajeitar a cueca e as meias antes de sacar, ou aplaudir o Federer ganhar mais uma partida de tênis, com aquela fleugma suíça. A menos que o adversário seja o Nadal, é claro. O único problema do Sartre foi que bateu um ar nele durante um certo jogo e cada olho ficou fixado num dos jogadores. Ele conseguia, a partir daí, assistir a uma partida de tênis vendo os dois jogadores ao mesmo tempo, sem ter de estar movendo a cabeça daqui pra lá, de lá pra cá, como nós, pobres mortais. Un œil sur le chat, l’autre sur le poisson, como diria o Chico, agora metido a falar francês. Songes et mensonges, sei de longe e sei de cor. Quando ele canta “acorda, acorda, acorda” ele talvez esteja querendo dizer “d’accord, d’accord, d’accord”, depende de quem ouve. 


O antigo agitador de massas, que chamava democracia de carnaval e mandava os militares calarem a boca valendo-se de uma homofonia, deu lugar a um tranqüilo avô de três ou quatro netos, alguns deles composições do Carlinhos Brown. O rosto triste, de alguém que talvez esteja pensando “qual, este país não tem mesmo jeito!”, aquele fiapo de voz anasalada de sempre, barriga nenhuma e um par de orelhas que aumentaram de tamanho devido ao rigoroso regime militar, “seulement caviar et champagne, monsieur Chico?”, ainda está vendendo saúde. Coisa da academia Polytheama. 


Sou, confessadamente, uma das milhares, talvez milhões, de viúvas do nosso Carioca, como era conhecido na rua Maria Antonia, lá se vão muitas decepções, inconformado com essa besteira de ele querer falar em Benjamins e outras cidades visíveis. Quem não cantou o “quem sabe faz a hora não espera acontecer” não sabe a efervescência que era aquilo, no tempo em que ser de esquerda era algo um pouco mais do que se chamar Zagallo. Se você acha que eu não sei que o autor daquele hino era o paraibano Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, problema teu. 


Os teóricos diziam, e nós acreditávamos, que o socialismo era o filho bastardo do capitalismo. Aí está a família Bush para ilustrar isso: o atual ex-presidente Bush é aquilo que todos sabemos. E nem o candidato do seu partido quis o homem por perto. O Michael Moore já mostrou quem foi o pai do W. num dos esculachos cinematográficos que fez. E o pai de um e avô do outro? Gente finíssima! Prescott Bush robbed Geronimo's tomb and brought his skull and bones to Yale, diz sua biografia, orgulho do neto, certamente. Violar túmulo de um herói indígena para exibir os ossos como troféu de guerra! Só mesmo um Bush! “Mr. Bush - like his father and his grandfather - belonged to Skull and Bones, an elite secret society that includes some of the most powerful men of the 20th century”. A notícia está no CBS 60 Minutes. Se duvidar, consulte o primeiro Google da rua. Alguém imagina que daí surgirá algum socialismo? Nem se o novo presidente fosse negro e muçulmano, meu caro.

Agora, falando sério, eu preferia não falar de política. Ou dizer, como o Chico, alô, liberdade, levanta, lava o rosto, fica em pé; como é, liberdade? vou ter que requentar o teu café?


Antes o problema da nossa frágil democracia brasileira eram o Legislativo e o Executivo. Morrendo de inveja, o Judicário resolveu mostrar que também é composto de brasileiros, tal como seus irmãos montesquianos. E deu no que deu. 


Entretanto, quem de nós, os eternos quixotes, não está de acordo em que se deve sonhar mais um sonho impossível? Lutar, quando é fácil ceder? Vencer o inimigo invencível? Negar, quando a regra é vender?


Quem sabe um dia o mundo ainda venha a ver brotar uma flor do nosso impossível chão.

