23 dezembro 2013

Natal


Até que idade as pessoas acreditam na existência real do Papai Noel?  O Felipe, por exemplo, hoje com quase 7 anos, descobriu, tempo faz, que o Papai Noel é de plástico e mora no shopping. Pragmaticamente, porém, ele prefere acreditar na existência dele e nos vários presentes que ele traz, encomendados pelos pais, pelas tias, pelos avós e pelos padrinhos. Acho que aprendeu isso lendo Pascal, às escondidas: Se você acredita em Deus e nas Escrituras e estiver certo, será beneficiado com a ida ao Paraíso. Se você acredita em Deus e nas Escrituras e estiver errado, nada terá perdido. A avó prometera-lhe que neste ano o bom velhinho iria trazer uma tenda indígena para o bom garoto. E onde achar a tal tenda? Resultado: ir prevenindo o Felipe de que Papai Noel talvez não encontre a tal tenda. “E se ele não encontrar a tenda, Felipe?” indaga a aflita avó. E ele, zen a mais não poder: “Se ele não encontrar a tenda eu não ganho uma tenda no Natal.” E mais não disse nem lhe foi perguntado.
Aliás, em que dia, mês e ano nasceu Jesus de Nazaré? Se considerarmos que estamos no ano 5.774 do calendário judaico, Jesus teria nascido em 3.761 do calendário judaico, num mês que certamente não se chamava Dezembro. E então, como ficamos?
Sabe-se que o calendário cristão é um dos inúmeros calendários possíveis. Indo-se a qualquer enciclopédia, descobre-se que, além dele e do hebraico, há o calendário muçulmano, o calendário maia e até mesmo um estranho calendário criado pelos revolucionários franceses.
O calendário hebraico introduziu a semana de sete dias, divisão que seria adotada em calendários posteriores. É possível que sua origem esteja associada ao caráter sagrado do número sete, como ocorre nas sociedades tradicionais, ou que se relacione com a sucessão das fases da lua, já que a semana corresponde aproximadamente à quarta parte do mês lunar.
A civilização islâmica adotou o calendário lunar, em que o ano se divide em 12 meses de 29 ou 30 dias, de forma que o ano tem 354 dias. Como o mês sinódico não tem exatamente 29,5 dias, mas 29,5306 dias, é necessário fazer algumas correções para adaptar o ano ao ciclo lunar.
A origem do calendário muçulmano se fixa na Hégira, que comemora a fuga de Maomé da cidade de Meca para Medina, que coincide com o dia 16 de julho de 622 da era cristã, no calendário gregoriano.
Um caso muito singular é o do calendário republicano, instituído pela revolução francesa em 1.793, e que tinha como data inicial o dia 22 de novembro de 1.792, data em que foi instaurada a república. Pretendia substituir o calendário gregoriano e tornar-se universal. O ano passaria a ter 12 meses de trinta dias, distribuídos em três décadas cada mês. Estas eram numeradas de um a três, e os dias de um a dez, na respectiva década, recebendo nomes de primidi, duodi, tridi, quartidi, quintidi, sextidi, septidi, octidi, nonidi, décadi. Deram-se, depois, às décadas, nomes tirados de plantas, animais e objetos de agricultura. Dividiu-se o dia em dez horas de cem minutos, e estes com cem segundos de duração. As denominações dos meses inspiraram-se nos sucessivos aspectos das estações do ano na França. Aos 360 dias acrescentavam-se cinco complementares, anualmente e, um sexto a cada quatriênio. Teve curta duração (pouco mais de 13 anos) e a 1º de janeiro de 1.806, Napoleão Bonaparte acabou com a brincadeira, restabelecendo o uso do calendário gregoriano.
