31 maio 2013

A bunda


 
“The wounds you cannot see are the most painful (1).”

(Nelson Mandela)

 

Quando a mulher negra entrou no ônibus, chamou-me a atenção, a mim que estava sentado num dos primeiros bancos, o tamanho descomunal de suas nádegas. Como sabemos, as portas dos ônibus noruegueses têm, ao menos em Oslo, uma divisória que separa as pessoas que entram daquelas que saem, muito embora, por paradoxal que seja, haja no interior do ônibus uma determinação clara: Utgang bak. Se a saída deve ser feita pela porta dos fundos, para que aquela divisão? Mesmo assim, muita gente entra pelos fundos e sai pela frente. Principalmente os não-noruegueses. E também muitos jovens loiros, que, ao que parece, não precisariam economizar o preço da passagem. O que é o mau exemplo!
Pois a tal mulher entalou na entrada e o motorista, que aparentemente já a conhecia, foi obrigado a desmontar a porta, retirando a tal divisória, para que ela entrasse e depois por ali saísse.
Sentou-se ela num banco duplo, ocupando-o todo, esparramada. Eu conseguia vê-la porque sua imagem aparecia no espelho situado à minha frente, à esquerda. Claro que não via o corpo todo, mas o espaço que ela ocupava, com um vestido que lhe dava o ar de uma barraca.
Estranhei aquele tipo de africano na Noruega – ela só podia ser africana, já que a Escandinávia não produz negros daquela tonalidade, pois sempre havia visto por aqui apenas somalis, cuja constituição física é diversa. São mais esguios e magros. E mais bonitos também. Ou os pardos, que são indianos ou paquistaneses, coisa que nós ocidentais não distinguimos claramente, para desespero deles. Imagine um galego sendo tomado por português! Ou um francês sendo confundido com belga.
Na África há, desde sempre, negros e negros. O que sei é que, quando os mercadores europeus descobriram aquele continente como celeiro de mão de obra gratuita, graças principalmente à permissão da Igreja, que não os considerava inteiramente humanos, deu-se a captura de número impensável de negros, transportados pelo mar, para serem vendidos nas feiras, juntamente com galinhas e porcos, para muito além dali. Muitos deles atravessaram o Atlântico em linha reta, levados principalmente para o Brasil, colônia portuguesa que necessitava de mão de obra importada porque os portugueses que haviam sido mandados para a colônia eram criminosos e, sendo aquilo uma punição, não tinham eles nenhuma vontade de trabalhar o chão do seu exílio. Que trabalhassem os indígenas.
Ocorria que os nativos, tal como os pássaros, não se acostumavam a viver em cativeiro, preferindo morrer a ficarem fixos em alguma fazenda. A solução, portanto, foi importar negros da África, tal como faziam as colônias inglesas do Novo Mundo, principalmente para colherem algodão e darem nascimento ao jazz. Bendita escravidão!
Logo se descobriu que os nativos de Angola eram os mais trabalhadores dos escravos que nas praias brasileiras haviam aportado. Eles tinham as pernas finas e as nádegas muito grandes, o que chamava a atenção dos brancos, pois era um tipo bizarro. Falavam o quimbundo ou bundo, mesmo porque mbundu significava negros na língua deles. Para os portugueses, os negros falavam bunda, a língua angolana deles, que, aliás, havia sido objeto de estudo por parte de um missionário lusitano que se enfurnou naqueles ermos no século XVII, e onde até hoje há quem fale a língua de Camões, como herança deixada por esse abnegado missionário.
Como esses angolanos de nádegas grandes eram muito trabalhadores e como não interessava aos fazendeiros ter em suas terras negros que falassem línguas diferentes (menos pela língua deles e mais pela cultura diversa, que, não raro, significava tribos inimigas, e, portanto, lutas mortais), encomendavam o negro pela língua que era falada pelos demais trabalhadores da fazenda: a bunda. O que bastou para que a palavra viesse a referir-se não mais à língua, mas ao aspecto físico deles: nádega grande, sua principal característica física, que os distinguia dos negros de outra procedência.
E tanto isso é assim que em Portugal as nádegas são chamadas de cu, da mesma forma como os de língua inglesa chamam-nas ass. No Brasil, nádegas e bunda são a mesma coisa, reservando-se ali o vulgar e impronunciável cu para designar o ânus, que os de língua inglesa chamam asshole.
