29 setembro 2012

Hebe


              “Saber que se está com câncer é um choque. Sentimo-nos traídos pela vida e pelo próprio corpo. Mas ficar sabendo de umas recaída é terrível. É como se dscobríssemos de repente que o monstro, que acreditávamos ter abatido, não está morto, e não havia parado de nos seguir na sombra, e terminou nos pegando.” (David Servan Schreiber, Anticâncer)

Diz a biografia oficial que ela nasceu na cidade de Taubaté, interior de São Paulo, em 08 de março de 1929, filha do violonista Fego Camargo. Iniciou sua carreira como cantora, atuou em várias emissoras de rádio, em diversas capitais do Brasil. O primeiro trabalho de Hebe foi ao lado de sua irmã Estela e das primas Helena e Maria. Depois ela e a irmã formaram uma dupla sertaneja. Aí veio o primeiro contrato como cantora-solo, nas Rádios Tupi e Difusora de São Paulo. Quando veio a televisão, foi contratada por Dermeval Costa Lima, o todo poderoso da TV Paulista, no início de 1952.
O que a biografia oficial não diz é que ela era morena, tinha sobrancelhas que pareciam duas taturanas se beijando. Carinha comum, corpinho comum e nada sexy. Mas se dizia que ela e o Costa Lima sei não, sei não, coisa que ela, sempre desbocada, jamais admitiu, dizendo até que era amiga da mulher do chefe. Então tá.
Digo eu que foi aí que nos conhecemos.
Foi assim: a emissora de televisão onde ela atuava apresentava um programa tipo “A felicidade bate á sua porta”. A felicidade, na verdade, era um caminhão que ia até uma casa de bairro e se a moradora tivesse ali algum produto fabricado pelo patrocinador do programa, ganhava um pacote disto e mais uma caixa daquilo. Para consolar as vizinhas despeitadas, baixavam-se as “guardas” do caminhão, que se transformava num palco tosco, onde dois ou três músicos acompanhavam a cantora que era ninguém menos do que a Hebe. O público, evidentemente, eram as donas de casa, matronas que, naqueles idos, jamais pensariam em queimar sutians, tomar anticoncepcionais ou trabalhar fora de casa. Além delas, as crianças que já haviam voltado da escola por ali se acotovelavam. Dentre elas, um garoto espichado, um “pirolão”, como então se dizia. Ninguém menos do que este que vos fala, uns 8 anos mais novo do que a precoce cantora.
Naquele dia o repertório terminava com “Beijinho doce”, que ela encerrava com um beijo na palma da mão e um sopro na direção do galã escolhido, que era ninguém menos do que o tal pirolão, que procurou um buraco no chão para enfiar a cabeça.
O tempo foi passando, mais depressa para mim do que para ela, eu fui envelhecendo e ela cada vez mais moça, agora distribuindo beijos a granel, os tais “selinhos”. Em certo programa ela tentou dar uma selada no Jamelão e quase levou um safanão. “O que que a patroa vai dizer quando eu chegar lá em casa?” protestou ele, com aquele vozeirão que nos encantava.
Tivemos algo em comum: um primeiro câncer. Alguns médicos, atrevidamente, depois de um tratamento bem sucedido, dizem que o câncer está curado. Outros advertem que, naquele tipo de câncer (pois câncer é como rosa: há de muitas cores) o risco de recidiva (nome que eles dão à reincidência) é de 30, 40 ou 50%. Outros, mais drásticos, dizem que o câncer é uma moléstia crônica, que, como tal, deve ser fiscalizada por todo o resto de vida. O fato é que, superado o primeiro, tivemos um segundo, do qual ambos nos safamos. Veio um terceiro e cada um de nós procurou driblá-lo como nos permitia o bom humor e os avanços da medicina, nome, aliás, bem escolhido do Instituto da Dra. Nise Yamaguchi, que é quem tem cuidado dos meus com tal dedicação que merece o registro.
Adeus, colega.
 
