31 outubro 2011

Vamos ler Drummond



“Mundo, mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo,
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo, mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.”
(Poema de sete faces)

Vamos ler Drummond
que inda é tempo disso
tudo o que ele disse
diz e nos dirá.
Vamos ler Drummond
que a poesia aí espera
sossegada ao canto
rindo a nos mirar.

Demos trato à bola
procurando as rimas
mas quem rima ainda
c'o tempo a passar?

E passa ao galope
qual um figueredo
que não mete medo
como o outro não.

Tempos doutra aurora?
sim, mas quando, embora,
se não nesta hora,
quando vem então?

Vamos ler Drummond
que nos diz da vida
da gente sofrida
somos todos nós
eis que nos ataram
e as bocas calaram
e as testas marcaram
pra não mais pensar.

Vamos ler Drummond
que nos desafia
que nos diz bom dia,
carneirada inútil,
até quando o fútil
da vida a bastar?

Vamos ler Drummond
fazer penitência
subserviência
a mais não poder.
E poder não tinha
nem poder podia
quem, nesse dia-a-dia,
nos diz que fazer.

Quanto amém de boi
num lindo presépio
manjedoura imensa
toda uma nação.
E, aos bons, presente!
Quem cala consente
e o Menino ausente
sem adoração.

Vamos ler Drummond.
"Deve ter sessenta"
"Passou dos oitenta!"
"É tão velho assim?"

Ainda é menino
corre atrás de bola
não liga pra escola
nem pro diretor;
tem muita coragem
"é bom de linguagem"
"diz muita bobagem"
"avacalha o ensino
 e seu professor"

Vamos ler Drummond.
    Tantas peças prega
talvez se despeça
sem se despedir.

E ói nóis sòzinhos
meio que orfãozinhos
olhando o caminho
vendo ele partir.

Quem dirá das coisas
que ele diz agora?
Chuçará o rebanho
se ele for embora?
Mostrará que a vida
inda vale a pena?

Ó Drummond, tem pena,
não faz isso não.


19 outubro 2011

Fiat Lux



Não sei se isso já ocorreu com você, mas hoje aconteceu comigo. Acordei assustado e tudo o que consegui ver era a escuridão mais absoluta, que me envolvia como um manto lutuoso. Um negrume indescritível. Enlouqueci?
Sentei-me na cama aos tatos, apoiei os cotovelos nos joelhos e a cabeça sobre as mãos espalmadas, que me cobriam os olhos. Olhos pra que? Assim fiquei durante um tempo que não sei se muito ou pouco, qual uma estátua. Um pensador de Rodin imobilizado na Porta do Inferno. Quando dei por mim, estava dando um grito lancinante: “Quem sou eu?” Tudo o que obtive como resposta foi o silêncio. Um silêncio vindo das profundezas mais abissais do mundo. Um silêncio desses de doer nos ouvidos.
E essa escuridão que me envolve? Essa minha cegueira diante de tudo o que me cerca. Qual o sentido disso? Ó dúvida infame! E um novo grito: “De onde eu vim?” Mais silêncio, que se somava ao já espesso e insuportável silêncio anterior.
Abri os braços, sem coragem de levantar-me. Ó covardia humana diante do ignoto! Por um instante logrei imaginar, palidamente embora, como se sentiu o protohomem, o pai do pitecantropus diante do espaço infinito, quando tomou conhecimento de sua pequenez universal.
Veio-me à mente aquilo do Fernando:
“Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços e chama-me teu filho. Eu sou um rei que voluntariamente abandonei o meu trono de sonhos e cansaços.”

