24 novembro 2011

A vida



Nossa vida é sempre a mesma,
sai um dia, entra outro dia.
A sorte parece lesma,
quem então nela confia?
Se ela bate em tua porta,
prometendo-te alegria,
você diz: Inês é morta, 
minha casa está vazia.

15 novembro 2011

Um conto surreal



Domingo, Salvador sai da tela, depois de tê-la pintado. Traz consigo sua inseparável musa e esposa. Sua mulher não está calçada e ambos caminham pela calçada. Ele dirige-se à praça, onde entra no banco para sacar algum dinheiro. Ele gosta de tênis, mas hoje está usando sapatos. Como não havia levado raquete, não conseguiu sacar nada. Sai do banco e senta-se no banco da praça, onde há uma cesta com seis mangas. Ele conta as mangas e pega a sexta, que corta em quatro pedaços. O quarto tem uma casa e um botão. Ele pega o botão e espera que ele abra. O botão torna-se uma rosa, que não é cor de rosa. Ele enfia a rosa branca em um dos buracos de uma ferradura, onde normalmente se colocaria um cravo. Ele vai até o pé de rosa e pendura nele a ferradura.
Em seguida, Salvador sai dali a caminho de casa, acompanhado de sua esposa, que está em trajes de gala.


Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech morreu na cidade de Figueres, Catalunha, em 23 de janeiro de 1989, de pneumonia e parada cardíaca. Foi, segundo ele mesmo dizia, um dos mais importantes artistas plásticos (pintor e escultor) surrealistas do mundo. Em 1934, casou-se com uma imigrante russa chamada Elena Ivanovna Diakonova, conhecida como Gala. E nasceu em 11 de maio de 1904, na mesma cidade onde morreu. 

31 outubro 2011

Vamos ler Drummond



“Mundo, mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo,
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo, mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.”
(Poema de sete faces)

Vamos ler Drummond
que inda é tempo disso
tudo o que ele disse
diz e nos dirá.
Vamos ler Drummond
que a poesia aí espera
sossegada ao canto
rindo a nos mirar.

Demos trato à bola
procurando as rimas
mas quem rima ainda
c'o tempo a passar?

E passa ao galope
qual um figueredo
que não mete medo
como o outro não.

Tempos doutra aurora?
sim, mas quando, embora,
se não nesta hora,
quando vem então?

Vamos ler Drummond
que nos diz da vida
da gente sofrida
somos todos nós
eis que nos ataram
e as bocas calaram
e as testas marcaram
pra não mais pensar.

Vamos ler Drummond
que nos desafia
que nos diz bom dia,
carneirada inútil,
até quando o fútil
da vida a bastar?

Vamos ler Drummond
fazer penitência
subserviência
a mais não poder.
E poder não tinha
nem poder podia
quem, nesse dia-a-dia,
nos diz que fazer.

Quanto amém de boi
num lindo presépio
manjedoura imensa
toda uma nação.
E, aos bons, presente!
Quem cala consente
e o Menino ausente
sem adoração.

Vamos ler Drummond.
"Deve ter sessenta"
"Passou dos oitenta!"
"É tão velho assim?"

Ainda é menino
corre atrás de bola
não liga pra escola
nem pro diretor;
tem muita coragem
"é bom de linguagem"
"diz muita bobagem"
"avacalha o ensino
 e seu professor"

Vamos ler Drummond.
    Tantas peças prega
talvez se despeça
sem se despedir.

E ói nóis sòzinhos
meio que orfãozinhos
olhando o caminho
vendo ele partir.

Quem dirá das coisas
que ele diz agora?
Chuçará o rebanho
se ele for embora?
Mostrará que a vida
inda vale a pena?

Ó Drummond, tem pena,
não faz isso não.


19 outubro 2011

Fiat Lux



Não sei se isso já ocorreu com você, mas hoje aconteceu comigo. Acordei assustado e tudo o que consegui ver era a escuridão mais absoluta, que me envolvia como um manto lutuoso. Um negrume indescritível. Enlouqueci?
Sentei-me na cama aos tatos, apoiei os cotovelos nos joelhos e a cabeça sobre as mãos espalmadas, que me cobriam os olhos. Olhos pra que? Assim fiquei durante um tempo que não sei se muito ou pouco, qual uma estátua. Um pensador de Rodin imobilizado na Porta do Inferno. Quando dei por mim, estava dando um grito lancinante: “Quem sou eu?” Tudo o que obtive como resposta foi o silêncio. Um silêncio vindo das profundezas mais abissais do mundo. Um silêncio desses de doer nos ouvidos.
E essa escuridão que me envolve? Essa minha cegueira diante de tudo o que me cerca. Qual o sentido disso? Ó dúvida infame! E um novo grito: “De onde eu vim?” Mais silêncio, que se somava ao já espesso e insuportável silêncio anterior.
Abri os braços, sem coragem de levantar-me. Ó covardia humana diante do ignoto! Por um instante logrei imaginar, palidamente embora, como se sentiu o protohomem, o pai do pitecantropus diante do espaço infinito, quando tomou conhecimento de sua pequenez universal.
Veio-me à mente aquilo do Fernando:
“Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços e chama-me teu filho. Eu sou um rei que voluntariamente abandonei o meu trono de sonhos e cansaços.”