O calendário juliano remonta ao antigo Egito. Foi estabelecido em Roma por Júlio César no ano 708 da fundação de Roma. Adotou-se um ano solar de 365 dias, dividido em 12 meses de 29, 30 ou 31 dias. A diferença do calendário egípcio está no fato de se introduzirem os anos bissextos de 366 dias a cada quatro anos, de forma que o ano médio era de 365,25 dias. O esquema dos meses foi reformulado posteriormente para que o mês de agosto, assim nomeado em honra ao imperador Augusto, tivesse o mesmo número de dias que o mês de julho, cujo nome é uma homenagem a Julio César.
Em 1.582, o papa Gregório XIII, aconselhado por astrônomos de sua confiança, por intermédio da bula Inter Gravissimas, de 24 de fevereiro, decretou a reforma do calendário, que passou, em sua homenagem, a chamar-se gregoriano, e é o mais perfeito utilizado até hoje. Mesmo assim, apresenta algumas deficiências. Uma delas é a diferença na duração dos meses (28, 29, 30 ou 31 dias) e o fato de que a semana, que é utilizada quase universalmente como unidade de tempo de trabalho, não esteja integrada nos meses, de tal forma que o número de dias trabalhados durante um mês pode variar de 24 a 27.
Apesar de representar um avanço, o calendário gregoriano demorou para ser aceito, principalmente em países não católicos, por motivos sobretudo político-religiosos. No Brasil, então colônia de Portugal, que na época estava sob o domínio da Espanha, o calendário gregoriano entrou em uso em 1.582. Nas nações da Alemanha, foi adotado no decorrer dos séculos XVII (em poucos casos, antes de 1.700) e XVIII (Prússia, 1.775); na Dinamarca (incluindo então a Noruega), em 1.700; na Suécia (com inclusão da Finlândia), em 1.753. Nos cantões protestantes da Suíça, no princípio do século XVIII. Na Inglaterra e suas colônias, entre as quais os futuros Estados Unidos, em 1.752. Nos países ortodoxos balcânicos, depois de 1.914 (Bulgária, 1.916, Romênia e Iugoslávia, 1.919; Grécia, 1.924). Na União Soviética, em 1.918. Na Turquia, em 1.927. No Egito, já havia sido adotado para efeitos civis desde 1.873, mesma data em que foi aceito no Japão. Na China foi aceito em 1.912, para vigorar simultaneamente com o calendário tradicional chinês, até 1.928.
E como apareceu o dia 25 de Dezembro?
Segundo o Evangelho de Mateus, capítulo 2, versículos 1 a 3, “tendo nascido Jesus em Belém da Judéia, no tempo de Herodes, eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalém dizendo: ‘onde está aquele que é nascido rei dos judeus? pois vimos sua estrela no oriente e viemos adorá-lo.’ E o rei Herodes, ouvindo isso, perturbou-se e, com ele, toda Jerusalém.” Acontece que Herodes reinou de 37 a 4 a.C., feita a devida conversão do calendário.
Assim, para que não tenhamos de desmentir o evangelista, só nos cabe, como faz a própria Igreja Católica, admitir este paradoxo: Jesus nasceu 5 ou 6 anos “antes de Cristo”, ao contrário do que disseram os assessores do Papa Gregório, que fizeram iniciar a era cristã na data de tal nascimento.
Quanto ao 25 de Dezembro, referia-se ele a uma festa pagã: “Natalis Solis Invicti” (nascimento do sol invencível) e era uma homenagem ao deus persa Mitra, muito popular em Roma. Como aconteceu com a festa judaica denominada “Pessach”, ou “Festa da Libertação”, que deu na festa cristã da Páscoa, assim também a festa a Mitra converteu-se na Festa a Jesus, tudo isso  independentemente de calendário.