 

23 setembro 2012

Luar sobre Havana

 

No Malecón, pessoas ainda conversam, debruçadas sobre a mureta larga, onde um e outro atrevido senta-se, admirando, pela milésima vez, a água que, tal como as pessoas que por ali passam, nunca é a mesma. Viejos coches trafegam sonolentos em ambos os sentidos. Fords e Packards que testemunham tempos idos ou tempos que insistem em ficar, em imagens tão impensáveis como um desfile de mamutes ou desses megalossauros que o cinema faz renascer das cinzas antidiluvianas. No ar, o eterno e enjoativo cheiro de charuto.

A limpeza da rua destoa das paredes enegrecidas das casas, que lembram velhos mineiros que, chegando do trabalho famintos, sentam-se à mesa sem mesmo passarem pelo chuveiro, fosse embora ele apenas uma lata de banha vazia com providenciais furos nos fundos, suspensa a uma altura conveniente para recolher a água provinda da bica. E as crostas acumulando-se no rosto e nos braços, incorporando-se ao corpo, para sempre, tatuagens com figuras abstratas a registrar o passar do tempo. Assim o amarelo das fachadas, já descascadas, mais pelo desleixo dos moradores do que pelo inexorável rato que tudo come, o tempo. O que é de muitos não é de ninguém, não é isso?

A janela do sobrado em cuja soleira apoio os cotovelos também traz nas venezianas as onipresentes marcas do mesmo rato, o minúsculo roedor que nada deixa ficar como era, como diz a sabedoria hindu. Uma ou duas palhetas já deixaram o posto há algum tempo, vencidas pelo cansaço, sem que houvesse outras de plantão para substituí-las. O que resta de vidros na janela está surpreendentemente limpo, ainda que discutível seja sua utilidade, já que o vento contorna o obstáculo sem a mais mínima cerimônia.

Na sala, o relógio na parede testemunha, na imobilidade dos seus ponteiros, o tempo que parou lá fora, por desnecessário. Como se quisessem mostrar a inutilidade de seus movimentos, diante da identidade entre o ontem e o amanhã. É um relógio simpático, sextavado, imponente em sua imobilidade absoluta, com o tampo de vidro limpíssimo, fruto dos cuidados de quem faz o que pode para conservar aquelas peças arqueológicas. Como um taxidermista que diariamente escova os dentes inúteis dos seus animais empalhados.

Um móvel envidraçado, estrategicamente postado sob o aposentado marcador do tempo, portas de vidro translúcido, cujo largo bisotê multiplica os escassos objetos lá dentro guardados. Um bule com uma pintura bizarra, tendo no bocal um friso dourado; cinco xícaras de café com os respectivos pires, todos com a mesma pintura campestre e o mesmo arremate dourado do objeto maior. Alguns outros objetos anônimos passam despercebidos pelo olhar do visitante, em sua insignificância estética. Talvez uma geladeira sem marca, que, se fosse aberta, mostraria toda sua inutilidade, no vazio de suas prateleiras.

Sobre a peça, um impensável vaso de louça com a boca levemente lascada e um ainda mais impensável conjunto de flores plásticas, cores desbotadas e um repugnante perfume de bolor. Quem as teria plantado ali? Quando? A que título? Para remate, uma toalhinha de renda, já amarelecida, cujo bico pende além e abaixo do vaso.

Repare o chão. São tábuas largas, enceradas certamente com sebo animal e lustradas com os pés envoltos em improvisadas luvas de algodão. Em frente ao desbotado sofá, um tapete ainda mais desbotado, a sugerir que muitas noites ali foram passadas em conversas intérminas, cujo conteúdo só as paredes conhecem. Sobre que falariam? Sobre quem conversariam? Seriam conversas descuidadas, entre um gole e outro de rum, ou sussurros, ditos entre um lance e outro de olhos para os lados, como se os espiões pudessem surgir do nada num átimo de repente, brotados da parede?

A mesinha no canto e a luminária claramente improvisada, pois ninguém venderia um objeto daquele formato e acabamento, completam a decoração do ambiente, algo próximo de uma cela franciscana, ou uma instalação de algum Braque cubano. Na falta da imagem do santo, a fotografia do bravo guerreiro e seu grito de guerra: hay que endurecer sin perder la ternura jamás! Também poderia ser hace de mi señor los brazos y los piés de tu misericordia.