O peso da imensidão de sua intransponível ignorância a esmagá-lo e a esmagar-me, qual uma barata da Clarice ou um escaravelho kafkiano. Ou não seria um escaravelho aquele inseto monstruoso? O Modesto Carone me garantiu que a descrição original é ungeheueren Ungeziefer, o que dá na mesma. Fiquemos, pois, com escaravelho.
E ele, falo agora do meu mais longínquo antepassado, tinha o consolo das estrelas infinitas pairando sobre sua cabeça, refrigério que eu, positivamente, não merecia naquele transe digno de um Saúl de Tarso. Quem me dera haver hoje um Caravaggio para pintar também o meu drama naquela noite de Damasco.
Apalpei-me naquele escuro viscoso, receoso de que também eu acabaria por descobrir-me um repugnante inseto, caído na estrada, à espera de um milagre.
E um novo grito, digno de um convertido Paulose fez ouvir naquela escuridão: “Para onde irei?” Creio que Santo Agostinho tem algo assim no Confissões. Preciso pedir ao Luis que mo devolva, para eu conferir isso, pois sempre confundo o Bispo de Aspona com o Santo Tomaz. Aspona ou Aspen? Também preciso conferir isso no Google. Se que Aspone ele não era, com certeza.
Foi quando o impensável ocorreu. Vinda do alto, surgiu uma voz. Sim, uma voz clara, trombeteando sobre minha cabeça. Minhas preces foram ouvidas! “Respostas, quero respostas” berrei. E tudo indica que elas virão. Bendita seja a minha fé. “Luz, quero luz, mais luz”, diria eu em alemão, se me chamasse JohannWolfgangE ainda escreveria um Sämtliche Werke In Chronologischer Folge, em modestos 45 volumes.
Agora eu era todo ouvidos. “Sim, mestre”. E o mestre falou: “Quem é você? Você é um bostinha que ainda não sabe que misturar bebida destilada com bebida fermentada pode acabar levando o infeliz a um coma alcoólico.”
Eu ouvi aquilo atônito. Quem seria o conhecedor dos meus pecados? Um anjo? Um guru? Um sábio?
E a voz prosseguiu: “Onde você está? Está num quarto de hospital de uma cidadezinha do interior, pois eu não iria deixá-lo morrer de frio desmaiado na sarjeta, iria?”
De muito longe provinha uma tomada de consciência preguiçosa, que caminhava lentamente em minha direção, uma luz no fim de um túnel, que eu não desejaria que fosse o farol de uma locomotiva.
E a voz continuou, implacável: “Por que essa escuridão? Simplesmente porque o merda do prefeito não cuida adequadamente do serviço público da cidade e o gerador de luz e força pifou”.
Sim, então é isso: tudo tem alguma explicação. Insta ouvir quem sabe. Há que ter esperança na capacidade humana de tudo compreender. Mas ainda me faltava saber mais. Aquilo que eu havia ouvido me devolvia a calma, mas ainda não era tudo o que eu precisava saber.
E a voz então concluiu: “Qual a saída? Este quarto tem quatro paredes. Em uma delas há uma porta. Se você apalpar cada parede e não for muito burro vai acabar achando essa porta. Ela tem um trinco, que te permitirá abri-la, ir pra puta que te pariu e me deixar dormir, pois são 3 horas da madrugada, eu sou enfermeiro e pela manhã tenho de cuidar de outros babacas iguais a você”.

07 outubro 2011

O fim

“O homem provém da natureza do universo, e seu centro é o centro do universo. Essa experiência interior dos gnósticos, alquimistas e dos místicos está relacionada com a natureza do inconsciente, e poderíamos mesmo dizer que é a própria experiência do inconsciente.” (Carl Gustav Jung, O símbolo da transformação na missa)

