10 dezembro 2013

A violência nos esportes


“Briga de torcidas, com vários feridos, interrompe jogo de futebol por 30 minutos” (dos jornais)”

No final do século passado, na cidade de São Paulo, uma briga de torcidas no interior de um estado de futebol, produziu vários feridos, dentre os quais dois vieram a falecer. O governo do Estádio promoveu um simpósio para ser debatido o assunto por especialistas, daí resultando o livro Violência no Esporte, com os textos daquelas palestras. Tocou-me falar sobre Agressividade e Violência, algo que transcrevo a seguir.
Se nos dispusermos a estudar a origem e a motivação dos esportes, veremos que eles estão ligados a fatos naturais da vida do homem, sendo, quase sempre, resultado de uma sublimação, atrevo-me a dizer. Seria cômodo ilustrar isso com o óbvio esporte do boxe, onde, sem subterfúgio algum, temos a briga entre dois homens (hoje já há luta de boxe entre mulheres, o que para muitos simboliza um “avanço cultural”, avanço esse que torna muitas delas mais agressivas do que os homens em sua vida diária, como quando estão no trânsito, não sendo rara a utilização de gestos obscenos ou mesmo palavras de baixo calão nessa ocasião, diante do comportamento de algum motorista que elas tenham por inaceitável). A correspondência entre a agressividade natural e a agressividade sublimada é evidente, até porque as normas de civilidade exigem que os punhos sejam cobertos por uma luva acolchoada. Ou exigiam, pois hoje também se pratica luta de boxe com as mãos desprotegidas, um fato bastante sintomático da “evolução” do ser humano a caminho de Cro-Magnon.
O mesmo se poderia dizer da esgrima, óbvia sublimação do antigo duelo a espada. A disputa de arco e flecha ou mesmo de tiro-ao-alvo não estão aí para nos indicar que o espírito do caçador, que se eternizou nas pinturas rupestres, continua dentro de cada um de nós?
E qual a origem da mais clássica das provas olímpicas, a corrida da maratona? Segundo reza a lenda, após uma árdua batalha na região de Marathon, quando os persas acabaram desistindo de invadir a Grécia, no ano 490 a.C., o soldado Filípides foi encarregado de avisar os seus compatriotas da vitória dos atenienses. Para isso, correu cerca de 36 quilômetros, para levar a boa-nova. Depois de fazer o feliz anúncio, morreu de exaustão. Aquela prova seria uma homenagem àquele herói grego (e, portanto, recordação de uma batalha sangrenta).
Mais difícil será aceitar que o civilizadíssimo jogo de tênis (que até há poucas décadas exigia que os disputantes se vestissem como vestais, roupa impecavelmente branca, até que uma brasileira, Maria Esther Bueno, como boa representante de nossa irreverência, quebrasse a tradição,mandando bordar umas palmeirinhas na barra da saia) seja sublimação de um duelo a espada: por força das normas de civilidade, a ponta dessa arma mortal voltou-se em direção ao próprio punho e ali se fixou, para afastar o perigo de ferir o adversário. Ficou um espaço vazio, ovalar, que foi coberto com um cordoamento, transformando-se em raquete. A expressão “matar o ponto” parece denunciar essa origem: mata-se o ponto em lugar de matar o adversário.
Recorde-se que inúmeros esportes coletivos são disputados em torno de uma bola. E que é a bola senão a simbolização da cabeça do adversário, que o vencedor primitivo trazia para sua tribo, como prova do êxito na guerra? Eis o que nos diz um admirador do futebol, a respeito da figura do torcedor típico: “El fanático llega al estadio envuelto en la bandera del club, la cara pintada con los colores de la adorada camiseta, erizado de objetos estridentes y contundentes, y ya por el camino viene armando mucho ruido y mucho lío. Nunca viene solo. Metido en la barra brava, peligroso ciempiés, el humillado se hace humillante y da miedo el miedoso. La omnipotencia del domingo conjura la vida obediente del resto de la semana, la cama sin deseo, el empleo sin vocación o el ningún empleo: liberado por un día, el fanático tiene mucho que vengar”.[1]
Admira, pois, que os meios de comunicação reajam com tanta indignação diante da chamada violência nos estádios de futebol. Um pouco mais de atenção àquilo que ali é simbolizado mostraria que não se trata de algo tão extraordinário assim, embora não devamos quedar de braços cruzados diante de tais ocorrências.
De fato, quando uma tribo de guerreiros pretendia partir para a guerra, a primeira preocupação era pintar o corpo com cores muito vivas, o que, evidentemente, também estava sendo providenciado pela tribo adversária. Para que isso? Para que, durante a refrega, o guerreiro não perdesse tempo tentando descobrir se a cabeça em que pretendia desferir o golpe de borduna pertencia a alguém de sua tribo ou da tribo adversária. Pela diferença de cor da tintura essa dúvida não teria mais razão de ser, ganhando-se tempo precioso.
