“Briga
de torcidas, com vários feridos, interrompe jogo de futebol por 30 minutos”
(dos jornais)”
No
final do século passado, na cidade de São Paulo, uma briga de torcidas no
interior de um estado de futebol, produziu vários feridos, dentre os quais dois
vieram a falecer. O governo do Estádio promoveu um simpósio para ser debatido o
assunto por especialistas, daí resultando o livro Violência no Esporte, com os textos daquelas palestras. Tocou-me
falar sobre Agressividade e Violência,
algo que transcrevo a seguir.
Se
nos dispusermos a estudar a origem e a motivação dos esportes, veremos que eles
estão ligados a fatos naturais da vida do homem, sendo, quase sempre, resultado
de uma sublimação, atrevo-me a dizer. Seria cômodo ilustrar isso com o óbvio
esporte do boxe, onde, sem subterfúgio algum, temos a briga entre dois homens
(hoje já há luta de boxe entre mulheres, o que para muitos simboliza um “avanço
cultural”, avanço esse que torna muitas delas mais agressivas do que os homens
em sua vida diária, como quando estão no trânsito, não sendo rara a utilização
de gestos obscenos ou mesmo palavras de baixo calão nessa ocasião, diante do
comportamento de algum motorista que elas tenham por inaceitável). A
correspondência entre a agressividade natural e a agressividade sublimada é
evidente, até porque as normas de civilidade exigem que os punhos sejam
cobertos por uma luva acolchoada. Ou exigiam, pois hoje também se pratica luta
de boxe com as mãos desprotegidas, um fato bastante sintomático da “evolução”
do ser humano a caminho de Cro-Magnon.
O
mesmo se poderia dizer da esgrima, óbvia sublimação do antigo duelo a espada. A
disputa de arco e flecha ou mesmo de tiro-ao-alvo não estão aí para nos indicar
que o espírito do caçador, que se eternizou nas pinturas rupestres, continua
dentro de cada um de nós?
E
qual a origem da mais clássica das provas olímpicas, a corrida da maratona?
Segundo reza a lenda, após uma árdua batalha na região de Marathon, quando os
persas acabaram desistindo de invadir a Grécia, no ano 490 a .C., o soldado Filípides
foi encarregado de avisar os seus compatriotas da vitória dos atenienses. Para
isso, correu cerca de 36
quilômetros , para levar a boa-nova. Depois de fazer o
feliz anúncio, morreu de exaustão. Aquela prova seria uma homenagem àquele
herói grego (e, portanto, recordação de uma batalha sangrenta).
Mais
difícil será aceitar que o civilizadíssimo jogo de tênis (que até há poucas
décadas exigia que os disputantes se vestissem como vestais, roupa
impecavelmente branca, até que uma brasileira, Maria Esther Bueno, como boa representante
de nossa irreverência, quebrasse a tradição,mandando bordar umas palmeirinhas
na barra da saia) seja sublimação de um duelo a espada: por força das normas de
civilidade, a ponta dessa arma mortal voltou-se em direção ao próprio punho e
ali se fixou, para afastar o perigo de ferir o adversário. Ficou um espaço
vazio, ovalar, que foi coberto com um cordoamento, transformando-se em raquete. A expressão
“matar o ponto” parece denunciar essa origem: mata-se o ponto em lugar de matar
o adversário.
Recorde-se
que inúmeros esportes coletivos são disputados em torno de uma bola. E que é a
bola senão a simbolização da cabeça do adversário, que o vencedor primitivo
trazia para sua tribo, como prova do êxito na guerra? Eis o que nos diz um admirador do futebol, a respeito da figura do torcedor
típico: “El fanático llega al estadio
envuelto en la bandera del club, la cara pintada con los colores de la adorada
camiseta, erizado de objetos estridentes y contundentes, y ya por el camino
viene armando mucho ruido y mucho lío.
Nunca viene solo. Metido en la barra brava, peligroso ciempiés, el humillado se hace
humillante y da miedo el miedoso. La omnipotencia del domingo conjura la vida
obediente del resto de la semana, la cama sin deseo, el empleo sin vocación o
el ningún empleo: liberado por un día, el fanático tiene mucho que vengar”.[1]
Admira,
pois, que os meios de comunicação reajam com tanta indignação diante da chamada
violência nos estádios de futebol. Um pouco mais de atenção àquilo que ali é
simbolizado mostraria que não se trata de algo tão extraordinário assim, embora
não devamos quedar de braços cruzados diante de tais ocorrências.