Tudo isso eu expliquei, como pude, ao motorista do ônibus, quando chegamos ao ponto final. Aquela havia sido a última viagem dele naquele dia e eu lhe ofereci algum trago de øl num café ali próximo, o que ele, já vencido o turno de serviço, não tinha por que rejeitar. Baixamos umas tantas garrafas de cerveja norueguesa, pois os bares são proibidos de vender vinho ou uísque, e depois da quarta ou quinta ele se pôs a falar, quebrando a discrição dos nativos, que muitos pardos adotam, ainda que, aparentemente, seja proibido à casta superior de brancos locais aceitar empregos menores, como o de motorista, por exemplo, seja de ônibus, seja de táxi, função ocupada por negros e mulatos, africanos, indianos ou paquistaneses, como era o caso do meu interlocutor, que vivencia aqui na distante Escandinávia o mesmo sistema de castas que vivera em seu país natal. Não dizem que a História é feita de repetições?
Ele conhecia a negra de nádegas grandes há muito tempo, quando ela viera para a Escandinávia, fugida das lutas fratricidas entre as duas facções que disputavam o poder em Angola, alimentadas por potências externas. Não errei ao supô-la uma bunda. Antes disso vivera algum tempo na vizinha Moçambique, de onde também foi escorraçada pelo confronto entre duas facções: a Frente de Libertação Moçambicana e o Renovação Nacional Moçambicana, as temíveis Frelimo e Renamo, uma delas mais violenta do que a outra.
Bungwanga, eis o seu nome, era uma jovem que havia demonstrado desde cedo pendor para as artes. Nada a estranhar num país onde as esculturas em ébano ou mesmo marfim (coisa que o governo acabou proibindo, pois era com a venda das presas dos elefantes que os revolucionários adquiriam armamentos no exterior) são vendidas nas ruas sem calçamento, por um preço quase simbólico.
Pois a negra desenhava e pintava com extrema habilidade, como se reconhecia na aldeia onde ela morava. E suas pinturas eram misteriosas, cheias de símbolos que nem ela mesma saberia explicar como se haviam ali fixado. Coisas dignas de fazer a alegria de um terapeuta junguiano, aquela expressão do inconsciente coletivo, de que ela, evidentemente, jamais ouvira falar.
“Tudo o que fiz foi reproduzir um sonho”, explicava ela e mais não dizia. Nem tinha o que dizer.
Seus quadros tinham como personagens principalmente os animais africanos, que ela reproduzia com fidelidade fotográfica. O comportamento dos personagens, contudo, fugia ao comum. Um belo e elegante leão fugindo atemorizado de uma simples gazela. Ou um crocodilo sendo escoiceado por uma zebra.
Também pintava flores. Rosas, muitas rosas, em cujo caule faltavam, porém, os necessários espinhos. “Querer rosas sem espinho é o mesmo que querer mulher sem ciúme” disse um crítico local mais exigente. Pintava bugainvílles, togomas e túbis, com seus caules floridos e também nus de espinhos.
Pássaros, muitos pássaros, que pareciam ter sido desenhados pena por pena, tal sua perfeição. Mas que não coincidiam com aqueles que todos conheciam. Araras multicoloridas, com o bico da garça. Aves de rapina sem as garras que lhe atribuem o sobrenome.
Era, enfim, uma inversão da normalidade da natureza, como reconheciam todos, principalmente os poucos turistas que por ali passavam e lhe compravam a produção a preço de banana. Ou pelos potentados locais, principalmente os políticos, aos quais não faltava dinheiro para pagar o que os quadros efetivamente valiam.
E tudo seguia seu rumo se ela não houvesse pintado um quadro que fugia de seu repertório. Ele mostrava um avião sobrevoando matas claramente africanas. Tinha ele posição descendente e lançava fumaça aos ares. Apenas isso. Nem fogo se via no aparelho.
Deu-se, porém, que na semana seguinte um líder político local veio a morrer na queda de um avião, cuja cor correspondia exatamente àquela da pintura da nossa Bungwanga. A coincidência foi objeto de muitos comentários, que, com o passar dos dias, foi diminuindo, deixados à conta de mera coincidência, mesmo porque eles nada sabiam dos estudos junguianos a respeito da sincronicidade. E a vida voltava ao normal, ela com suas pinturas costumeiras.
