14 setembro 2012

Entre o justo e o injusto


Você é desses que perde tempo vendo jogo de futebol? Pior: vendo mesas redondas na TV sobre o mesmo desagradável assunto? 

Os nossos comentaristas esportivos vivem dizendo que o resultado do jogo de futebol foi justo. Ou então que foi injusto. É o caso de perguntar-lhes: que vocês entendem por justiça? Vocês se consideram pessoas justas? Por quê? Na Bíblia, justo é o homem (sorry, senhoras, mas quem escreveu a Bíblia era machista) que faz a vontade de Deus, “que anda com Deus”, como se diz no Gênesis.

Lidando com essa palavra há mais de 50 anos, acho que tenho autoridade para dizer isto a eles: a Justiça, humanamente falando, não existe. Como? Vejamos.

Quando estávamos na Faculdade e os professores gostavam de esnobar-nos com citações latinas envolvendo Tício e Mévio, se dizia que a justiça consiste em “suum cuique tribuere”, isto é, “dar a cada um o que é seu”. Eis a contradição evidente: se já é meu, por que alguém haveria de dar-me? Não seria melhor dizer “assegurar a cada um aquilo que deve ser seu”? E como ficaria isso na língua do Calígula? Sei lá, meu latim foi-se com os meus cabelos pelo ralo do box do banheiro.

Na verdade, a palavra justiça apareceu quando os reis se elevaram, atrevidamente, à condição de representantes de Deus na Terra. Como não podiam usar a auréola própria dos santos, inventaram algo parecido: a coroa. Sendo deuses, ou quase isso, eles baixavam as leis, fiscalizavam o cumprimento das leis e puniam quem não cumpria as leis, o Montesquieu que não me venha censurar por dizer isso. Isto é, mandavam para o inferno, literalmente, quem não se curvasse diante de Deus, isto é, diante do rei. Até espalharam que não tinham sangue vermelho, como nós, os pobres mortais, pois tinham sangue azul. Da cor do céu, perceberam a sutileza?  Romântico, não? O problema é que o rei Henrique VIII gostava de trocar de esposa como quem muda de camisola em time de futebol português. Ocorre que o Papa não consentia nisso, o que levava o rei inglês a resolver a questão de um modo bastante prático: acusava a esposa de algum crime grave e passava a condenada pelo fio da espada. Hoje Ana Bolena, amanhã a Catarina Howard e vamos que vamos. Quem prestasse atenção nessas execuções, porém, descobriria que o sangue da executada não era azul coisa nenhuma. Mas vá dizer isso em público! “Sempre cabe mais um”, diria Sua Majestade, referindo-se menos ao sabonete e mais ao patíbulo. 

Repare que os juízes têm, no fundo, uma pose real. Nem poderia ser de outro jeito. O fórum se chama Palácio da Justiça, a roupa que eles usam mais parece uma batina e a padroeira deles é Têmis, também chamada Justitia. Não é de admirar que eles se considerem em condições de fazer aquilo que é atributo de Deus e dos reis: julgar. Lembre-se do Julgamento Final, quando o verdadeiro Juiz vai separar o joio do trigo, como se diz na Bíblia. Algum de nós acaso já viu esse tal de joio algum dia? Pois então. Isto quer dizer que, para fazer justiça, só tendo os atributos de Deus, coisa que nenhum de nós tem, por mais que tentemos e por mais complicada que seja a redação das sentenças dos juízes. Aliás, dizem que a diferença entre Deus e um desembargador é que Deus tem a certeza absoluta de que não é desembargador.

Não era a Clarice Linspector, aquela carrancuda escritora  russa/alagoana/carioca quem dizia que amar a Deus é amar tudo o que Ele fez? Se eu não amo o repugnante rato de esgoto, como posso dizer que amo Quem o criou? indagava ela. Cartas para a redação.

Na realidade, a atividade do juiz não tem nada a ver com a justiça divina, até porque se Deus for realmente justo, quem se salva? Ao juiz cabe apenas resolver conflitos entre pessoas, em torno dos chamados “bens da vida”. Aquilo que o Candinho diz que se chama lide, caracterizada por um conflito de interesses. Pense na relação entre o dono da casa e o seu inquilino, dizia eu a meus alunos, já lá vão lustros a perder de vista. Qual o bem da vida para o inquilino? “A casa, onde ele abrigará a si e a sua família” respondia a classe em uníssono. Isto é, todos eles com o mesmo sono. E para o dono?  “O dinheiro do aluguel” bocejavam eles. Logo, se o dono quer aumentar o valor do aluguel, ou se o inquilino não paga o aluguel, virá o juiz e tentará resolver aquele conflito. Era o que eu dizia em complemento. E aditava, todo otimista: tão melhor juiz será ele quanto mais depressa desatar aquele nó, mesmo porque, quem perder a causa jamais se conformará com isso. Ou vocês acham que quem perde a causa vai dizer que o juiz foi justo? E tanto ele não é Deus nem aquilo merece o nome de justiça que de sua decisão cabe recurso, coisa que lá em cima não vai haver, segundo me dizem uns padres que eu consulto vez ou outra, por via das dúvidas.

Voltando ao futebol: meu caro Juca, para se dizer que algo é justo ou é injusto, temos de ter em mente qual é o padrão da medida. Se alguém vem à minha lojinha de tecido comprar um metro de gabardine, eu, antes de mais nada, pego esse tal padrão, que se chama régua. Régua e regra provêm da mesma regula latina, que se pronunciava régula. Se eu coloco a tal régua, que tem um metro exato, sobre o tecido, eu saberei onde está o um metro justo que a minha freguesa quer comprar. Se em minha quitanda alguém quer um quilo de beterrabas, eu vou colocando as beterrabas naquele prato da direita até que os dois pratos fiquem equilibrados, pois no prato da esquerda está o padrão. “Um quilo justo, freguesa”, digo eu todo pimpão.

Ora, no futebol, qual é a regra? É, salvo erro meu, esta: ganha o jogo quem fizer mais gols. Como não há regra alguma a dizer que o vencedor será aquele que jogar melhor, perder ou ganhar não tem nada a ver com o padrão fixado para isso. Logo, como falar em justo ou injusto, Zé Trajano?

Injusto, meu caro Juca, talvez seja o resultado de um concurso de Miss. Aí, segundo a regra, vencerá quem for a mais bonita e não aquela feiosa que conseguiu conquistar a simpatia dos jurados utilizando outros de seus inúmeros predicados. "Feiosa" ao ver de quem? Ou, vindo mais ao chão, injusto é nomear-se juiz para algum Tribunal Superior algum político que sabidamente jamais poderia ser considerado alguém com “notável saber jurídico”, até porque notável quer dizer “aquilo que dá para notar”, o que geralmente será reconhecido pelas obras e obras publicadas pelo candidato. Esse é o padrão. Deu pra entender, ou quer que eu diga nomes?

E se algum desses comentaristas esportivos disser que esta crônica o deixou com a moral baixa, como eles dizem de jogadores que erram cobrança de pênalti, eu lhes direi que a moral não tem nada a ver com isso. Perder pênalti talvez abale o moral do jogador, palavra masculina que significa ânimo, brio, vergonha.

Crônica esta, aliás, com algumas alternâncias, e não cheia de alternativas, como aqueles mesmos comentaristas se referem a alguns jogos que transmitem e no qual ora o time de cá está mais perto de marcar, ora o time de lá é que está. Tudo dependendo da categoria dos jogadores e, em conseqüência, aí sim, das alternativas à disposição dos técnicos.

Entendeu, Felipão?

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