16 dezembro 2013

As sandálias de cada um

Ne sutor ultra crepidam.”

 Diz-se que jornalista é um profissional que tem de discorrer sobre o que sabe e também sobre o que ignora. Est modus in rebus meus caros, como se dizia no meu tempo. Ou, em linguagem de hoje, devagar com o andor que o santo é de barro.
Agora que o Supremo Tribunal Federal se pôs a mostrar que em espingarda velha, bundinha de criança e cabeça de juiz não dá para confiar, pois jamais saberemos o que sairá dali nem quando e, em consequência, os jornalistas descobriram algo chamado “voto vencido” e, em consequência, descobriram uma coisa chamada “embargos infringentes” e, em consequência, que uma decisão definitiva nem sempre é tão definitiva assim. as bobagens “jurídicas” pululam na imprensa falada a escrita. Se juiz do STF pode inventar, por que eu não hei de poder? Pouco importa dizer que um juiz, especialmente de uma Corte Superior, não faz afirmação alguma sem trazer rios de lições doutrinárias e precedentes jurisprudenciais. Quando mais não seja, eles invocam a hermenêutica e a exegese para afirmar ou negar algo.
Quantos jornalistas, porém, conhecem essas palavras? Até juiz de futebol se põe a pontificar, afirmando algo que os hermeneutas e os exegetas já aboliram há tantos lustros: “a lei é clara”. Quando alguém, naqueles idos e vividos, disse que cessat in claris interpretatio,  houve quem dissesse: “mas eu só saberei se o texto da norma jurídica é claro depois de interpretá-lo”.
Já mostrei a bobagem disso, mas volto ao tema.
a) Pênalti contra o time A. Antes de o jogador do time B tocar na bola, um jogador do time A invade a área, o que é proibido. O jogador B, que não notou isso, bate a falta e a bola entra. O juiz anula o lance por causa da tal invasão. Agiu ele corretamente?
b) Pênalti contra o time A. Antes de o jogador do time B tocar na bola, um jogador do time B invade a área, o que é proibido. O jogador B bate a falta e a bola passa por cima da trave. O juiz anula o lance por causa da invasão. Agiu corretamente?
c) Pênalti contra o time A. O goleiro do time A é advertido pelo juiz de que deve permanecer sobre a linha que demarca o campo, sob o travessão. O goleiro, entretanto, afastando-se, fica além dessa linha. O jogador do time B bate a falta e a bola entra. O juiz anula o lance por causa da má posição do goleiro. Agiu corretamente?
d) Jogo final de campeonato. Um dos times vence por 3 a zero. Chegando o segundo tempo, aos 43 minutos, o árbitro assinala à mesa que dará 2 minutos de prorrogação. Agiu corretamente?
        Uma regra não é fruto do capricho do legislador. Ou, pelo menos, devemos considerar que não o seja. Ela surge com alguma finalidade, em face da necessidade de disciplinar determinados comportamentos humanos, sejam eles considerados genericamente (“não matar”) sejam eles considerados especificamente (“o advogado deve comportar-se com lealdade no processo”). Quando analisamos uma regra com os olhos nessa finalidade dizemos que estamos fazendo uma interpretação teleológica, como sabemos todos, mas os comentaristas de futebol não o sabem.
Quando diz que o goleiro deve ficar sobre a linha de gol, o que a regra quer impedir é que ele, avançando campo adentro, diminua o espaço no qual o cobrador do pênalti poderá meter a bola, pela redução da visibilidade do atacante. Até uma criança sabe que será impossível fazer o gol na cobrança do pênalti se o goleiro estiver a um metro do cobrador. Se o goleiro resolver aumentar o campo visual do atacante, problema do goleiro e do respectivo time. Anular o gol será “beneficiar o infrator”, como dizem eles. Em latim se diria: nemo allegare turpidudinem suam potest”.
Da mesma forma, se quem deu margem à nulidade do lance pertence ao time cujo atacante chutou a bola fora do gol, anular o lance subsequente será, mais uma vez, “beneficiar o infrator”. O mesmo se diga se, ao contrário, quem deu margem à tal nulidade foi o jogador do time que sofreu o gol de pênalti. Em latim: Utile per inutile non vitiatur.
Quanto à prorrogação do jogo, ela tem uma finalidade: compensar as interrupções havidas, na suposição de que, não houvessem elas ocorrido, o resultado do jogo poderia ser outro. Só que a possibilidade de um time fazer três gols em dois minutos é materialmente impossível. Lá dizia o latim: Nemo tenetur ad impossibilia.
Um lembrete final: para quando o bandeirinha (hoje se diz “juiz auxiliar”) deixa de marcar o impedimento que, nas circunstâncias não era claro, o princípio jurídico, que todo bandeirinha deveria conhecer, será este: in dubio, pro ludo. Ou seja, na dúvida, segue o jogo, como berra um dos locutores da TV. E deixe a torcida chiar, já que ela não sabe latim.
Pois a Folha de S.Paulo vem de publicar comentário do jornalista Hélio Schwartzman, intitulado “Garfando a Portuguesa”, que demonstra aonde pode chegar o atrevimento da ignorância.
Sem falar em exegese nem em hermenêutica, coisas que, pelo jeito desconhece, afirma o articulista: “Em qualquer caso, futebolístico ou jurídico, para chegar a uma solução que a maioria das pessoas classificaria como justa é preciso fazer referência a um conjunto de regras não escritas que chamamos de bom senso.”
A “cultura” desse jornalista, pese seu nome de família, certamente não lhe permitiu conhecer o que aconteceu na Alemanha quando “a maioria das pessoas” concordou, explicita ou implicitamente, com a depuração da raça ariana. Pelo jeito ele também desconhece a existência do Tribunal de Nuremberg, no qual até juízes foram julgados e condenados, quando mais não fosse, porque haviam agido com “bom senso”.
Antes o mesmo jornalista havia cometido esta pérola: “Não dá para aplicar todas as regras a todos o tempo todo. Fazê-lo transformaria nossas vidas num inferno.”
Em suma, ele não distingue as normas jurídicas das normas meramente éticas. Procuro agir eticamente desde que me levanto até o momento de voltar para a cama e posso afirmar ao tal jornalista que nem por isso minha vida é um inferno. Ao contrário, convivo com pessoas educadas e todos nós estamos convencidos de que a única maneira de progredirmos pessoal e coletivamente é “não fazermos ao próximo o que não gostaríamos que ele nos fizesse”.
 

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