Hoje completo 74 aos de idade e confesso-lhes que jamais pensei chegar tão longe em minha caminhada. É claro que diante de um Oscar Niemeyer eu sou uma criança, mas ele é um revolucionário, que se recusa a obedecer às leis da natureza. Em sua inteligência natural, os chimpanzés, as gazelas e os elefantes sabem que os doentes, os velhos e os aleijados devem ser deixados no caminho, pois estão destinados à alimentação de seus predadores naturais. Que diabo, os leões e as hienas também são filhos de Deus. Nós, humanos, é que temos essa mania de driblar a morte.
“Já encarei a morte seis vezes. E seis vezes a morte desviou seu olhar e me deixou passar. É claro que ela vai acabar me levando, como faz com todos. É só uma questão de quando e como. Aprendi muito com essas confrontações, especialmente sobre a beleza e a doce pungência da vida, sobre a preciosidade dos amigos e da família, e sobre o poder transformador do amor. Na verdade, quase morrer é uma experiência tão positiva e construtora do caráter que eu a recomendaria a todos, não fosse, é claro, o elemento irredutível e essencial do risco.”
Quem disse isso? Foi o astrofísico Carl Sagan, no livro Bilhões e bilhões, falando da doença que acabaria por levá-lo, aos 62 anos de idade. Já o David Servan-Schreiber, mesmo com câncer no cérebro, diagnosticado quando tinha 31 anos de idade, chegou aos 50.
Dizem que os chineses choram quando nasce alguém e se alegram quando alguém morre. Sempre me perguntei por que motivo os cristãos, que dizem acreditar na vida eterna, a qual, é lícito esperar, será muito melhor do que esta, não têm esse mesmo procedimento. Até onde vai a fé do cristão numa vida eterna? Como é possível que nos alegremos sabendo tudo o que passará na vida aquela criança inocente e indefesa que acabou de ser posta no mundo? Tirando a nossa alegria de termos ali um brinquedinho de carne e osso para nos entreter, tudo o que espera essa criança são as dificuldades naturais da vida. Sorte dela que ainda não lê jornal nem vê noticiário de televisão.
Encontrei, há muitíssimos anos, um amigo que eu não via há muito tempo. À pergunta “como vai você?” tentei brincar: “cada dia mais longe do berço e mais perto da sepultura.” Nunca mais nos falamos, pois ele ofendeu-se terrivelmente com o meu “pessimismo”. E o que eu disse era algo absolutamente verdadeiro, válido para mim, para ele e para todos nós. Em compensação, certa ocasião fui à missa de corpo presente de uma senhora, nossa vizinha, que tinha vários filhos, um deles sendo um frei franciscano, o frei Lauro, que rezou aquela missa. Muitos dos presentes ficaram chocados quando ele disse que estava tendo sua segunda alegria em menos de seis meses. A primeira alegria fora pela celebração, por ele, da missa em ação de graças pelas bodas de ouro de seus pais. A segunda era agora, quando se comemorava a passagem da alma de sua mãe para o local que, certamente, Deus lhe havia reservado. Quantas vezes você já ouviu isso ser dito em uma missa de corpo presente?
O medo da morte é algo absolutamente irracional. Não confundir isso com a quebra do dever de cuidar da própria saúde, que está em qualquer código de ética, coisa que até as plantas não desconhecem. Mais absurdo ainda é quando a pessoa que tem esse medo pânico da morte fuma, bebe e expõe constantemente sua vida a riscos de toda natureza. Qual a lógica?
Veja a coisa por este ângulo: pense num pedaço de corda. Essa corda começa à sua esquerda e termina à sua direita, alguns metros mais adiante. Como se chama o começo da corda? Chama-se começo. E como se chama o fim da corda? Chama-se fim. Tanto o início como o final da corda são corda. Há um nada antes do início da corda que não se confunde com o início da corda. E há um nada depois do fim da corda, pois o fim da corda não pertence ao nada, mas à corda.
Ora, a vida tem um início, pouco importando aqui as discussões científicas a respeito de quando ocorre esse momento. O que importa é que há um momento em que a vida tem início. E a vida tem um fim, pouco importando também qual o método que vamos utilizar para atestar que ela terminou. O início da vida se chama nascimento e o fim da vida se chama morte. Logo, tanto o nascimento como a morte pertencem à vida. São o primeiro e o último momento de uma coisa contínua chamada vida individual. Ao menos sob o ponto de vista físico. O que veio antes e o que virá depois, o que é a alma ou o sopro da vida chamado espírito são outros trezentos e cinqüenta mil réis.
Dou-lhe outro exemplo: você está dentro da sala, olhando a paisagem lá fora através da janela. Nisso aparece um avião, vindo da esquerda, cruza a frente do seu rosto e desaparece à sua direita. De onde ele veio? Você não sabe. Para onde ele foi? Você também não sabe. Tudo o que existe de visível é o caminho que ele fez desde o batente esquerdo da janela até o batente direito da janela. O mais é o desconhecido. Você sabe que ele levantou vôo em algum lugar, em algum horário, mas não tem conhecimento exato sobre isso. E sabe que ele voltará ao solo, mais cedo ou mais tarde. Onde? Quando? Como? Você também não sabe.
Será difícil imaginar a vida como esse vôo?
Tive ao longo de minha já longa vida inúmeros encontros com a morte. E sempre saí desses encontros mais fortalecido, mais preparado para seguir adiante. A primeira vez se deu quando eu ainda não tinha dez anos de idade. Havia ido ao sítio de meu padrinho e dois primos, pouco mais velhos do que eu, o Zé Carlos e o Zezinho, brincavam em um barco a remo, dentro de um açude, palavra que eu, que jamais saíra da capital, nem conhecia. A certa altura o barco virou e um dos remos veio boiando até a borda do açude, impulsionado pelas ondas que a agitação que eles faziam na água havia produzido. Abaixei-me para pegar o remo, senti tontura e caí n’água. Meus primos, entretidos com suas brincadeiras aquáticas, nem repararam nisso. Quando fui retirado da água, já estava inconsciente. Fui reanimado por um empregado do sítio. Que faltou para que eu morresse? Apenas que eu parasse de respirar e meu coração parasse de bater. Eu posso dizer que vi a morte.
Eu e o Jung temos muita coisa em comum, sendo uma delas essa perigosa atração pela água. Mais tarde, já adulto, encontrava-me no Rio de Janeiro, com suas praias tremendamente traiçoeiras, pois são do tipo “praia de tombo”, diferentemente do que ocorre nas praias paulistas. Você está caminhando em direção ao mar e, de repente, falta chão sob seus pés. Entrei num redemoinho desses, contra o qual era inútil tentar lutar. Moço ainda, nadei acompanhando o movimento da água, abrindo cada vez mais o círculo, até que consegui sair de sua influência e chegar à areia, com as pernas tão bambas que não conseguia ficar de pé. Nova sobrevida, a sugerir que eu ainda não havia feito tudo o que fui chamado a fazer por aqui.
Mais recentemente, já avô, novamente vou a uma tranqüila praia do Rio de Janeiro. Novo redemoinho e eu já sem a juventude e o fôlego que me salvariam daquele próximo afogamento. Eu não tinha condições físicas mas tinha cérebro. “Help! Help!” foi o que se ouviu por ali, grito a que os salva-vidas cariocas estão acostumadíssimos. Em fração de segundos, um deles se aproximou de mim e, mantendo uma distância de segurança, atirou-me uma bóia amarrada numa corda. Agarrei a bóia, fui arrastado até a praia, onde lhe agradeci encarecidamente o auxílio. Em inglês, é claro.
Para não me alongar muito, pois matéria é que não falta, falo de umas cólicas intestinais esquisitas que me vinham aborrecendo há alguns meses. Um exame de colonoscopia revela que há um pólipo bastante alterado ali. Em português claro: câncer. Cinco horas de cirurgia e trinta pontos no abdômen e mais dois dias de repouso, lá estou eu caminhando pelos corredores do Sírio-libanês, fazendo piadinhas com colegas de “Cooper”. Vali-me desta vez, confesso, de uma lição (mais uma!) que me fora dada pelo Ranulfo: “Diarréia se chama diarréia, estrabismo se chama estrabismo. Só no câncer os cretinos insistem em por apelido.” Valeu-me também a lição de minha mestra, filha e psicóloga Cláudia: “Geralmente, a sombra é maior do que o bicho!” É enfrentar seis meses de quimoterapia e seus efeitos colaterais quase insuportáveis e estarei novinho em folha, concluí.
Mais três anos e o câncer agora é no fígado. Como o órgão fora pouco castigado pela quase nenhuma bebida alcoólica tomada ao longo da vida, extraído apenas um terço dele, em exatas dez horas de cirurgia, já está fora o inoportuno tumor. Agora era aguardar que, tal como o rabo da lagartixa, o órgão se refaça. “Estatisticamente, o risco de nova recidiva é de 50%” me diz a Dra. Nise Yamaguchi, ao ser indagada por mim. Então aguardemos.
Quando o Gianecchini foi diagnosticado com aquilo que nossos pais chamavam de “tumor maligno” (o inverso disso não é “tumor benigno”, como se diz por aí, pois, sendo tumor, não pode ser benigno, mas tão somente um “tumor neutro”), ele, como o mais novo integrante dos CCs (Cancerosos Conhecidos, em contraposição aos Alcoólicos Anônimos), preferiu a Medicina clássica. Eu também, o que não significa que eu só acredite nos terapeutas do aquém. Se nem o Jung, com a cultura vastíssima que acumulou, desprezava o deus absconditus, o que muito cristão critica sem conhecer, quem sou eu para questioná-lo?
Que me ficou dessas experiências? A certeza de que nossa vida é aquilo que nós fazemos dela.
Se você lê meus escritos há muito tempo, dirá que esta crônica já havia sido publicada há alguns anos. Engano seu, pois, como dizia o Heráclito, 500 anos antes de Cristo, ninguém passa duas vezes pelo mesmo rio. Tanto que só se faz 74 anos uma vez na vida.
Tchin tchin pra vocês!