No quarto anexo, a cortina de voal baila solitária para uma platéia de fantasmas, uma sinistra dança do ventre por força da brisa que vem do mar distante. O colchão largo, posto diretamente sobre o chão, sugere a presença de um casal na casa. Ao menos naquelas dependências da casa. Um armário, apinhado de coisas impróprias a um quarto de dormir, demonstra que a casa do casal tem como limite as paredes do quarto. Não me atrevo a tocar em nada, como quem teme que o toque das mãos produza danos irreparáveis naquelas memórias.

Lembro-me vagamente dos sonos longos que ali passei, quando a companhia justificava, ou nas noites de insônia, com um puro entre os dedos, saboreando sua fumaça dançarina. Em que pensava o jovem idealista entre uma tragada e outra do longo e saboroso charuto? No futuro é que não estariam seus pensamentos, pois jamais fui sonhador. No passado? Ainda menos, pois sempre fui pragmático.

Noto, porém, que esse pragmatismo hoje assemelha-se a Fords e Packards que circulam pelo Malecón da minha mente, e que os rolos do charuto que subiam naquela época estão sendo substituídos por dois corregozinhos mornos que lentamente buscam seu caminho pelo acidentado terreno do meu encarquilhado rosto, como se descessem as encostas da longínqua e saudosa Sierra Maestra.

 

14 setembro 2012

Entre o justo e o injusto


Você é desses que perde tempo vendo jogo de futebol? Pior: vendo mesas redondas na TV sobre o mesmo desagradável assunto? 

Os nossos comentaristas esportivos vivem dizendo que o resultado do jogo de futebol foi justo. Ou então que foi injusto. É o caso de perguntar-lhes: que vocês entendem por justiça? Vocês se consideram pessoas justas? Por quê? Na Bíblia, justo é o homem (sorry, senhoras, mas quem escreveu a Bíblia era machista) que faz a vontade de Deus, “que anda com Deus”, como se diz no Gênesis.

Lidando com essa palavra há mais de 50 anos, acho que tenho autoridade para dizer isto a eles: a Justiça, humanamente falando, não existe. Como? Vejamos.

Quando estávamos na Faculdade e os professores gostavam de esnobar-nos com citações latinas envolvendo Tício e Mévio, se dizia que a justiça consiste em “suum cuique tribuere”, isto é, “dar a cada um o que é seu”. Eis a contradição evidente: se já é meu, por que alguém haveria de dar-me? Não seria melhor dizer “assegurar a cada um aquilo que deve ser seu”? E como ficaria isso na língua do Calígula? Sei lá, meu latim foi-se com os meus cabelos pelo ralo do box do banheiro.

Na verdade, a palavra justiça apareceu quando os reis se elevaram, atrevidamente, à condição de representantes de Deus na Terra. Como não podiam usar a auréola própria dos santos, inventaram algo parecido: a coroa. Sendo deuses, ou quase isso, eles baixavam as leis, fiscalizavam o cumprimento das leis e puniam quem não cumpria as leis, o Montesquieu que não me venha censurar por dizer isso. Isto é, mandavam para o inferno, literalmente, quem não se curvasse diante de Deus, isto é, diante do rei. Até espalharam que não tinham sangue vermelho, como nós, os pobres mortais, pois tinham sangue azul. Da cor do céu, perceberam a sutileza?  Romântico, não? O problema é que o rei Henrique VIII gostava de trocar de esposa como quem muda de camisola em time de futebol português. Ocorre que o Papa não consentia nisso, o que levava o rei inglês a resolver a questão de um modo bastante prático: acusava a esposa de algum crime grave e passava a condenada pelo fio da espada. Hoje Ana Bolena, amanhã a Catarina Howard e vamos que vamos. Quem prestasse atenção nessas execuções, porém, descobriria que o sangue da executada não era azul coisa nenhuma. Mas vá dizer isso em público! “Sempre cabe mais um”, diria Sua Majestade, referindo-se menos ao sabonete e mais ao patíbulo. 