O peso da imensidão de sua intransponível ignorância a esmagá-lo e a esmagar-me, qual uma barata da Clarice ou um escaravelho kafkiano. Ou não seria um escaravelho aquele inseto monstruoso? O Modesto Carone me garantiu que a descrição original é ungeheueren Ungeziefer, o que dá na mesma. Fiquemos, pois, com escaravelho.
E ele, falo agora do meu mais longínquo antepassado, tinha o consolo das estrelas infinitas pairando sobre sua cabeça, refrigério que eu, positivamente, não merecia naquele transe digno de um Saúl de Tarso. Quem me dera haver hoje um Caravaggio para pintar também o meu drama naquela noite de Damasco.
Apalpei-me naquele escuro viscoso, receoso de que também eu acabaria por descobrir-me um repugnante inseto, caído na estrada, à espera de um milagre.
E um novo grito, digno de um convertido Paulose fez ouvir naquela escuridão: “Para onde irei?” Creio que Santo Agostinho tem algo assim no Confissões. Preciso pedir ao Luis que mo devolva, para eu conferir isso, pois sempre confundo o Bispo de Aspona com o Santo Tomaz. Aspona ou Aspen? Também preciso conferir isso no Google. Se que Aspone ele não era, com certeza.
Foi quando o impensável ocorreu. Vinda do alto, surgiu uma voz. Sim, uma voz clara, trombeteando sobre minha cabeça. Minhas preces foram ouvidas! “Respostas, quero respostas” berrei. E tudo indica que elas virão. Bendita seja a minha fé. “Luz, quero luz, mais luz”, diria eu em alemão, se me chamasse JohannWolfgangE ainda escreveria um Sämtliche Werke In Chronologischer Folge, em modestos 45 volumes.
Agora eu era todo ouvidos. “Sim, mestre”. E o mestre falou: “Quem é você? Você é um bostinha que ainda não sabe que misturar bebida destilada com bebida fermentada pode acabar levando o infeliz a um coma alcoólico.”
Eu ouvi aquilo atônito. Quem seria o conhecedor dos meus pecados? Um anjo? Um guru? Um sábio?
E a voz prosseguiu: “Onde você está? Está num quarto de hospital de uma cidadezinha do interior, pois eu não iria deixá-lo morrer de frio desmaiado na sarjeta, iria?”
De muito longe provinha uma tomada de consciência preguiçosa, que caminhava lentamente em minha direção, uma luz no fim de um túnel, que eu não desejaria que fosse o farol de uma locomotiva.
E a voz continuou, implacável: “Por que essa escuridão? Simplesmente porque o merda do prefeito não cuida adequadamente do serviço público da cidade e o gerador de luz e força pifou”.
Sim, então é isso: tudo tem alguma explicação. Insta ouvir quem sabe. Há que ter esperança na capacidade humana de tudo compreender. Mas ainda me faltava saber mais. Aquilo que eu havia ouvido me devolvia a calma, mas ainda não era tudo o que eu precisava saber.
E a voz então concluiu: “Qual a saída? Este quarto tem quatro paredes. Em uma delas há uma porta. Se você apalpar cada parede e não for muito burro vai acabar achando essa porta. Ela tem um trinco, que te permitirá abri-la, ir pra puta que te pariu e me deixar dormir, pois são 3 horas da madrugada, eu sou enfermeiro e pela manhã tenho de cuidar de outros babacas iguais a você”.

07 outubro 2011

O fim

“O homem provém da natureza do universo, e seu centro é o centro do universo. Essa experiência interior dos gnósticos, alquimistas e dos místicos está relacionada com a natureza do inconsciente, e poderíamos mesmo dizer que é a própria experiência do inconsciente.” (Carl Gustav Jung, O símbolo da transformação na missa)