29 setembro 2011

Exxtrapolamentos

“Eu fui no Itororó,
beber água e não achei.
Achei bela morena,
vim sozinho ela era um gay”

(Do Livro das Sínteses, ainda inédito)

A Ordem dos Advogados do Brasil, secção de São Paulo, tinha, na ocasião, além da Comissão de Direitos Humanos, de que eu fazia parte, ao lado do Ranulfo, subcomissões que cuidavam dos direitos das minorias, a saber a Subcomissão dos Direitos das Crianças, a Subcomissão dos Direitos da Mulher e a Subcomissão dos Direitos dos Negros, até porque ali não havia essa besteira de “afro-descendente”, expressão erradíssima, pois faz supor que na África não nascem pessoas brancas. Se o escritor moçambicano Mia Couto se casar com uma norte-americana loira, seu filho, alvíssimo, será afro-descendente. Eis uma demonstração da estupidez daquela preconceituosa denominação. Tão cretina como o segregacionista sistema de cotas universitárias, que, pretendendo solucionar um problema, cria outro, muito mais grave, pois, em nome da integração, oficializa a segregação, que aqui jamais existiu. Vamos estudar História, moçada.

Voltando à OAB, numa das sessões da comissão de que eu fazia parte, indaguei se os homossexuais já constituíam maioria, pois eu tinha em mãos dois casos envolvendo queixa de discriminação apresentada por gays. Se há subcomissão relativa aos membros do sexo feminino e há subcomissão relativa aos negros, por que não havia uma Subcomissão dos Direitos dos Homossexuais? Um dos membros da comissão, que era uma advogada nascida em Pernambuco, negra como a asa da graúna, que não tinha papas nem bispos na língua, indignou-se. Inflamada, como era de seu perfil, levantou dramaticamente os dois braços e lançou seu protesto, carregando no sotaque: “Meu caro Suanexx, você agora exxtrapolou!”

21 setembro 2011

Máscaras & papéis


“A luz negra de um destino cruel
ilumina o teatro sem cor
onde estou representando o papel
de palhaço do amor”.
(Nelson Cavaquinho e Amâncio Cardoso)

            Recebo texto enviado por uma psicoterapeuta, jovem e inteligente, que escreve como gente grande e discorre sobre um caso que tem no consultório. É, sem tirar nem por, o enredo do filme Kramer vs. Kramer. Conhece? Meryl Streep é a mãe que abandona o marido, papel do Dustin Hoffman, com quem deixa o filho. Tempos depois, a Meryl volta à cidadezinha onde ficaram o marido e o filho, e reivindica a guarda da criança. “Os fatos que me levaram a sair de casa não existem mais e, portanto, eu tenho o direito de ter o filho de volta” peticiona ela ao juiz. Você deferiria o pedido da Meryl?

           Em primeiro lugar, não resisto ao lugar comum: “a vida imita a arte, minha cara”. A jovem psicóloga ri, como quem diz, “pra mim você vem dizer isso?” Em segundo lugar, a nossa Meryl brasileira declara que é má esposa. Como mãe, não é melhor. Ela emprega o verbo no tempo presente e justifica que, por ser má, o filho tem motivos para não querer procurá-la, pois, embora morem na mesma cidadezinha e mesma rua, distante uma casa da outra não mais do que quatro quarteirões, o filho nunca veio visitá-la. E você tem ido visitá-lo? “Claro que não. Ele não gosta de mim. Mas eu tenho muita saudade dele.” Esclarece que o marido jamais se opôs a que ela entrasse na casa, mas, ao contrário, tem insistido com ela para ir visitar o filho, tentar reatar o laço primitivo. A nossa Meryl insiste no qualificativo “eu sou má” para justificar a rejeição que diz sofrer. Mas quer que a psicóloga lhe faça um favor: que procure a juíza que decidirá seu pedido, mostrando a ela quem de fato a consulente é. “Se eu disser a ela que você é má como mãe e má como esposa, você acha que mesmo assim ela lhe dará razão?” indaga a psicóloga. “Acho que sim, pois ela é mulher e mulher entende dessas coisas. Foi por isso que procurei outra mulher para me orientar” responde a paciente.


