Agora
que o Supremo Tribunal Federal se pôs a mostrar que em espingarda velha,
bundinha de criança e cabeça de juiz não dá para confiar, pois jamais saberemos
o que sairá dali nem quando e, em consequência, os jornalistas descobriram algo
chamado “voto vencido” e, em consequência, descobriram uma coisa chamada
“embargos infringentes” e, em consequência, que uma decisão definitiva nem
sempre é tão definitiva assim. as bobagens “jurídicas” pululam na imprensa
falada a escrita. Se juiz do STF pode inventar, por que eu não hei de poder?
Pouco importa dizer que um juiz, especialmente de uma Corte Superior, não faz
afirmação alguma sem trazer rios de lições doutrinárias e precedentes
jurisprudenciais. Quando mais não seja, eles invocam a hermenêutica e a exegese
para afirmar ou negar algo.
Quantos
jornalistas, porém, conhecem essas palavras? Até juiz de futebol se põe a
pontificar, afirmando algo que os hermeneutas e os exegetas já aboliram há
tantos lustros: “a lei é clara”. Quando alguém, naqueles idos e vividos, disse
que cessat in claris interpretatio, houve quem dissesse: “mas eu só saberei se o texto da norma jurídica é claro depois de
interpretá-lo”.
Já
mostrei a bobagem disso, mas volto ao tema.
a) Pênalti contra o time A. Antes de o jogador do time B tocar na bola,
um jogador do time A invade a área, o que é proibido. O jogador B, que não
notou isso, bate a falta e a bola entra. O juiz anula o lance por causa da tal
invasão. Agiu ele corretamente?
b) Pênalti contra o time A. Antes de o jogador do time B tocar na bola,
um jogador do time B invade a área, o que é proibido. O jogador B bate a falta
e a bola passa por cima da trave. O juiz anula o lance por causa da invasão.
Agiu corretamente?
c) Pênalti contra o time A. O goleiro do time A é advertido pelo juiz de
que deve permanecer sobre a linha que demarca o campo, sob o travessão. O
goleiro, entretanto, afastando-se, fica além dessa linha. O jogador do time B
bate a falta e a bola entra. O juiz anula o lance por causa da má posição do
goleiro. Agiu corretamente?
d) Jogo final de campeonato. Um dos times vence por 3 a zero. Chegando o
segundo tempo, aos 43 minutos, o árbitro assinala à mesa que dará 2 minutos de
prorrogação. Agiu corretamente?
Uma regra não é fruto do capricho do
legislador. Ou, pelo menos, devemos considerar que não o seja. Ela surge com
alguma finalidade, em face da necessidade de disciplinar determinados
comportamentos humanos, sejam eles considerados genericamente (“não matar”)
sejam eles considerados especificamente (“o advogado deve comportar-se com
lealdade no processo”). Quando analisamos uma regra com os olhos nessa
finalidade dizemos que estamos fazendo uma interpretação teleológica, como
sabemos todos, mas os comentaristas de futebol não o sabem.
Quando diz que o goleiro deve ficar
sobre a linha de gol, o que a regra quer impedir é que ele, avançando campo
adentro, diminua o espaço no qual o cobrador do pênalti poderá meter a bola,
pela redução da visibilidade do atacante. Até uma criança sabe que será
impossível fazer o gol na cobrança do pênalti se o goleiro estiver a um metro
do cobrador. Se o goleiro resolver aumentar o campo visual do atacante,
problema do goleiro e do respectivo time. Anular o gol será “beneficiar o
infrator”, como dizem eles. Em latim se diria: nemo allegare turpidudinem
suam potest”.
Da mesma forma, se quem deu margem à
nulidade do lance pertence ao time cujo atacante chutou a bola fora do gol,
anular o lance subsequente será, mais uma vez, “beneficiar o infrator”. O mesmo
se diga se, ao contrário, quem deu margem à tal nulidade foi o jogador do time
que sofreu o gol de pênalti. Em latim: Utile per inutile non vitiatur.
Quanto à prorrogação do jogo, ela tem
uma finalidade: compensar as interrupções havidas, na suposição de que, não
houvessem elas ocorrido, o resultado do jogo poderia ser outro. Só que a
possibilidade de um time fazer três gols em dois minutos é materialmente
impossível. Lá dizia o latim: Nemo tenetur ad impossibilia.
Um lembrete final: para quando
o bandeirinha (hoje se diz “juiz auxiliar”) deixa de marcar o impedimento que,
nas circunstâncias não era claro, o princípio jurídico, que todo bandeirinha
deveria conhecer, será este: in dubio, pro ludo. Ou seja, na dúvida,
segue o jogo, como berra um dos locutores da TV. E deixe a torcida chiar, já
que ela não sabe latim.
Pois a Folha de S.Paulo vem de
publicar comentário do jornalista Hélio Schwartzman, intitulado “Garfando a
Portuguesa”, que demonstra aonde pode chegar o atrevimento da ignorância.
Sem falar em exegese nem em
hermenêutica, coisas que, pelo jeito desconhece, afirma o articulista: “Em
qualquer caso, futebolístico ou jurídico, para chegar a uma solução que a
maioria das pessoas classificaria como justa é preciso fazer referência a um
conjunto de regras não escritas que chamamos de bom senso.”
A “cultura” desse jornalista,
pese seu nome de família, certamente não lhe permitiu conhecer o que aconteceu
na Alemanha quando “a maioria das pessoas” concordou, explicita ou
implicitamente, com a depuração da raça ariana. Pelo jeito ele também
desconhece a existência do Tribunal de Nuremberg, no qual até juízes foram
julgados e condenados, quando mais não fosse, porque haviam agido com “bom
senso”.
Antes o mesmo jornalista havia
cometido esta pérola: “Não dá para aplicar todas as regras a todos o tempo
todo. Fazê-lo transformaria nossas vidas num inferno.”
Em suma, ele não distingue as
normas jurídicas das normas meramente éticas. Procuro agir eticamente desde que
me levanto até o momento de voltar para a cama e posso afirmar ao tal
jornalista que nem por isso minha vida é um inferno. Ao contrário, convivo com
pessoas educadas e todos nós estamos convencidos de que a única maneira de
progredirmos pessoal e coletivamente é “não fazermos ao próximo o que não
gostaríamos que ele nos fizesse”.
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