Mais um mês e ela, certamente inspirada por um impressionante quadro de Goya, que teria visto numa revista importada (isso nunca ficou muito claro), pintou uma alegoria, na qual se poderia perceber claramente que dizia respeito à disputa sangrenta entre dois homens.
Na semana seguinte houve um atentado numa das praças da cidade, quando um prestigioso político foi morto por um parente próximo, em plena luz do dia. Novos comentários daqueles que haviam visto o quadro, que agora precisou de algumas semanas, não apenas dias, para ser aparentemente apagado da memória daqueles curiosos.
Bungwanga continuou a pintar seus animais, seus peixes, suas flores e seus pássaros e sua vida continuava na mesma rotina de sempre. Novamente, porém, foge ela de seu repertório habitual e mostra em uma de suas telas uma mulher com um longo vestido branco, ao contrário das vestes coloridas costumeiras. A mulher está sendo esfaqueada, não se distinguindo bem, na penumbra do quadro, as feições do agressor. Havia na mulher um pormenor perturbador: ela tinha no rosto uma sombra que claramente indicava ser referente a uma barba masculina.
Na semana seguinte um prestigiado bispo maronita, que passava pela cidade, foi esfaqueado à saída do templo. Sua batina branca ficou tisnada pelo vermelho espesso que lhe correu do peito. E lá estava a necessária barba cobrindo o rosto da autoridade eclesiástica assassinada.
Ora, as estranhas coincidências foram, como sói acontecer em ocasiões tais, comunicadas ao Ministério da Justiça e Bungwanga foi convidada a prestar os devidos esclarecimentos junto a quem de direito.
Quem lhe dava informações tão precisas a respeito de fatos pesarosos como aqueles que ela registrava em seus quadros com precisão e antecedência? “Meus mentores”, limitou-se a dizer ela.
Os negros são profundamente supersticiosos e, em outra situação, tal resposta seria suficiente para explicar o inexplicável. Há naquela região muitos nhamussoros e ela talvez fosse também apenas uma feiticeira. É verdade que, em nome de Mulugo, muita gente comete atos que nada têm a ver com o Criador. Entretanto, como o país estava sendo invadido por agentes estrangeiros, interessados nos recursos naturais de Angola, seu silêncio foi interpretado como manifestação política.
Dali não voltou para casa. Ficou alguns anos detida, sem a formalização de um julgamento, mesmo porque não havia ligação direta entre a premonição e os fatos previstos e, portanto, de nada se poderia oficialmente acusá-la.
O motorista não me sabia indicar exatamente onde ela ficara detida, nem que tratamento havia recebido, pois não tinha tanta intimidade para perguntar-lhe isso, que ela jamais quis contar espontaneamente. O fato é que, passados esses anos, ela conseguiu bandear-se para o país vizinho, em circunstâncias que ele também desconhecia, e de onde acabou por ser expulsa, sem jamais dizer ao amigo os motivos dessa punição. Os reis da Noruega, sabedores das agruras por que passava a pintora, ofereceram a ela asilo político.
“E que faz ela agora?” indaguei-lhe, como era natural que o fizesse.
“Ela é faxineira nas horas vagas”, respondeu-me ele.
“Horas vagas?”
E ele me explicou que a maior parte do tempo ela o passa pintando seus quadros, que vende a preços irrisórios a um norueguês, que se passa por autor deles, vendendo-os por intermédio de uma das inúmeras galerias da cidade. “Oslo, como o senhor sabe, tem mais galerias do que farmácias”, foi seu comentário, que me impediu de saber onde poderia encontrá-los para uma análise mais objetiva dos trabalhos de nossa Bungwanga, que se liga ao país de origem pela “Quadros Angolanos na Diáspora”, uma entidade aparentemente oficial que tem por objetivo a evidente fiscalização dos angolanos no Exterior, comenta ele.
“E que tipo de quadros ela pinta agora?”, indago, curioso.
“Focas, baleias, renas, garças, gaivotas e flores, muitas flores locais, dessas que se encontram nas ruas de Oslo na Primavera.”
Personagens humanos não mais. De todos os quadros que ele viu, pintados na Noruega, apenas um chamou sua atenção, por fugir dessa rotina: era uma mesa comum, coberta por um pano verde, onde havia cartas de baralho espalhadas. No chão, apenas duas cartas: o rei e a rainha de copas. Ambas rasgadas em quatro pedaços.
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1. As feridas que você não pode ver são as mais dolorosas.