           Esses são os dados que trago à nossa reflexão. Note-se, em primeiro lugar, que a queixosa não diz que agiu de modo inadequado como esposa e como mãe. Ela se qualifica, em termos genéricos, introjetando, como dizem os psicólogos, um conceito que, evidentemente, lhe foi passado por alguém com autoridade para julgá-la: “eu sou má”. Ao mesmo tempo, ela não vê isso como impedimento suficiente para ter a seu lado o filho, que ela não consegue ir visitar, mesmo residindo ambos na mesma rua. O que importa, segundo esse raciocínio, não é o fato de ela ser má, mas o fato de ser mãe. Que é ser mãe?
Qualquer um de nós, homem ou mulher, tem aptidão para jogar futebol. Ser um Pelé ou uma Marta são outros três a zero. Você se disporia a botar uniforme, calçar chuteira e ficar correndo daqui para lá por noventa minutos? Matar no peito um chute, dominar a bola e driblar um adversário ou uma adversária? Levar um carrinho e levantar-se em seguida, depois do spray mágico trazido pelo atendente médico?


          Todas as mulheres têm aptidão para ser mãe. É o que se diz por aí, acenando com o que ocorre no reino animal. Claro que o fato de uma leoa ou uma ursa branca abandonar o filho doente no meio do mato ou naquela imensidão gelada, quando ele mais precisa de cuidados, não é levado em conta. Como quer que seja, a fêmea é programada para isso: procriar. Com a mulher ocorre algo um pouco mais complexo, principalmente nos dias que correm. Além de desempenhar o papel de companheira, amante, confidente e secretária, como são todas as esposas em relação a seu marido, ela deve cuidar da prole, da cozinha, da arrumação da casa e ainda responder pelo expediente no escritório, na loja ou na fábrica onde trabalha. As focas, as leoas e as pingüins fêmeas foram dispensadas desses encargos.


            Outrora, o patrimônio, isto é, a aquisição de recursos para o sustento da família, era encargo do homem (patris munus) enquanto à mulher tocava assumir os encargos domésticos decorrentes do matrimônio (matris munus). Quando a mulher se deixou cair no conto da emancipação feminina e, com isso, pôs-se a imitar o homem, ela acabou ficando com os encargos da maternidade e também com parte ou com a totalidade dos encargos da paternidade. Eis a ironia dos tempos modernos.


           Todos nós conhecemos médicas, balconistas, advogadas e artistas de TV que não deveriam estar a interpretar o papel que escolheram no chamado teatro da vida. Há nas novelas belas moças cariocas interpretando papel de paulistas sem conseguir escapar dos seus RRs e XXs que utilizam quando estão longe das câmeras. Ou bem mudem de atividade ou não aceitem esse tipo de papel. O que não se pode aceitar é que, em lugar de colocarem no rosto a máscara do personagem (per sonare, como se fazia no teatro grego, quando a voz soava através de uma máscara), queiram colocar sua própria máscara no rosto do personagem, como fazem os canastrões, no palco e na vida. Como dizia o Paulo Autran, precisei ensaiar a vida toda para interpretar com naturalidade.


       Carl Rogers, autor de On Becoming a Person: A Therapist's View of Psychotherapy e que lecionou durante muitos anos em Faculdade de Psicoterapia, nos EUA, indagava a si mesmo quais seriam os requisitos para que alguém pudesse clinicar nessa área. Sua conclusão: a faculdade pode dar ao aluno noções teóricas e alguma experiência adquirida nos chamados laboratórios, mas não tem como dar sensibilidade a quem não traz esse pré-requisito. E, a seu ver, não é possível termos um bom psicoterapeuta sem esse requisito básico. Nem uma boa juíza, nem uma boa advogada, nem uma boa balconista, digo eu.


       Quais seriam, então, os requisitos para que alguém interpretasse o papel de mãe, meu caro Carl? Todos nós já ouvimos mãe de primeiro filho responder, ao ser indagada quando virá o segundo: “E eu sou louca? Passar por tudo aquilo outra vez? Jamais!” Algumas não dizem bem isso mas é isso que pensam. É fácil imaginar o que será a vida sexual daquele casal, pois, maiores que sejam os cuidados, o risco de nova gravidez sempre estará rondando. E tome frigidez!


     É claro que o problema não está na má personalidade daquela mulher. Simplesmente ela não consegue ser a mãe que gostaria de ser, da mesma forma como outras mulheres não conseguiriam acertar um chute numa bola ou sensibilizar-se diante do drama de um cliente que a procure, como médica, advogada, psicóloga ou que tais. Ao tomar consciência disso, ela certamente não insistirá em ser médica, ou advogada, ou balconista.  Ou mãe, por que não?


      Poderá, no entanto, vir a ser uma excelente médica quem não consegue ser uma razoável mãe. Por que não? Se ela tiver tido a graça de casar-se num templo católico, certamente ela terá ouvido que a mulher nada mais é do que a parte mínima de um homem, uma mísera costela, que, por maior que fosse, foi dele retirada durante o sono sem que ele percebesse isso quando acordou. Mais insignificante do que isso só se Eva fosse elaborada com material extraído do dedão do pé esquerdo do Adão. E não tenha dúvida que isso não foi tudo o que ela ouviu naquela ocasião festiva. O sacerdote certamente comparou a esposa à Igreja, donde o dever dela de submeter-se, sem tugir, nem mugir, nem fugir, dia e noite a seu Senhor. Falo da esposa.


