26 abril 2011

Causos forenses*

E tem o causo do juiz que me segredou olhando para um lado e depois para o outro, não fosse alguém ouvir sua confissão, que hoje, veja o desembargador, assim solene, por que drama de consciência passei hoje, repetiu nervoso, não é que o réu denunciado pela prática de crime contra o patrimônio não tinha contra ele prova alguma digna do nome nem vítima reconhecendo nem nada mas ocorre que o advogado dele é o mal afamado doutor fulano de tal, já envolvido até em inquérito policial sob a acusação de receptação dolosa não é que descobriram no sitio de Sua Senhoria, falo do tal advogado, nada menos do que uma oficina de desmanche de automóveis? pois é, o tal mal afamado era o defensor do tal réu e como eu sei que esse advogado só defende bandido não tive outra escolha a não ser condenar o réu mesmo com a precariedade das provas existentes nos autos, o tribunal que o absolva, não eu.
E o Ranulfo não estava junto à porta do fórum do interior do Estado onde judicava então, fim de expediente, aguardando que a Marina o viesse buscar, aquela santa! pois carro oficial com ele, nem pensar! preparando seu cigarro de palha mineira com fumo goiano autêntico quando ali chegou o caboclo aflito a querer falar coisa grave com o juiz de Direito e o Ranulfo solícito como sempre leva primeiro o cigarro à boca acende dá uma solene tragada e volta a empunhá-lo ao tal cigarro, já em condições de atender o queixoso, e naquela fala de mineiro de Passos ou talvez Ventania ele lhe pergunta ao homem agora mais calmo: juiz de que vara? E o caboclo, malicioso a mais não poder: sartei de banda, cigarrim de paia!