Repare que os juízes têm, no fundo, uma pose real. Nem poderia ser de outro jeito. O fórum se chama Palácio da Justiça, a roupa que eles usam mais parece uma batina e a padroeira deles é Têmis, também chamada Justitia. Não é de admirar que eles se considerem em condições de fazer aquilo que é atributo de Deus e dos reis: julgar. Lembre-se do Julgamento Final, quando o verdadeiro Juiz vai separar o joio do trigo, como se diz na Bíblia. Algum de nós acaso já viu esse tal de joio algum dia? Pois então. Isto quer dizer que, para fazer justiça, só tendo os atributos de Deus, coisa que nenhum de nós tem, por mais que tentemos e por mais complicada que seja a redação das sentenças dos juízes. Aliás, dizem que a diferença entre Deus e um desembargador é que Deus tem a certeza absoluta de que não é desembargador.

Não era a Clarice Linspector, aquela carrancuda escritora  russa/alagoana/carioca quem dizia que amar a Deus é amar tudo o que Ele fez? Se eu não amo o repugnante rato de esgoto, como posso dizer que amo Quem o criou? indagava ela. Cartas para a redação.

Na realidade, a atividade do juiz não tem nada a ver com a justiça divina, até porque se Deus for realmente justo, quem se salva? Ao juiz cabe apenas resolver conflitos entre pessoas, em torno dos chamados “bens da vida”. Aquilo que o Candinho diz que se chama lide, caracterizada por um conflito de interesses. Pense na relação entre o dono da casa e o seu inquilino, dizia eu a meus alunos, já lá vão lustros a perder de vista. Qual o bem da vida para o inquilino? “A casa, onde ele abrigará a si e a sua família” respondia a classe em uníssono. Isto é, todos eles com o mesmo sono. E para o dono?  “O dinheiro do aluguel” bocejavam eles. Logo, se o dono quer aumentar o valor do aluguel, ou se o inquilino não paga o aluguel, virá o juiz e tentará resolver aquele conflito. Era o que eu dizia em complemento. E aditava, todo otimista: tão melhor juiz será ele quanto mais depressa desatar aquele nó, mesmo porque, quem perder a causa jamais se conformará com isso. Ou vocês acham que quem perde a causa vai dizer que o juiz foi justo? E tanto ele não é Deus nem aquilo merece o nome de justiça que de sua decisão cabe recurso, coisa que lá em cima não vai haver, segundo me dizem uns padres que eu consulto vez ou outra, por via das dúvidas.

Voltando ao futebol: meu caro Juca, para se dizer que algo é justo ou é injusto, temos de ter em mente qual é o padrão da medida. Se alguém vem à minha lojinha de tecido comprar um metro de gabardine, eu, antes de mais nada, pego esse tal padrão, que se chama régua. Régua e regra provêm da mesma regula latina, que se pronunciava régula. Se eu coloco a tal régua, que tem um metro exato, sobre o tecido, eu saberei onde está o um metro justo que a minha freguesa quer comprar. Se em minha quitanda alguém quer um quilo de beterrabas, eu vou colocando as beterrabas naquele prato da direita até que os dois pratos fiquem equilibrados, pois no prato da esquerda está o padrão. “Um quilo justo, freguesa”, digo eu todo pimpão.

Ora, no futebol, qual é a regra? É, salvo erro meu, esta: ganha o jogo quem fizer mais gols. Como não há regra alguma a dizer que o vencedor será aquele que jogar melhor, perder ou ganhar não tem nada a ver com o padrão fixado para isso. Logo, como falar em justo ou injusto, Zé Trajano?

Injusto, meu caro Juca, talvez seja o resultado de um concurso de Miss. Aí, segundo a regra, vencerá quem for a mais bonita e não aquela feiosa que conseguiu conquistar a simpatia dos jurados utilizando outros de seus inúmeros predicados. "Feiosa" ao ver de quem? Ou, vindo mais ao chão, injusto é nomear-se juiz para algum Tribunal Superior algum político que sabidamente jamais poderia ser considerado alguém com “notável saber jurídico”, até porque notável quer dizer “aquilo que dá para notar”, o que geralmente será reconhecido pelas obras e obras publicadas pelo candidato. Esse é o padrão. Deu pra entender, ou quer que eu diga nomes?

E se algum desses comentaristas esportivos disser que esta crônica o deixou com a moral baixa, como eles dizem de jogadores que erram cobrança de pênalti, eu lhes direi que a moral não tem nada a ver com isso. Perder pênalti talvez abale o moral do jogador, palavra masculina que significa ânimo, brio, vergonha.