       Por motivos profissionais, ainda não posso manifestar-me oficialmente sobre o mérito da questão trazida pela consulente, nem adiantar sua opinião sobre o belo caso que tem nas mãos. Lembro a ela que certa ocasião ouvi de  uma senhora um comentário feito aos presentes, diante de duas meninas, ambas irmãs. “Esta é a menina mais bonita que já vi na vida” disse ela. Depois, notando a presença da irmã, completou: “E esta outra menina é muito boazinha.”


       Com essa minha mania de tirar conclusões, tive ímpetos de mostrar àquela senhora o que ela havia dito. A primeira menina não precisa preocupar-se em ser “boa”, o que quer que isso signifique, para ser aceita pela comunidade a que pertence. No limite, pode até ser “má”, que sua beleza compensará isso. Já a irmã, ai dela se, além de feia (ou, “não tão bonita”), ainda tiver o atrevimento de ser “não boa” (para não dizer “ser má”). Vai purgar no inferno em vida!


         Aliás, não é verdade que ser mãe é padecer? Para dourar a pílula, diz-se que isso se dará “no Paraíso”. Antes ou depois da morte? É, acima de tudo, desfibrar fibra por fibra o coração. Prazer mesmo, nenhum, até porque, como gozava o Vinicius, “filhos? melhor não tê-los!”
Quem se habilita a desempenhar o papel??
?  

14 setembro 2011

Puns


Ao amigo Francimar Torres Malta, vulgo Cearucho

Minha inglesinha, você fica com esse ai, ai, em lugar de abrir o olho. Caia em si e vá ao mar. Aliás, é melhor rir aqui do que lá.
Que achou desse intróito?
Diz o Houaiss (repare a intimidade) que trocadilho é um jogo de palavras que apresentam sons semelhantes ou iguais, de que resultam equívocos por vezes engraçados. Surpreendentemente para mim, ele indica um sinônimo: calembur. O mesmo diz o Aurélio, que nos apoda, meu caro Cearucho, de calemburistas. Positivamente nós não merecíamos isso.
O curioso é que a palavra francesa calembour (jeu de mots fondé sur la différence de sens entre des mots qui se prononcent de la même façon) corresponde ao nosso qüiproquó, que, antes de ser nosso, era dos romanos, para indicar um equívoco: usar a forma qüi onde o certo seria usar a forma quo.
Pois a palavra inglesa quibble teria vindo do latim quibus. Que é um quibble? A play on words, diz o Webster's. Ou seja, un jeu de mots. Pode?        
Ocorre que, da mesma forma como no Brasil o tal calembur só existe nos dicionários, o mesmo acontece nos países de língua inglesa no que diz com o tal quibble. Trocadilho, lá, ou seja, a play on words, tem o pitoresco nome de pun. O nome em si já é um jeu de mots
Mesmo quem não é muito afiado em inglês sabe que o risco de usarmos uma palavra por outra é muito grande. Certa ocasião, empreendi uma conversação com o motorista de taxi nos EUA. Não porque eu falasse tão bem que seria facilmente compreendido, mas porque, sendo ele também estrangeiro, tinha um vocabulário tão limitado quanto o meu e dizia as frases escandindo as palavras, como se fosse um Frank Sinatra, para ser compreendido. Lá pelas tantas ele perguntou qual era minha profissão. Sem pensar muito, banquei involuntariamente o Cearucho: “liar” disse eu, ou seja, mentiroso. Ele caiu numa gargalhada, dando-me tempo de corrigir: “sorry, I’m a lawyer”, disse eu. E ele: “same thing”. Agora quem gargalhou fui eu.
É conhecida a dificuldade que muitos estrangeiros, como os alemães, têm em pronunciar diferentemente “avô” e “avó” tal como fazemos nós, brasileiros e portugueses. Em compensação, muitos estudantes brasileiros confundem a pronúncia de “song of a beach” com a de “son of a bitch”, fazendo puns involuntários.
O hábito de incluir trocadilhos nas frases é um vício como tantos outros e que, como tantos outros, irrita quem não tem aptidão para fazê-los.
Diz-se que a arte do trocadilho é tão velha como a literatura. No Brasil, quando se toca no assunto, vêm-nos à mente os nomes de Emílio de Menezes e de Bastos Tigre. Tantos trocadilhos fizeram que é difícil dizer se este notável jogo de palavras é da autoria de um ou de outro. Tendo hérnia, ele usava uma funda, que comprimia aquela protuberância. Certo dia, ele teria esquecido a funda num outro compartimento da casa e a empregada veio à sala trazer-lha. “Aqui está o seu cinto”, disse ela. E ele:”Não consinto que você confunda cinto com funda.”
Atribui-se a ninguém menos do que Luis Vaz de Camões a autoria destes versos, onde a palavra pena é empregada em mais de um sentido:

“Aviva os espíritos
que, pois em teu favor sou,
esta pena que te dou
fará voar teus escritos.
E dando-lhe a padecer
tudo o que quis que pusesse,
pude, enfim, dele dizer
que me deu com que escrever
o que quis que escrevesse.»