16 dezembro 2013

As sandálias de cada um

Ne sutor ultra crepidam.”

 Diz-se que jornalista é um profissional que tem de discorrer sobre o que sabe e também sobre o que ignora. Est modus in rebus meus caros, como se dizia no meu tempo. Ou, em linguagem de hoje, devagar com o andor que o santo é de barro.
Agora que o Supremo Tribunal Federal se pôs a mostrar que em espingarda velha, bundinha de criança e cabeça de juiz não dá para confiar, pois jamais saberemos o que sairá dali nem quando e, em consequência, os jornalistas descobriram algo chamado “voto vencido” e, em consequência, descobriram uma coisa chamada “embargos infringentes” e, em consequência, que uma decisão definitiva nem sempre é tão definitiva assim. as bobagens “jurídicas” pululam na imprensa falada a escrita. Se juiz do STF pode inventar, por que eu não hei de poder? Pouco importa dizer que um juiz, especialmente de uma Corte Superior, não faz afirmação alguma sem trazer rios de lições doutrinárias e precedentes jurisprudenciais. Quando mais não seja, eles invocam a hermenêutica e a exegese para afirmar ou negar algo.
Quantos jornalistas, porém, conhecem essas palavras? Até juiz de futebol se põe a pontificar, afirmando algo que os hermeneutas e os exegetas já aboliram há tantos lustros: “a lei é clara”. Quando alguém, naqueles idos e vividos, disse que cessat in claris interpretatio,  houve quem dissesse: “mas eu só saberei se o texto da norma jurídica é claro depois de interpretá-lo”.
Já mostrei a bobagem disso, mas volto ao tema.
a) Pênalti contra o time A. Antes de o jogador do time B tocar na bola, um jogador do time A invade a área, o que é proibido. O jogador B, que não notou isso, bate a falta e a bola entra. O juiz anula o lance por causa da tal invasão. Agiu ele corretamente?
b) Pênalti contra o time A. Antes de o jogador do time B tocar na bola, um jogador do time B invade a área, o que é proibido. O jogador B bate a falta e a bola passa por cima da trave. O juiz anula o lance por causa da invasão. Agiu corretamente?
c) Pênalti contra o time A. O goleiro do time A é advertido pelo juiz de que deve permanecer sobre a linha que demarca o campo, sob o travessão. O goleiro, entretanto, afastando-se, fica além dessa linha. O jogador do time B bate a falta e a bola entra. O juiz anula o lance por causa da má posição do goleiro. Agiu corretamente?
d) Jogo final de campeonato. Um dos times vence por 3 a zero. Chegando o segundo tempo, aos 43 minutos, o árbitro assinala à mesa que dará 2 minutos de prorrogação. Agiu corretamente?
        Uma regra não é fruto do capricho do legislador. Ou, pelo menos, devemos considerar que não o seja. Ela surge com alguma finalidade, em face da necessidade de disciplinar determinados comportamentos humanos, sejam eles considerados genericamente (“não matar”) sejam eles considerados especificamente (“o advogado deve comportar-se com lealdade no processo”). Quando analisamos uma regra com os olhos nessa finalidade dizemos que estamos fazendo uma interpretação teleológica, como sabemos todos, mas os comentaristas de futebol não o sabem.
Quando diz que o goleiro deve ficar sobre a linha de gol, o que a regra quer impedir é que ele, avançando campo adentro, diminua o espaço no qual o cobrador do pênalti poderá meter a bola, pela redução da visibilidade do atacante. Até uma criança sabe que será impossível fazer o gol na cobrança do pênalti se o goleiro estiver a um metro do cobrador. Se o goleiro resolver aumentar o campo visual do atacante, problema do goleiro e do respectivo time. Anular o gol será “beneficiar o infrator”, como dizem eles. Em latim se diria: nemo allegare turpidudinem suam potest”.
Da mesma forma, se quem deu margem à nulidade do lance pertence ao time cujo atacante chutou a bola fora do gol, anular o lance subsequente será, mais uma vez, “beneficiar o infrator”. O mesmo se diga se, ao contrário, quem deu margem à tal nulidade foi o jogador do time que sofreu o gol de pênalti. Em latim: Utile per inutile non vitiatur.
Quanto à prorrogação do jogo, ela tem uma finalidade: compensar as interrupções havidas, na suposição de que, não houvessem elas ocorrido, o resultado do jogo poderia ser outro. Só que a possibilidade de um time fazer três gols em dois minutos é materialmente impossível. Lá dizia o latim: Nemo tenetur ad impossibilia.
Um lembrete final: para quando o bandeirinha (hoje se diz “juiz auxiliar”) deixa de marcar o impedimento que, nas circunstâncias não era claro, o princípio jurídico, que todo bandeirinha deveria conhecer, será este: in dubio, pro ludo. Ou seja, na dúvida, segue o jogo, como berra um dos locutores da TV. E deixe a torcida chiar, já que ela não sabe latim.
Pois a Folha de S.Paulo vem de publicar comentário do jornalista Hélio Schwartzman, intitulado “Garfando a Portuguesa”, que demonstra aonde pode chegar o atrevimento da ignorância.
Sem falar em exegese nem em hermenêutica, coisas que, pelo jeito desconhece, afirma o articulista: “Em qualquer caso, futebolístico ou jurídico, para chegar a uma solução que a maioria das pessoas classificaria como justa é preciso fazer referência a um conjunto de regras não escritas que chamamos de bom senso.”
A “cultura” desse jornalista, pese seu nome de família, certamente não lhe permitiu conhecer o que aconteceu na Alemanha quando “a maioria das pessoas” concordou, explicita ou implicitamente, com a depuração da raça ariana. Pelo jeito ele também desconhece a existência do Tribunal de Nuremberg, no qual até juízes foram julgados e condenados, quando mais não fosse, porque haviam agido com “bom senso”.
Antes o mesmo jornalista havia cometido esta pérola: “Não dá para aplicar todas as regras a todos o tempo todo. Fazê-lo transformaria nossas vidas num inferno.”
Em suma, ele não distingue as normas jurídicas das normas meramente éticas. Procuro agir eticamente desde que me levanto até o momento de voltar para a cama e posso afirmar ao tal jornalista que nem por isso minha vida é um inferno. Ao contrário, convivo com pessoas educadas e todos nós estamos convencidos de que a única maneira de progredirmos pessoal e coletivamente é “não fazermos ao próximo o que não gostaríamos que ele nos fizesse”.
 