Hoje completo 74 aos de idade e confesso-lhes que jamais pensei chegar tão longe em minha caminhada. É claro que diante de um Oscar Niemeyer eu sou uma criança, mas ele é um revolucionário, que se recusa a obedecer às leis da natureza. Em sua inteligência natural, os chimpanzés, as gazelas e os elefantes sabem que os doentes, os velhos e os aleijados devem ser deixados no caminho, pois estão destinados à alimentação de seus predadores naturais. Que diabo, os leões e as hienas também são filhos de Deus. Nós, humanos, é que temos essa mania de driblar a morte.
“Já encarei a morte seis vezes. E seis vezes a morte desviou seu olhar e me deixou passar. É claro que ela vai acabar me levando, como faz com todos. É só uma questão de quando e como. Aprendi muito com essas confrontações, especialmente sobre a beleza e a doce pungência da vida, sobre a preciosidade dos amigos e da família, e sobre o poder transformador do amor. Na verdade, quase morrer é uma experiência tão positiva e construtora do caráter que eu a recomendaria a todos, não fosse, é claro, o elemento irredutível e essencial do risco.”
Quem disse isso? Foi o astrofísico Carl Sagan, no livro Bilhões e bilhões, falando da doença que acabaria por levá-lo, aos 62 anos de idade. Já o David Servan-Schreiber, mesmo com câncer no cérebro, diagnosticado quando tinha 31 anos de idade, chegou aos 50.
Dizem que os chineses choram quando nasce alguém e se alegram quando alguém morre. Sempre me perguntei por que motivo os cristãos, que dizem acreditar na vida eterna, a qual, é lícito esperar, será muito melhor do que esta, não têm esse mesmo procedimento. Até onde vai a fé do cristão numa vida eterna? Como é possível que nos alegremos sabendo tudo o que passará na vida aquela criança inocente e indefesa que acabou de ser posta no mundo? Tirando a nossa alegria de termos ali um brinquedinho de carne e osso para nos entreter, tudo o que espera essa criança são as dificuldades naturais da vida. Sorte dela que ainda não lê jornal nem vê noticiário de televisão.
Encontrei, há muitíssimos anos, um amigo que eu não via há muito tempo. À pergunta “como vai você?” tentei brincar: “cada dia mais longe do berço e mais perto da sepultura.” Nunca mais nos falamos, pois ele ofendeu-se terrivelmente com o meu “pessimismo”. E o que eu disse era algo absolutamente verdadeiro, válido para mim, para ele e para todos nós. Em compensação, certa ocasião fui à missa de corpo presente de uma senhora, nossa vizinha, que tinha vários filhos, um deles sendo um frei franciscano, o frei Lauro, que rezou aquela missa. Muitos dos presentes ficaram chocados quando ele disse que estava tendo sua segunda alegria em menos de seis meses. A primeira alegria fora pela celebração, por ele, da missa em ação de graças pelas bodas de ouro de seus pais. A segunda era agora, quando se comemorava a passagem da alma de sua mãe para o local que, certamente, Deus lhe havia reservado. Quantas vezes você já ouviu isso ser dito em uma missa de corpo presente?
O medo da morte é algo absolutamente irracional. Não confundir isso com a quebra do dever de cuidar da própria saúde, que está em qualquer código de ética, coisa que até as plantas não desconhecem. Mais absurdo ainda é quando a pessoa que tem esse medo pânico da morte fuma, bebe e expõe constantemente sua vida a riscos de toda natureza. Qual a lógica?
Veja a coisa por este ângulo: pense num pedaço de corda. Essa corda começa à sua esquerda e termina à sua direita, alguns metros mais adiante. Como se chama o começo da corda? Chama-se começo. E como se chama o fim da corda? Chama-se fim. Tanto o início como o final da corda são corda. Há um nada antes do início da corda que não se confunde com o início da corda. E há um nada depois do fim da corda, pois o fim da corda não pertence ao nada, mas à corda.
Ora, a vida tem um início, pouco importando aqui as discussões científicas a respeito de quando ocorre esse momento. O que importa é que há um momento em que a vida tem início. E a vida tem um fim, pouco importando também qual o método que vamos utilizar para atestar que ela terminou. O início da vida se chama nascimento e o fim da vida se chama morte. Logo, tanto o nascimento como a morte pertencem à vida. São o primeiro e o último momento de uma coisa contínua chamada vida individual. Ao menos sob o ponto de vista físico. O que veio antes e o que virá depois, o que é a alma ou o sopro da vida chamado espírito são outros trezentos e cinqüenta mil réis.
Dou-lhe outro exemplo: você está dentro da sala, olhando a paisagem lá fora através da janela. Nisso aparece um avião, vindo da esquerda, cruza a frente do seu rosto e desaparece à sua direita. De onde ele veio? Você não sabe. Para onde ele foi? Você também não sabe. Tudo o que existe de visível é o caminho que ele fez desde o batente esquerdo da janela até o batente direito da janela. O mais é o desconhecido. Você sabe que ele levantou vôo em algum lugar, em algum horário, mas não tem conhecimento exato sobre isso. E sabe que ele voltará ao solo, mais cedo ou mais tarde. Onde? Quando? Como? Você também não sabe.