Também eu cometi dos meus:

“Sou rio de água serena,
ao mar caminho no trilho.
Por teu sorriso, morena,
até faço trocadilho.”
Pensei na elaboração de um livro que permitisse aos professores de inglês brincar com os alunos, a partir de homofonias. Trata-se de um diário escrito por uma menina, que tem um irmão menor, André, cuja esperteza irrita sobremaneira a irmã. A redação, portanto, deve buscar corresponder ao modo como uma criança elaboraria as frases.
Algo como isto:
“Jeux de mots means ‘games of words’. For instance, as my father told me, when I say J’ai deux mots I’m saying ‘I have two words’ in French, but the sound is the same of jeux de mots. The same or almost the same, because two things absolutely the same that I know are only two Japanese or two Chinese boys. Isn’t? That’s what I learned in the school.
One day, in an unexpected way, Andre asked our father (he’s my lit brother, you see?): ‘Dad, how can you be dad if you’re alive?’ Mommy got astonished. ‘Bill’, she said her husband, who is my dear father, ‘you must correct that boy. He’s getting impossible with that kind of joke!’ Bill is the nickname mum put over her husband, because his name is William, a very nice name in my opinion and I don’t know why people like mum must to transform it in a little sound that looks like the noun my father William uses to pronounce to the waiter, at the restaurant, when dinner is over, putting his left arm up all the time.
The boy laughed, looking at his mother, that is my mother as well, because he his my brother, as you know, but I dislike him because he is all the time transforming words and you need to pay attention to them to get what that boring boy is trying to tell you.
Whalter is that, my-me?’ Walter is the name of our uncle, our mother’s brother, and Andre loves to use it for his puns. ‘Whalter hour u doing?’ he actually asks to me when I am in my room reading some book or at the phone or hearing Diana Kroll or other singer I love. ‘It’s note your bizz, and chat-up your mouse cause I’m needling to be along’ I answer using that stupid kind of phrases he loves to use and I hate when it’s not me who is using them. That earwig!”
Tomo a liberdade de pô-lo aqui porque sei que meus leitores são modernos.
A esta altura você talvez esteja indagando o que faz aqui aquele esquisito parágrafo inicial. Trata-se de puns bilingues:
“Minha inglesinha, você fica com esse ai, ai, em lugar de abrir o olho (eye). Caia em si e vá ao mar (sea). Aliás, é melhor rir lá do que aqui (here).”
Sorry, deer.

08 setembro 2011

Meias verdades


Vejo um debate na televisão sobre a lei anti-fumo. Um dos participantes, apresentado pela mediadora como filósofo, entende um absurdo impedir o direito individual de fumar, pois cada um deve saber o que lhe convém, sem que o Estado interfira em nossa liberdade de escolha. “Logo logo vão proibir o ato sexual” diz ele no auge da indignação.
Lamento dizer ao pretenso filósofo, que, quando muito, deve ser apenas um (mau) estudante de Filosofia, que já existe lei proibindo o ato sexual. Experimente ele deitar com uma parceira ou um parceiro num banco de uma praça de Porto Alegre, pois ele é gaúcho, e tentar realizar ali o tal ato sexual para ver o que lhe acontece. Ou levar para seu apartamento meninas de 12 ou 13 anos para tal finalidade.
Não é preciso estudar Filosofia para descobrir que a questão não está em proibir o ato sexual, mas proibir o ato sexual “em certos locais” ou “com determinados parceiros”.
Aliás, a idéia de liberdade absoluta não diz com o tipo de sociedade em que vivemos, mas talvez com uma sociedade anarquista. Num regime democrático, o que temos são limitações legais ao poder da autoridade pública (representante da sociedade) em prol do bem individual e limitações legais aos direitos individuais em benefício da sociedade. Será que isso seja algo surpreendente?
Por falar em limitação, registrei em livro recente o caso de um símbolo político: a cruz suástica, que nos recorda o nazismo. Esse símbolo tornou-se político por apropriação realizada pelos líderes nazistas. Consta que, em 1910, o poeta nacionalista Guido von List teria feito a sugestão de utilização do símbolo, já que o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, o Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, também conhecido por Nazi, por oposição aos sociais-democratas, os Sozi, estava pretendendo ressuscitar a antiga civilização védica ou ariana, que se teria notabilizado por sua ferocidade guerreira.
Ocorre que tal cruz sempre foi um símbolo religioso, tanto que a palavra, em sânscrito, quer dizer boa sorte. É ela uma cruz eqüilátera, com os braços dobrados seja para a esquerda (sinistrógira) seja para a direita (destrógira), a sugerir movimento, tal como a roda da vida. A suástica é um símbolo sagrado tanto no Hinduísmo, como no Jainismo e no Budismo.
Aliás, a lei 7.716/89, quando define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, diz bem, no artigo 20, parágrafo 1º, ser crime o fabrico, comercialização distribuição ou vinculação da cruz suástica, “para fins de divulgação do nazismo”, o que deixa claro que o legislador brasileiro conhece tal distinção. O crime exige o elemento subjetivo do injusto: o fim político.
"Se compararmos a suástica com a figura da cruz inscrita na circunferência, poderemos nos dar conta de que são, no fundo, dois símbolos equivalentes, com a única diferença de que a rotação, ao invés de ser representada pelo traçado da circunferência, é apenas indicada na suástica por linhas acrescentadas às extremidades dos braços da cruz em ângulos retos; essas linhas são tangentes à circunferência, marcando a direção do movimento nos pontos correspondentes. Como a circunferência representa o Mundo, o fato de se encontrar subentendida indica muito claramente que a suástica não é uma representação do Mundo, mas sim da ação do Princípio em relação ao Mundo" diz Raimundo Cintra em A Cruz e o Lótus.
E conclui: "a suástica, longe de ser exclusivamente oriental, como se acreditou algumas vezes, é, na realidade, um daqueles símbolos muito difundidos, sendo encontrado em quase toda parte, do Extremo Oriente ao Extremo Ocidente, pois existe até em certos povos indígenas da América do Norte. Na época atual, conservou-se em particular na Índia e na Ásia Central e Oriental e é provável que apenas nessas regiões exista quem saiba ainda o que ela significa. Do mesmo modo que o centro do círculo e a roda, a suástica remonta incontestavelmente aos tempos pré-históricos, e, de nossa parte, vemos esse signo ainda, sem qualquer hesitação, como um dos vestígios da tradição primordial".
Ora, voltando ao tal programa de TV, o Estado não está proibindo as pessoas de fumar. Está proibindo a poluição do ar. Se o fumante engolir a fumaça do seu cigarro, nada contra seu vício. O que não faz sentido é ele, em lugar de dar vazão a ele no sacrossanto recesso do seu lar, venha fazê-lo na mesa ao lado da minha, num restaurante.
Usando um exemplo grosseiro: o Estado não me impede de beber chope. Quando minha bexiga estiver cheia, se eu descarregá-la ao pé da cadeira do meu vizinho fumante certamente ele não gostará. Por que haverei de aceitar a fumaça do cigarro dele?
A final de contas, eu tenho o direito de beber quantos chopes eu quiser. É ou não é?
Como diz o título, estamos diante de verdades aparentes, que não decorrem de uma análise objetiva, mas de apreciação precipitada, cujo resultado, quase sempre, é fruto do preconceito. Pior: essas meias certezas costumam exibir aquilo que os junguianos chamam de “sombra”, aquele “outro eu” que fazemos de tudo para esconder de nós mesmos.
Faça um teste: abra este site http://www.youtube.com/watch_popup?v=4meeZifCVro e, depois, honestamente, diga a si próprio qual foi a conversa que teve consigo mesmo durante a exibição do filme. Se disser que não teve conversa alguma, permita um conselho: marque hora com um psicanalista.