10 dezembro 2013

A violência nos esportes


“Briga de torcidas, com vários feridos, interrompe jogo de futebol por 30 minutos” (dos jornais)”

No final do século passado, na cidade de São Paulo, uma briga de torcidas no interior de um estado de futebol, produziu vários feridos, dentre os quais dois vieram a falecer. O governo do Estádio promoveu um simpósio para ser debatido o assunto por especialistas, daí resultando o livro Violência no Esporte, com os textos daquelas palestras. Tocou-me falar sobre Agressividade e Violência, algo que transcrevo a seguir.
Se nos dispusermos a estudar a origem e a motivação dos esportes, veremos que eles estão ligados a fatos naturais da vida do homem, sendo, quase sempre, resultado de uma sublimação, atrevo-me a dizer. Seria cômodo ilustrar isso com o óbvio esporte do boxe, onde, sem subterfúgio algum, temos a briga entre dois homens (hoje já há luta de boxe entre mulheres, o que para muitos simboliza um “avanço cultural”, avanço esse que torna muitas delas mais agressivas do que os homens em sua vida diária, como quando estão no trânsito, não sendo rara a utilização de gestos obscenos ou mesmo palavras de baixo calão nessa ocasião, diante do comportamento de algum motorista que elas tenham por inaceitável). A correspondência entre a agressividade natural e a agressividade sublimada é evidente, até porque as normas de civilidade exigem que os punhos sejam cobertos por uma luva acolchoada. Ou exigiam, pois hoje também se pratica luta de boxe com as mãos desprotegidas, um fato bastante sintomático da “evolução” do ser humano a caminho de Cro-Magnon.
O mesmo se poderia dizer da esgrima, óbvia sublimação do antigo duelo a espada. A disputa de arco e flecha ou mesmo de tiro-ao-alvo não estão aí para nos indicar que o espírito do caçador, que se eternizou nas pinturas rupestres, continua dentro de cada um de nós?
E qual a origem da mais clássica das provas olímpicas, a corrida da maratona? Segundo reza a lenda, após uma árdua batalha na região de Marathon, quando os persas acabaram desistindo de invadir a Grécia, no ano 490 a.C., o soldado Filípides foi encarregado de avisar os seus compatriotas da vitória dos atenienses. Para isso, correu cerca de 36 quilômetros, para levar a boa-nova. Depois de fazer o feliz anúncio, morreu de exaustão. Aquela prova seria uma homenagem àquele herói grego (e, portanto, recordação de uma batalha sangrenta).
Mais difícil será aceitar que o civilizadíssimo jogo de tênis (que até há poucas décadas exigia que os disputantes se vestissem como vestais, roupa impecavelmente branca, até que uma brasileira, Maria Esther Bueno, como boa representante de nossa irreverência, quebrasse a tradição,mandando bordar umas palmeirinhas na barra da saia) seja sublimação de um duelo a espada: por força das normas de civilidade, a ponta dessa arma mortal voltou-se em direção ao próprio punho e ali se fixou, para afastar o perigo de ferir o adversário. Ficou um espaço vazio, ovalar, que foi coberto com um cordoamento, transformando-se em raquete. A expressão “matar o ponto” parece denunciar essa origem: mata-se o ponto em lugar de matar o adversário.
Recorde-se que inúmeros esportes coletivos são disputados em torno de uma bola. E que é a bola senão a simbolização da cabeça do adversário, que o vencedor primitivo trazia para sua tribo, como prova do êxito na guerra? Eis o que nos diz um admirador do futebol, a respeito da figura do torcedor típico: “El fanático llega al estadio envuelto en la bandera del club, la cara pintada con los colores de la adorada camiseta, erizado de objetos estridentes y contundentes, y ya por el camino viene armando mucho ruido y mucho lío. Nunca viene solo. Metido en la barra brava, peligroso ciempiés, el humillado se hace humillante y da miedo el miedoso. La omnipotencia del domingo conjura la vida obediente del resto de la semana, la cama sin deseo, el empleo sin vocación o el ningún empleo: liberado por un día, el fanático tiene mucho que vengar”.[1]
Admira, pois, que os meios de comunicação reajam com tanta indignação diante da chamada violência nos estádios de futebol. Um pouco mais de atenção àquilo que ali é simbolizado mostraria que não se trata de algo tão extraordinário assim, embora não devamos quedar de braços cruzados diante de tais ocorrências.