Hoje, graças ao avanço da civilização, não mais temos guerras de tribos, ou seu número é quase insignificante. Mas o homem conserva em si a natural agressividade, a necessidade de conquista, a força que o empurra para a luta. Que fazer com essa força? Sublimá-la, quando mais não seja utilizando os games da internet.
O que acontece nas disputas coletivas é precisamente isso: cada participante de uma equipe veste um uniforme que distingue seus componentes dos jogadores do outro time. Em lugar de lutar-se para conquistar a cabeça do adversário, ela já vem trazida pelo árbitro: a bola.
Se isso não é assim, por que motivo, ao fim de uma disputa, o vencedor leva uma taça? Trata-se, ainda uma vez, ao que tudo indica, de uma cerimônia simbólica: originalmente, era na taça que os vencedores bebiam o sangue dos vencidos, para se apropriarem do espírito dos derrotados, da coragem por eles demonstrada na luta. O Santo Graal não é, ao fim e ao cabo, exatamente isso? [2] Outras vezes o vencedor recebe uma salva de prata, o que dá na mesma, pois ali, simbolicamente, está a cabeça do vencido.
Se uma partida de futebol contém, como estamos convencidos de que contém, os mesmos ingredientes de uma guerra entre tribos, com as alterações introduzidas pela civilização, a agressividade que ali é descarregada contém a mesma força natural, o mesmo empenho em vencer a morte, pois toda vitória é sempre, em síntese, um triunfo da vida contra a morte. Ora, enquanto a guerra esportiva está limitada pelas quatro linhas do campo de luta e sob o controle de um juiz, essa agressividade é geralmente contida pelos cartões amarelo e vermelho (o de cor de sangue indicando, sintomaticamente, que o guerreiro está fora da luta, como se tivesse morrido, simbolismo que, evidentemente, não passou pela cabeça de quem escolheu essa cor, mas que seguramente estava guardado em seu mundo inconsciente). Com o hábito de os torcedores usarem a mesma camisa do seu clube (ou seja, também se prepararem para a guerra), o confronto entre torcidas, agravado pela instituição das torcidas uniformizadas, como desdobramento dos limites territoriais da tribo, tornou-se inevitável.
Agora não estamos mais diante de uma luta de onze contra onze, mas de um número incontável de guerreiros contra outro número incontável de guerreiros. Será de admirar que de uma guerra dessas surjam mortos?
A violência, portanto, podemos sintetizar, nada mais é do que a agressividade mal administrada.
Quando sabemos que todo ser humano é dotado de agressividade, temos duas alternativas para evitar que ela se torne violência: ou bem nos utilizamos das soluções radicais, como aquela proposta por Anthony Burguess, em seu livro Laranja Mecânica, ou bem tratamos de criar mecanismos de sublimação dessa agressividade, para que não se convole em violência, reeducando-se o ser humano. Os esportes, de modo geral, prestam-se a esse segundo propósito, sendo de todo evidente que os governos teriam um retorno bem maior se, em lugar de destinar dinheiro para a construção de novos presídios (quando destinam), aplicassem tais verbas na construção de centros recreativos e desportivos, até porque os profissionais do esporte estão hoje em dia sendo regiamente remunerados, o que constitui considerável estímulo à juventude. Menos trombadinhas e mais velocistas, em suma, poderia ser a máxima de uma tal campanha. O pífio desempenho de nossos atletas nas competições olímpicas (comparando-se ao de outros países, com população muito menor e, portanto, com menor possibilidade de selecionar os mais aptos), para ficarmos ainda naquele tema, mostra qual tem sido a opção de nossos governantes, no que diz com a administração da agressividade.
A confusão entre dois conceitos de mesma origem mas de conteúdos diferentes (agressividade e violência) tem levado muita gente a classificar negativamente o primeiro (que é algo construtivo), em razão dos danos advindos pela presença do segundo (que, de fato, está maculado por sua destrutividade intrínseca). A percepção da distinção entre eles, que se referem a realidades distintas, é o primeiro passo para que algo efetivamente se altere na realidade aqui focada.





[1]     Eduardo Galeano, El fútbol a sol y sombra, Editora Catálogos, Buenos Aires, 2005, p. 8.
[2]     No ritual católico o corpo e o sangue do Cristo, derrotado pelo mundo, é o alimento de que se vale o crente para incorporar em si as insuperáveis qualidades do “vencido”.

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