Crônica esta, aliás, com algumas alternâncias, e não cheia de alternativas, como aqueles mesmos comentaristas se referem a alguns jogos que transmitem e no qual ora o time de cá está mais perto de marcar, ora o time de lá é que está. Tudo dependendo da categoria dos jogadores e, em conseqüência, aí sim, das alternativas à disposição dos técnicos.

Entendeu, Felipão?

06 setembro 2012

Cognatos



“Cunhado não é parente!” (Leonel Brizola)

A palavra cognato serve para indicar, em português, aquele parente que não é bem um parente. É assim um parente de segunda mão. Não era parente, tornou-se parente e daqui a alguns anos voltará a deixar de ser parente. Estou falando do cunhado, aquela compensação que o destino lhe impõe por haver-se enamorado da bela irmã dele.

Cognato, portanto, é algo que lembra um produto que fez muito sucesso no tempo de teu avô. Era um produto que “devolvia a cor do seu cabelo”, eufemismo para designar uma tintura pura e simples. A propaganda malandra dizia que “parece remédio mas não é”. Remédio contra que doença? Talvez a velhice.

Os cunhados falsos são um tormento de nós todos. Já os falsos cognatos são o tormento de quem se põe a falar outra língua. Ou, pior, escrever em outra língua.

Por exemplo, você se mete a ler um texto em francês. O tal texto alude a números, a quantidades enormes de estrelas existentes na Via Láctea. Algo como “des milliards d’étoiles”. Você conclui, apressadamente, que o autor está dizendo que nossa galáxia possui milhares de estrelas. Certo? Indo humildemente ao dicionário você então descobre que aquela palavra se refere a mil vezes um milhão. Ou seja, ele dizia que a Via Láctea possui bilhões de estrelas.  

Compro livros pela Internet. Dias desses um vendedor norte-americano escreveu-me dizendo “I have been delinquent in sending you the book”. Ou seja, eu tenho sido um delinqüente por enviar-lhe o livro. Epa! Será que eu comprei obra proibida sem saber? Nada disso. A tradução correta da frase é: “fui negligente e ainda não lhe enviei o livro”.  

Lembro-me de que, há muitíssimos anos, um de meus amigos foi ver um filme japonês no falecido cine Tókio, ali na avenida da Liberdade. Lá pelas tantas a moça pega uma fruta de uma trepadeira e o rapaz pergunta a ela se ela pode mostrar-lhe aquilo que ela acaba de colher. O tradutor, certamente filho de japonês, colocou, porém, na boca do rapaz do filme uma frase lamentável. “Mostre-me o cabaço”. O diabo é que a tal fruta, que é do gênero feminino, se chama cabaça e é utilizada, depois de cortada ao meio, para feitura de panelas em alguns estados do nordeste. Passando para o gênero masculino, a palavra designava, não sei se ainda designa, simplesmente o hímen. E tome gargalhada dos poucos brasileiros que assistiam ao filme.

Logo que o Diego deixou o alvi-negro da Vila Belmiro para jogar em Portugal, um jornal de lá noticiou que um colega dele havia rasgado a camisola do jogador brasileiro. Não faltou quem aqui pensasse que o Diego, depois que saíra do Brasil, resolvera sair também do armário, se tornara bicha, palavra que em Portugal se refere à fila, pois homossexual lá é chamado de paneleiro, palavra que, no Brasil, designa quem fabrica ou vende panelas. Sabedor disso, Diego certamente ficaria puto, o que em Portugal quer dizer criança. Sendo certo, outrossim, que armário era o lugar onde antigamente se guardavam as armas e não os pratos e xícaras como se faz hoje.

O professor Jorge de Figueiredo Dias, que leciona Direito em Coimbra, informou-nos que muita gente em Portugal aprecia muito as novelas que se passam no Nordeste brasileiro. Quando passava por lá uma dessas nossas Gabrielas da vida, era comum as pessoas se despedirem dizendo um “inté”. Ou um impensável “tchau!” por força dos italianinhos que falavam com x no lugar do s numa outra novela das oito. Coisas de Ipanema. Segundo ele, certo jornal lisboeta publicava no dia seguinte um glossário, no qual esclarecia o sentido de algumas palavras mais raras utilizadas no capítulo anterior da novela. Entender a novela no dia seguinte deve ser um programão e tanto. Em Portugal.