03 setembro 2011

Provas de suficiência



“Todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte do seu trabalho.” (Umberto Eco, Seis passeios pelos bosques da ficção)

O Oscar tem um filho, Tomás. O Tomás tem um filho, João. O João tem um filho, Pedro. O Pedro tem um filho, Antônio. O Antônio tem um filho, Francisco. E o Francisco tem uma dúvida.
De fato, ele sabe dizer qual é a relação parental entre ele e Pedro, que é o pai do seu pai. Daí pra cima, nada! Oscar, por exemplo, avô do seu avô, o que é dele? E Tomás?
Eu disse que ele tem uma dúvida, mas retifico. Ele tem duas dúvidas. Sua namorada é a Maria Aparecida, que só fala em casamento. A dúvida dele: se eles se casarem, ela será sua parente? Se for, qual o grau desse parentesco?
Pensando bem, suas dúvidas são três. Eis a terceira: se a noiva se chamasse Dilma e se ele se casasse com ela, ela seria sua parente ou sua parenta?
É que o Francisco entrou para a faculdade de Direito (quem entra na faculdade é o carteiro, mas ali não assiste os professores, até porque quem assiste os professores é o médico, já que os alunos assistem às aulas dos professores) e está encontrando alguma dificuldade em entender o que alguns professores dizem.
Por exemplo, quando o professor fala em “bem fungível” o Francisco deve incluir aí a sua Cidinha ou não? O professor mostrou a diferença entre coisa útil, coisa necessária e coisa supérflua. A serra elétrica que o Chico tem em casa é coisa necessária, útil ou supérflua?
Embora esteja no primeiro ano, ele trabalha como “fórum boy” no escritório de advocacia de um amigo de seu pai. O tal advogado entrou com uma ação junto à Vara de Família e pediu a concessão antecipada da tutela reclamada, a ser concedida “inaudita altera pars”. Você acha que isso está certo? Pior: o curador de família deu um parecer dizendo que os argumentos da pretensão vêm de encontro à opinião da doutrina. O advogado quer saber se o promotor concordou ou discordou dele. Que lhe parece?
Não bastasse isso, a juíza que recebeu os autos mandou retificar a petição inicial porque está dirigida ao “Exmo. Sr. Juiz de Direito” e ela é uma “Exma. Sra. Juíza de Direito”. Como você faria no futuro para que outra juíza não se abespinhasse com um cabeçalho que ela reputa machista?
Perguntas semelhantes a essas eu costumava apresentar a meus alunos, muitos dos quais ainda viam nas petições do escritório onde trabalhavam coisas como “E.R.M.” e “Nestes termos pede deferimento”, conforme me relatavam no intervalo de aulas. Tem sentido isso?
Já na primeira aula eu dava uma indicação de como seria o curso. Entregava a cada um uma folha de papel com algumas indagações, precedidas de uma observação: “Leia com atenção toda a folha e depois faça o que vem determinado”. Depois disso eu apresentava os itens a serem obedecidos:
1.   Nome:
2.   Matrícula:
3.   Data de nascimento:
4.   Se você for do sexo masculino, assobie a primeira estrofe do Hino Nacional Brasileiro
5.   Se você nasceu em outro Estado da Federação, fique de pé e erga o braço direito
6.   Se você tiver filhos, fique de costas para a lousa
7.   Se você trabalha, além de estudar, erga os dois braços
8.   Se você fala uma segunda língua, bata palmas
9.   Se você for viúvo, rasgue a folha
10.       Agora que leu tudo, atenda apenas as primeiras duas determinações
Eu não fazia isso por sadismo, mas para que aprendessem que um advogado, um promotor, um juiz ou mesmo um delegado de polícia somente deve iniciar o seu trabalho depois de ter conhecimento de todos os dados do problema a ser por ele equacionado. Ou passará a mesma vergonha daqueles alunos que, açodadamente, foram atendendo as determinações por mim feitas antes de ler a última.
Além disso, ficava a lição de que, antes de utilizar uma palavra ou uma expressão incomum, especialmente se for em língua estrangeira, o profissional do Direito deve certificar-se do seu exato sentido e de sua correta grafia, até porque há alguns conceitos ou redações vulgares que não correspondem ao conceito ou à redação técnicos, como se dá com a palavra “tataravô”. Quem é seu tataravô?
E chega de fazer perguntas. Agora quero saber das respostas. No fim da próxima semana darei as notas aos alunos que voluntariamente acederam a este desafio. Como diz o Umberto Eco, “que problema seria se um texto tivesse de dizer tudo o que seu receptor deve compreender. Não terminaria nunca.”
Mãos à obra, pois.