De
fato, quando uma tribo de guerreiros pretendia partir para a guerra, a primeira
preocupação era pintar o corpo com cores muito vivas, o que, evidentemente,
também estava sendo providenciado pela tribo adversária. Para que isso? Para
que, durante a refrega, o guerreiro não perdesse tempo tentando descobrir se a
cabeça em que pretendia desferir o golpe de borduna pertencia a alguém de sua
tribo ou da tribo adversária. Pela diferença de cor da tintura essa dúvida não
teria mais razão de ser, ganhando-se tempo precioso.
Hoje,
graças ao avanço da civilização, não mais temos guerras de tribos, ou seu
número é quase insignificante. Mas o homem conserva em si a natural
agressividade, a necessidade de conquista, a força que o empurra para a luta.
Que fazer com essa força? Sublimá-la, quando mais não seja utilizando os games da internet.
O que
acontece nas disputas coletivas é precisamente isso: cada participante de uma
equipe veste um uniforme que distingue seus componentes dos jogadores do outro
time. Em lugar de lutar-se para conquistar a cabeça do adversário, ela já vem
trazida pelo árbitro: a bola.
Se
isso não é assim, por que motivo, ao fim de uma disputa, o vencedor leva uma
taça? Trata-se, ainda uma vez, ao que tudo indica, de uma cerimônia simbólica:
originalmente, era na taça que os vencedores bebiam o sangue dos vencidos, para
se apropriarem do espírito dos derrotados, da coragem por eles demonstrada na
luta. O Santo Graal não é, ao fim e ao cabo, exatamente isso? [2]
Outras vezes o vencedor recebe uma salva de prata, o que dá na mesma, pois ali,
simbolicamente, está a cabeça do vencido.
Se
uma partida de futebol contém, como estamos convencidos de que contém, os
mesmos ingredientes de uma guerra entre tribos, com as alterações introduzidas
pela civilização, a agressividade que ali é descarregada contém a mesma força
natural, o mesmo empenho em vencer a morte, pois toda vitória é sempre, em
síntese, um triunfo da vida contra a morte. Ora, enquanto a guerra esportiva está
limitada pelas quatro linhas do campo de luta e sob o controle de um juiz, essa
agressividade é geralmente contida pelos cartões amarelo e vermelho (o de cor
de sangue indicando, sintomaticamente, que o guerreiro está fora da luta, como
se tivesse morrido, simbolismo que, evidentemente, não passou pela cabeça de
quem escolheu essa cor, mas que seguramente estava guardado em seu mundo
inconsciente). Com o hábito de os torcedores usarem a mesma camisa do seu clube
(ou seja, também se prepararem para a guerra), o confronto entre torcidas,
agravado pela instituição das torcidas uniformizadas, como desdobramento dos
limites territoriais da tribo, tornou-se inevitável.
Agora
não estamos mais diante de uma luta de onze contra onze, mas de um número
incontável de guerreiros contra outro número incontável de guerreiros. Será de
admirar que de uma guerra dessas surjam mortos?
A
violência, portanto, podemos sintetizar, nada mais é do que a agressividade mal
administrada.
Quando
sabemos que todo ser humano é dotado de agressividade, temos duas alternativas
para evitar que ela se torne violência: ou bem nos utilizamos das soluções
radicais, como aquela proposta por Anthony Burguess, em seu livro Laranja Mecânica, ou bem tratamos de
criar mecanismos de sublimação dessa agressividade, para que não se convole em
violência, reeducando-se o ser humano. Os esportes, de modo geral, prestam-se a
esse segundo propósito, sendo de todo evidente que os governos teriam um
retorno bem maior se, em lugar de destinar dinheiro para a construção de novos
presídios (quando destinam), aplicassem tais verbas na construção de centros
recreativos e desportivos, até porque os profissionais do esporte estão hoje em
dia sendo regiamente remunerados, o que constitui considerável estímulo à juventude.
Menos trombadinhas e mais velocistas, em suma, poderia ser a máxima de uma tal
campanha. O pífio desempenho de nossos atletas nas competições olímpicas (comparando-se
ao de outros países, com população muito menor e, portanto, com menor
possibilidade de selecionar os mais aptos), para ficarmos ainda naquele tema,
mostra qual tem sido a opção de nossos governantes, no que diz com a administração
da agressividade.
A
confusão entre dois conceitos de mesma origem mas de conteúdos diferentes
(agressividade e violência) tem levado muita gente a classificar negativamente
o primeiro (que é algo construtivo), em razão dos danos advindos pela presença
do segundo (que, de fato, está maculado por sua destrutividade intrínseca). A
percepção da distinção entre eles, que se referem a realidades distintas, é o
primeiro passo para que algo efetivamente se altere na realidade aqui focada.
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