É verdade, porém, que graças às novelas, muitos portugueses, o Figueiredo Dias entre elas, aprenderam o óbvio: quando um brasileiro diz “pois não” ele está querendo dizer "sim”; quando ele diz “pois sim” ele está querendo dizer “não”. Só mesmo os lusitanos para não entenderem uma coisa tão simples. Mania que eles têm de complicar as coisas, pá!

La vecchiaia è bruta dizem os italianos, o que leva muito brasileiro, que já ouviu a expressão, especialmente quando a linguagem da cidade de São Paulo estava mais para Itália do que para Nordeste brasileiro, como hoje, a concluir que os velhos somos pessoas sem modos, que não atentamos para a segurança dos que nos cercam, que damos trombada, que ofendemos moralmente quem discorda de nós. Quando eu era criança, havia na casa ao lado da nossa uma senhora italiana que vivia dizendo ao filho que ele era bruto. Intrigado, perguntei certo dia à minha mãe porque aquela vizinha dizia aquilo e dona Yolanda Zanzotti, natural de Pordenone, Veneza, Itália, explicou ao curioso filho que bruto quer dizer feio. Era um modo carinhoso de aquela italiana dizer ao filho que não concordava com aquilo que a criança havia feito.

O Alberto Silva Franco conta um caso mais complicado. Estando na Itália, ele mandou reformar uma calça. A costureira explicou o que iria fazer e ele, ingenuamente, perguntou, meio em português, meio em italiano, se aquilo ficaria bem feito. “Fica buono?” A costureira jogou a calça no rosto dele, pois aquele fica se referia a uma das partes mais delicadas da mulher. Ou seja, è un termine volgare e di uso comune impiegato in alcune regioni per indicare l'apparato genitale femminile esterno.”  Apparato genitale, capice?

Já narrei alhures este caso, mas não custa repetir, por sua pertinência. Antes disso, falo dessa última palavra. Não falo da palavra falo, que dá besteira; falo da palavra “pertinência”. Eu presidia uma reunião, tendo em volta da mesa vários amigos meus, nenhum deles da área jurídica. Um primeiro item foi discutido e aprovado. Quando discutíamos um segundo item da longa pauta, um dos presentes, por sinal paraguaio, fez uma observação relativa ao item já aprovado. “Sua observação é impertinente” disse eu ao Dario Cabrera, usando um termo comum no fórum. A mulher do homem se pôs a chorar. Quando conseguiu falar ela lamentou que eu, que eles supunham ser seu amigo, tivesse ofendido daquela maneira o marido dela. E na frente de tanta gente. Expliquei-lhe então que “impertinente” significa apenas algo que não pertine, que não diz com aquele assunto, não pertence ao tópico que estava sendo agora discutido. Não sei se aceitaram a explicação. Acho que não.

Agora conto a tal história que prometi acima: o brasileiro estava no Uruguai, onde foi recebido por um estancieiro. Estivesse no Texas e ele teria sido recebido no rancho do criador de gado, que é como se traduz a palavra ranch que aparece nos filmes de caubói e que corresponde à nossa palavra fazenda. Rancho, para nós, ou é uma casinha simples ou é a comida servida no quartel. No Texas tudo é muito maior.

Pois o brasileiro estava na tal fazenda uruguaia e, por insistência do proprietário, aceitou ficar para jantar. Foi servida sopa e ele, gentil, valeu-se do indefectível portunhol. Dirigiu-se à filha do dono da casa e sapecou: “Passe-me la concha, por favor”. Todos em volta da mesa mudam de cor e emudeceram. A visita, não entendendo nada, tenta esclarecer o ocorrido. “Veo que dejé tu hija embaraçada”. Foi expulso da fazenda imediatamente a tiros de garrucha, que era para aprender a não ser tão grosseiro com as damas. Ele simplesmente desconhecia que embarazo significa gravidez e concha é como ali eles se referem ao órgão sexual feminino. A tal fica a que se refere o Silva Franco. Em suma, apparato genitale femminile esterno.