*Do livro Menas verdades (Causos forenses ou quase), Editora Migalhas

07 abril 2011

Novos tempos


Vocês que têm o mau hábito de envelhecer já conhecem bem isto. O fato é que eu não sei com quantos anos deixei de acreditar no Papai Noel. Para um dos meus netos, 4 anos de idade, ele é feito de plástico e mora no shopping. E quando deixei de acreditar em cegonha? Se aparecia em nossa casa uma mulher barriguda, poderíamos pensar em muita coisa, menos em gravidez, palavra, aliás, que não era pronunciada em casas de família. As crianças eram trazidas pela cegonha, ave, aliás, que nenhum de nós jamais havia visto, tal como cabeça de bacalhau. Talvez fosse invenção dos adultos para tentar explicar o inexplicável. Em alguns lares, as crianças eram entregues dentro de um pé de repolho. Logo repolho, com aqueles efeitos intestinais lamentáveis? Pois era. Aliás, o repolho era mais adequado do que a cegonha para simbolizar o lugar onde ficava o feto até ser expulso para o sul do Éden, como se diz na Bíblia. O bico da cegonha estava, falando freudianamente, mais para simbolizar um dos agentes do ato de fecundação do que para explicar o transporte do produto. Trenzinho saindo de um túnel iria melhor, aproveitando uma imagem muito cara a mestre Hitchcock.
Não sei bem quando aprendi essas coisas de sexo. Garanto que não foi ouvindo de papai ou mamãe, que, certamente, não eram dados a essas coisas sujas. O fato é que, quando eu ainda tinha calças curtas, minha mãe caiu de cama. Apareceu lá o Dr. Cacuri, que, depois de examiná-la no quarto, com a porta fechada, veio até o quintal e atirou na lata de lixo alguma coisa que eu, curioso à beça, fui ver do que se tratava. Era uma camisinha de Vênus, como os adultos se referiam àquele estranho objeto, também chamado condom, em homenagem ao francês que o inventou, objeto que, segundo a francesa Madame de Staël, parecia feito de aço, no que diz com o prazer, mas parecia feito de renda, no que diz com os efeitos anticoncepcionais. E eu já sabia para que servia aquilo! Que diabos faria aquele objeto de nome impronunciável no corpo da minha mãe? Eis uma pergunta que me acompanhou até depois dos 30 anos de idade, já casado e pai de filhos. Quando passei a fazer psicoterapia, levado por uma insuportável síndrome do pânico, de que já falei alhures, narrei esse incidente de infância, para espanto dos que o ouviram. O Paulo Gaudêncio, nosso psicoterapeuta, achou conveniente que eu indagasse de minha mãe, já viúva e com quase 70 anos de idade, o que havia ocorrido, pois mais dia menos dia essa incerteza se eternizaria. Tomei coragem e, com circunlóquios e gaguejos, consegui concretizar a indagação. Ela admirou-se de minha lembrança, puxou pela memória e, depois de alguns minutos, deu um tapa na testa e se pôs a rir. Contou-me então que naquela ocasião ela se havia submetido a uma cirurgia relativa a uma hemorróida e a coisa complicou-se, tornando-se necessário que, com o uso de uma dedeira de borracha e vaselina, fosse restabelecido o orifício anal, tal como lhe demonstrara o mencionado Dr. Cacuri. Ufa!
As crianças de hoje certamente não carregam dúvidas dessas por muito tempo, pois pouquíssimos temas, se é que ainda há algum, podem ser considerados tabus. Tenho quatro netos. O André, com 12 anos, já se acha um galã, com aqueles olhos verdes e o cabelo loiríssimo cobrindo os olhos. O irmão, na hora do almoço, revela que o André já tem namorada. Interpelado pela mãe, ele responde, altivo: “Por que? Não pode?” Se eu fosse o pai, não saberia o que responder, até porque não imagino o que seja um namoro envolvendo pessoas dessa idade. Tudo o que aprendi na vida foi: “criança que faz criança já não é mais criança”. O Vítor, que é precisamente o delator acima referido, é mais chegado aos livros, e tem vocação artística, como o tio materno. Ele completou 8 anos e a mãe já cuidou de ensinar a ambos a história da sementinha. O Felipe, aos 4 anos, conversava até outro dia com a irmãzinha, que ainda estava na barriga da mãe, de onde sairia, segundo ele, quando o médico fizesse um corte logo abaixo do umbigo. Só faltou dizer que se cuidaria de uma incisão horizontal. No dia marcado para isso, lá estava ele, com pai, tios, avós, bisavó e primos assistindo, pelo vidro da janela da sala de cirurgias, à cesariana que trouxe ao mundo a Mariana, recebida por ele com efusiva salva de palmas, quando exibida, ainda suja de sangue, pelo médico à platéia que se acotovelava diante da tal janela assistindo ao incrível espetáculo, coisa que eu não tivera coragem de fazer quando do nascimento de meus filhos e netos. Como será o mundo dessa bela menina?
Nasce-se e morre-se. Ou, como dizia o Fernando Pessoa, somos cadáveres adiados que procriamos.
Dia desses morreu nossa Elizabeth Taylor, paixão da mocidade de tantos de nós, que, naqueles primórdios, suspirávamos de inveja da Lassie. Sua biografia foi amplamente divulgada pelos meios de comunicação, anotando-se especialmente o número de maridos com que tentou manter um casamento duradouro, como se isso fosse exceção na vida artística. Pouco depois falecia Farley Granger, não tão famoso, mas que aparece em dois filmes do Hitchcock. Que há de especial em sua biografia? Diz-se ali que teve casos amorosos com Ava Gardner, “o mais belo animal do mundo”, na opinião de um fã qualificado: o polivalente artista  francês Jean Cocteau. E também teve ligações amorosas com pessoas não tão belas, dentre as quais o famoso maestro e compositor Leonard Bernstein, autor de coisas belíssimas, como a música de West Side Story
  Aliás, essas particularidades dos artistas de cinema eram mantidas, naqueles idos, a sete chaves, mesmo porque havia as comissões da moralidade, que tinha no senador Joseph McCarthy um defensor incansável. Que faria ele se viesse a público a lista dos namorados e namoradas da Marlene Dietrich, por exemplo? Aliás, não faltou quem dissesse que o senador só se casou com a secretária quando surgiram rumores de ser ele gay, como seu braço direito Roy Cohn, que, aliás, morreu em conseqüência de Aids. Que, aliás, matou o belíssimo Rock Hudson, cuja amizade com Marlon Brando sempre suscitou fofocas. Mesmo porque se dizia que ele e James Dean, sei não, sei não.
Em suma, pensando bem, acho que tudo isso que tanto me espanta hoje já havia há muito tempo. Eu é que demorei a perceber.