De fato, quando uma tribo de guerreiros pretendia partir para a guerra, a primeira preocupação era pintar o corpo com cores muito vivas, o que, evidentemente, também estava sendo providenciado pela tribo adversária. Para que isso? Para que, durante a refrega, o guerreiro não perdesse tempo tentando descobrir se a cabeça em que pretendia desferir o golpe de borduna pertencia a alguém de sua tribo ou da tribo adversária. Pela diferença de cor da tintura essa dúvida não teria mais razão de ser, ganhando-se tempo precioso.
Hoje, graças ao avanço da civilização, não mais temos guerras de tribos, ou seu número é quase insignificante. Mas o homem conserva em si a natural agressividade, a necessidade de conquista, a força que o empurra para a luta. Que fazer com essa força? Sublimá-la, quando mais não seja utilizando os games da internet.
O que acontece nas disputas coletivas é precisamente isso: cada participante de uma equipe veste um uniforme que distingue seus componentes dos jogadores do outro time. Em lugar de lutar-se para conquistar a cabeça do adversário, ela já vem trazida pelo árbitro: a bola.
Se isso não é assim, por que motivo, ao fim de uma disputa, o vencedor leva uma taça? Trata-se, ainda uma vez, ao que tudo indica, de uma cerimônia simbólica: originalmente, era na taça que os vencedores bebiam o sangue dos vencidos, para se apropriarem do espírito dos derrotados, da coragem por eles demonstrada na luta. O Santo Graal não é, ao fim e ao cabo, exatamente isso? [2] Outras vezes o vencedor recebe uma salva de prata, o que dá na mesma, pois ali, simbolicamente, está a cabeça do vencido.
Se uma partida de futebol contém, como estamos convencidos de que contém, os mesmos ingredientes de uma guerra entre tribos, com as alterações introduzidas pela civilização, a agressividade que ali é descarregada contém a mesma força natural, o mesmo empenho em vencer a morte, pois toda vitória é sempre, em síntese, um triunfo da vida contra a morte. Ora, enquanto a guerra esportiva está limitada pelas quatro linhas do campo de luta e sob o controle de um juiz, essa agressividade é geralmente contida pelos cartões amarelo e vermelho (o de cor de sangue indicando, sintomaticamente, que o guerreiro está fora da luta, como se tivesse morrido, simbolismo que, evidentemente, não passou pela cabeça de quem escolheu essa cor, mas que seguramente estava guardado em seu mundo inconsciente). Com o hábito de os torcedores usarem a mesma camisa do seu clube (ou seja, também se prepararem para a guerra), o confronto entre torcidas, agravado pela instituição das torcidas uniformizadas, como desdobramento dos limites territoriais da tribo, tornou-se inevitável.
Agora não estamos mais diante de uma luta de onze contra onze, mas de um número incontável de guerreiros contra outro número incontável de guerreiros. Será de admirar que de uma guerra dessas surjam mortos?
A violência, portanto, podemos sintetizar, nada mais é do que a agressividade mal administrada.
Quando sabemos que todo ser humano é dotado de agressividade, temos duas alternativas para evitar que ela se torne violência: ou bem nos utilizamos das soluções radicais, como aquela proposta por Anthony Burguess, em seu livro Laranja Mecânica, ou bem tratamos de criar mecanismos de sublimação dessa agressividade, para que não se convole em violência, reeducando-se o ser humano. Os esportes, de modo geral, prestam-se a esse segundo propósito, sendo de todo evidente que os governos teriam um retorno bem maior se, em lugar de destinar dinheiro para a construção de novos presídios (quando destinam), aplicassem tais verbas na construção de centros recreativos e desportivos, até porque os profissionais do esporte estão hoje em dia sendo regiamente remunerados, o que constitui considerável estímulo à juventude. Menos trombadinhas e mais velocistas, em suma, poderia ser a máxima de uma tal campanha. O pífio desempenho de nossos atletas nas competições olímpicas (comparando-se ao de outros países, com população muito menor e, portanto, com menor possibilidade de selecionar os mais aptos), para ficarmos ainda naquele tema, mostra qual tem sido a opção de nossos governantes, no que diz com a administração da agressividade.
A confusão entre dois conceitos de mesma origem mas de conteúdos diferentes (agressividade e violência) tem levado muita gente a classificar negativamente o primeiro (que é algo construtivo), em razão dos danos advindos pela presença do segundo (que, de fato, está maculado por sua destrutividade intrínseca). A percepção da distinção entre eles, que se referem a realidades distintas, é o primeiro passo para que algo efetivamente se altere na realidade aqui focada.