05 abril 2012

Juízo, juízes


“Enteada do Ministro Gilmar Mendes ocupa cargo de confiança no gabinete do senador Demóstenes Torres.” (Dos jornais)

Nossa tendência sempre é dizer que certos comportamentos só ocorrem no Brasil. Por exemplo, nunca antes neste país, como costuma dizer certo demagogo, o Poder Judiciário esteve em tamanha evidência como hoje. Mudou o Natal ou mudei eu? É evidente que isso se deve principalmente a um fato novo, digno de encômios: a consciência da nossa sociedade de que os juízes não são anjos nem seres superiores, imunes ao pecado. Se, como dizem eles, ubi homo ibi peccatum, insta que a sociedade esteja aparelhada para punir os pecadores, pena de trazer o descrédito aos cidadãos, negando, no limite, a própria razão de ser da Magistratura.


Cito o caso de certo presidente do nosso tribunal, que era homem de bem e de postura paternal em relação aos juízes, para ilustrar isso. Um amigo de infância, dono de uma grande fábrica de calçados na cidade natal de ambos, enviava-lhe constantemente caixas e caixas de sapatos, por mais que ele lhe pedisse que não o fizesse. Para não comprometer a amizade, ele as recebia e mandava guardar num armário do seu gabinete. Quando ali entrava um juiz, ele o media bem e indagava que número de sapato ele calçava. Diante da resposta do espantado juiz, ele mandava que ele abrisse o armário e escolhesse um par. Levado pela liberdade que ele concedia aos magistrados, perguntei-lhe certa ocasião até quando iria ser mantida essa imoral “disponibilidade com vencimentos parciais” com que eram e ainda são brindados magistrados que se mostram indignos do cargo e não têm tempo de serviço suficiente para aposentar-se. A explicação dele foi inacreditável: “A família dele não tem culpa.” Insisti, dizendo-lhe que quase todos os réus que nós mandamos para a cadeia também têm família. E ele, mais inacreditavelmente ainda: “Mas essas nós não conhecemos”.


Alguns causos que me pareciam dignos de registro coloquei-os no livro "Menas verdades". Tenho material para um segundo volume.


Temos agora um novo motivo de perplexidade, vindo de nossa Magna Corte, que talvez não seja tão magna assim. Certo membro daquela Casa ainda não decidiu, segundo dizem os jornais, se vai dar-se por impedido ou não para julgar rumorosíssimo caso no qual sua namorada de muitos anos, que é advogada, atuou até 2009. Ora, se ela não mais atua no caso, não há problema ético algum. A dúvida do ministro certamente se deve ao sadio policiamento da imprensa, pois não faltará quem atribua um voto favorável dele ao ex-cliente dela à gentileza do julgador feita à sua namorada. Como se ele precisasse disso para agradá-la. Uma viagem com ela à Europa, patrocinada por algum advogado, seria mais comprometedor do que isso. 


Permita-me, porém, caro Ministro, a liberdade de lembrar as palavras de Manzini, ao falar dos institutos da suspeição e do impedimento do juiz: eles “não têm somente a finalidade de prevenir decisões injustas, senão também a de evitar situações embaraçosas para o juiz e de manter a confiança do povo na administração da justiça, eliminando causas que poderiam dar lugar a críticas ou a malignidades. Até das aparências deve cuidar-se quando se tratar da justiça”.


Com o descrédito em que se acha o nosso Judiciário, todo cuidado é pouco, digo-lhe com o atrevimento de meus cabelos brancos. Quanto ao nosso Executivo e o nosso Legislativo, perca a esperança.


03 abril 2012

Do diário de um caminheiro/1

               Confesso que jamais pensei em chegar tão longe. Diziam-me os mestres que per aspera ad astra, mas, como nunca almejei chegar aos astros, consegui evitar as asperezas do caminho. Jamais pensei em ser pai e me vejo avô, um modo diferente de ser pai. Um pai sem as responsabilidades da paternidade, sem as chatices e cobranças da paternidade, um pai mais amigo dos filhos e admirador de suas peraltices. Um pai que, agora, é tratado como filho pelos filhos.