Será difícil imaginar a vida como esse vôo?
Tive ao longo de minha já longa vida inúmeros encontros com a morte. E sempre saí desses encontros mais fortalecido, mais preparado para seguir adiante. A primeira vez se deu quando eu ainda não tinha dez anos de idade. Havia ido ao sítio de meu padrinho e dois primos, pouco mais velhos do que eu, o Zé Carlos e o Zezinho, brincavam em um barco a remo, dentro de um açude, palavra que eu, que jamais saíra da capital, nem conhecia. A certa altura o barco virou e um dos remos veio boiando até a borda do açude, impulsionado pelas ondas que a agitação que eles faziam na água havia produzido. Abaixei-me para pegar o remo, senti tontura e caí n’água. Meus primos, entretidos com suas brincadeiras aquáticas, nem repararam nisso. Quando fui retirado da água, já estava inconsciente. Fui reanimado por um empregado do sítio. Que faltou para que eu morresse? Apenas que eu parasse de respirar e meu coração parasse de bater. Eu posso dizer que vi a morte.
Eu e o Jung temos muita coisa em comum, sendo uma delas essa perigosa atração pela água. Mais tarde, já adulto, encontrava-me no Rio de Janeiro, com suas praias tremendamente traiçoeiras, pois são do tipo “praia de tombo”, diferentemente do que ocorre nas praias paulistas. Você está caminhando em direção ao mar e, de repente, falta chão sob seus pés. Entrei num redemoinho desses, contra o qual era inútil tentar lutar. Moço ainda, nadei acompanhando o movimento da água, abrindo cada vez mais o círculo, até que consegui sair de sua influência e chegar à areia, com as pernas tão bambas que não conseguia ficar de pé. Nova sobrevida, a sugerir que eu ainda não havia feito tudo o que fui chamado a fazer por aqui.
Mais recentemente, já avô, novamente vou a uma tranqüila praia do Rio de Janeiro. Novo redemoinho e eu já sem a juventude e o fôlego que me salvariam daquele próximo afogamento. Eu não tinha condições físicas mas tinha cérebro. “Help! Help!” foi o que se ouviu por ali, grito a que os salva-vidas cariocas estão acostumadíssimos. Em fração de segundos, um deles se aproximou de mim e, mantendo uma distância de segurança, atirou-me uma bóia amarrada numa corda. Agarrei a bóia, fui arrastado até a praia, onde lhe agradeci encarecidamente o auxílio. Em inglês, é claro.
Para não me alongar muito, pois matéria é que não falta, falo de umas cólicas intestinais esquisitas que me vinham aborrecendo há alguns meses. Um exame de colonoscopia revela que há um pólipo bastante alterado ali. Em português claro: câncer. Cinco horas de cirurgia e trinta pontos no abdômen e mais dois dias de repouso, lá estou eu caminhando pelos corredores do Sírio-libanês, fazendo piadinhas com colegas de “Cooper”. Vali-me desta vez, confesso, de uma lição (mais uma!) que me fora dada pelo Ranulfo: “Diarréia se chama diarréia, estrabismo se chama estrabismo. Só no câncer os cretinos insistem em por apelido.” Valeu-me também a lição de minha mestra, filha e psicóloga Cláudia: “Geralmente, a sombra é maior do que o bicho!” É enfrentar seis meses de quimoterapia e seus efeitos colaterais quase insuportáveis e estarei novinho em folha, concluí.
Mais três anos e o câncer agora é no fígado. Como o órgão fora pouco castigado pela quase nenhuma bebida alcoólica tomada ao longo da vida, extraído apenas um terço dele, em exatas dez horas de cirurgia, já está fora o inoportuno tumor. Agora era aguardar que, tal como o rabo da lagartixa, o órgão se refaça. “Estatisticamente, o risco de nova recidiva é de 50%” me diz a Dra. Nise Yamaguchi, ao ser indagada por mim. Então aguardemos.
Quando o Gianecchini foi diagnosticado com aquilo que nossos pais chamavam de “tumor maligno” (o inverso disso não é “tumor benigno”, como se diz por aí, pois, sendo tumor, não pode ser benigno, mas tão somente um “tumor neutro”), ele, como o mais novo integrante dos CCs (Cancerosos Conhecidos, em contraposição aos Alcoólicos Anônimos), preferiu a Medicina clássica. Eu também, o que não significa que eu só acredite nos terapeutas do aquém. Se nem o Jung, com a cultura vastíssima que acumulou, desprezava o deus absconditus, o que muito cristão critica sem conhecer, quem sou eu para questioná-lo?
Que me ficou dessas experiências? A certeza de que nossa vida é aquilo que nós fazemos dela.
Se você lê meus escritos há muito tempo, dirá que esta crônica já havia sido publicada há alguns anos. Engano seu, pois, como dizia o Heráclito, 500 anos antes de Cristo, ninguém passa duas vezes pelo mesmo rio. Tanto que só se faz 74 anos uma vez na vida.
Tchin tchin pra vocês!