[1]     Eduardo Galeano, El fútbol a sol y sombra, Editora Catálogos, Buenos Aires, 2005, p. 8.
[2]     No ritual católico o corpo e o sangue do Cristo, derrotado pelo mundo, é o alimento de que se vale o crente para incorporar em si as insuperáveis qualidades do “vencido”.

05 dezembro 2013

Na portaria de um hotel cearense



Com agradecimento ao amigo Isaac Chenker

- Por favor, eu gostaria de fazer minha inscrição para o Congresso de Turismo de Fortaleza.
- Pois não.
- Por que não?
- Pelo seu sotaque vejo que o senhor não é brasileiro. O senhor é de onde?
- Sou de Maputo, Moçambique.
- Da África, né?
- Sim, sim, da África.
- Aqui está cheio de africanos, vindos de toda parte do mundo. O mundo está cheio de africanos.
- É verdade. Mas se pensar bem, veremos que todos somos africanos, pois a África é o berço antropológico da humanidade.
- Aqui no Brasil, quando dizemos “pois não” queremos dizer “sim”; quando dizemos “pois sim” queremos dizer “perca as esperanças”.
- E dizem que falam português.
- Pronto, teremos uma palestra agora na sala meia oito.
- Desculpe, qual sala?
- Meia oito.
- Podes escrever?
- Não sabe o que é “meia oito”? Sessenta e oito, assim, veja: 68.
- Ah, entendi, “meia” é seis.
- Isso mesmo, meia é seis. Mas não vá embora, só mais uma informação: a organização do Congresso está cobrando uma pequena taxa para quem quiser ficar com o material: DVD, apostilas, etc. Gostaria de encomendar?
- Quanto tenho que pagar?
- Dez reais. Mas estrangeiros e estudantes pagam meia.
- Muito bom. Aqui estão: seis reais.
- Não, o senhor paga meia. Só cinco, entende?
- Pago meia? Só cinco? Meia é cinco ou é seis?
- Meia agora é cinco.
- Entendi. Meia agora é cinco.
- Cuidado para não se atrasar, a palestra começa às nove e meia.
- Então já começou há quinze minutos, são nove e vinte.
- Não, ainda faltam dez minutos. Como falei, só começa às nove e meia.
- Pensei que fosse às 9:05, pois meia não é cinco?
       - Meia agora é trinta.
- Você pode escrever aqui a hora em que começa a palestra?
- Nove e meia, assim, veja: 9:30
- Ah, entendi. Meia é trinta.
- Isso, mesmo, nove e trinta. Mais uma coisa senhor. Tenho aqui um folder de um hotel que está fazendo um preço especial para os congressistas, o senhor já está hospedado?
- Sim, já estou na casa de um amigo.
- Em que bairro?
- No Trinta Bocas.
- Trinta Bocas? Não existe esse bairro em Fortaleza, não seria no Seis Bocas?
- Isso mesmo, no bairro “Meia Boca”.
- Ele não é meia boca; é um bairro nobre.
- Então deve ser Cinco Bocas.
- Não. O nome é Seis Bocas, entende. Seis Bocas. Chamam assim porque há um encontro de seis ruas. Por isso deram esse nome de Seis Bocas. Entendeu?
- Acabou?
- Ainda não. Devo informar-lhe que é proibido entrar no evento de sandálias, como as suas. Coloque meias e calce um par de sapatos. 

- Quantas meias? Cinco, seis ou trinta?