“A luz negra de um destino cruel
ilumina o teatro sem cor
onde estou representando o papel
de palhaço do amor”.
ilumina o teatro sem cor
onde estou representando o papel
de palhaço do amor”.
(Nelson Cavaquinho e Amâncio Cardoso)
Recebo texto enviado por uma psicoterapeuta, jovem e inteligente, que escreve como gente grande e discorre sobre um caso que tem no consultório. É, sem tirar nem por, o enredo do filme Kramer vs. Kramer. Conhece? Meryl Streep é a mãe que abandona o marido, papel do Dustin Hoffman, com quem deixa o filho. Tempos depois, a Meryl volta à cidadezinha onde ficaram o marido e o filho, e reivindica a guarda da criança. “Os fatos que me levaram a sair de casa não existem mais e, portanto, eu tenho o direito de ter o filho de volta” peticiona ela ao juiz. Você deferiria o pedido da Meryl?
Em primeiro lugar, não resisto ao lugar comum: “a vida imita a arte, minha cara”. A jovem psicóloga ri, como quem diz, “pra mim você vem dizer isso?” Em segundo lugar, a nossa Meryl brasileira declara que é má esposa. Como mãe, não é melhor. Ela emprega o verbo no tempo presente e justifica que, por ser má, o filho tem motivos para não querer procurá-la, pois, embora morem na mesma cidadezinha e mesma rua, distante uma casa da outra não mais do que quatro quarteirões, o filho nunca veio visitá-la. E você tem ido visitá-lo? “Claro que não. Ele não gosta de mim. Mas eu tenho muita saudade dele.” Esclarece que o marido jamais se opôs a que ela entrasse na casa, mas, ao contrário, tem insistido com ela para ir visitar o filho, tentar reatar o laço primitivo. A nossa Meryl insiste no qualificativo “eu sou má” para justificar a rejeição que diz sofrer. Mas quer que a psicóloga lhe faça um favor: que procure a juíza que decidirá seu pedido, mostrando a ela quem de fato a consulente é. “Se eu disser a ela que você é má como mãe e má como esposa, você acha que mesmo assim ela lhe dará razão?” indaga a psicóloga. “Acho que sim, pois ela é mulher e mulher entende dessas coisas. Foi por isso que procurei outra mulher para me orientar” responde a paciente.
Esses são os dados que trago à nossa reflexão. Note-se, em primeiro lugar, que a queixosa não diz que agiu de modo inadequado como esposa e como mãe. Ela se qualifica, em termos genéricos, introjetando, como dizem os psicólogos, um conceito que, evidentemente, lhe foi passado por alguém com autoridade para julgá-la: “eu sou má”. Ao mesmo tempo, ela não vê isso como impedimento suficiente para ter a seu lado o filho, que ela não consegue ir visitar, mesmo residindo ambos na mesma rua. O que importa, segundo esse raciocínio, não é o fato de ela ser má, mas o fato de ser mãe. Que é ser mãe?
Qualquer um de nós, homem ou mulher, tem aptidão para jogar futebol. Ser um Pelé ou uma Marta são outros três a zero. Você se disporia a botar uniforme, calçar chuteira e ficar correndo daqui para lá por noventa minutos? Matar no peito um chute, dominar a bola e driblar um adversário ou uma adversária? Levar um carrinho e levantar-se em seguida, depois do spray mágico trazido pelo atendente médico?
Todas as mulheres têm aptidão para ser mãe. É o que se diz por aí, acenando com o que ocorre no reino animal. Claro que o fato de uma leoa ou uma ursa branca abandonar o filho doente no meio do mato ou naquela imensidão gelada, quando ele mais precisa de cuidados, não é levado em conta. Como quer que seja, a fêmea é programada para isso: procriar. Com a mulher ocorre algo um pouco mais complexo, principalmente nos dias que correm. Além de desempenhar o papel de companheira, amante, confidente e secretária, como são todas as esposas em relação a seu marido, ela deve cuidar da prole, da cozinha, da arrumação da casa e ainda responder pelo expediente no escritório, na loja ou na fábrica onde trabalha. As focas, as leoas e as pingüins fêmeas foram dispensadas desses encargos.
Outrora, o patrimônio, isto é, a aquisição de recursos para o sustento da família, era encargo do homem (patris munus) enquanto à mulher tocava assumir os encargos domésticos decorrentes do matrimônio (matris munus). Quando a mulher se deixou cair no conto da emancipação feminina e, com isso, pôs-se a imitar o homem, ela acabou ficando com os encargos da maternidade e também com parte ou com a totalidade dos encargos da paternidade. Eis a ironia dos tempos modernos.
Todos nós conhecemos médicas, balconistas, advogadas e artistas de TV que não deveriam estar a interpretar o papel que escolheram no chamado teatro da vida. Há nas novelas belas moças cariocas interpretando papel de paulistas sem conseguir escapar dos seus RRs e XXs que utilizam quando estão longe das câmeras. Ou bem mudem de atividade ou não aceitem esse tipo de papel. O que não se pode aceitar é que, em lugar de colocarem no rosto a máscara do personagem (per sonare, como se fazia no teatro grego, quando a voz soava através de uma máscara), queiram colocar sua própria máscara no rosto do personagem, como fazem os canastrões, no palco e na vida. Como dizia o Paulo Autran, precisei ensaiar a vida toda para interpretar com naturalidade.
Carl Rogers, autor de On Becoming a Person: A Therapist's View of Psychotherapy e que lecionou durante muitos anos em Faculdade de Psicoterapia, nos EUA, indagava a si mesmo quais seriam os requisitos para que alguém pudesse clinicar nessa área. Sua conclusão: a faculdade pode dar ao aluno noções teóricas e alguma experiência adquirida nos chamados laboratórios, mas não tem como dar sensibilidade a quem não traz esse pré-requisito. E, a seu ver, não é possível termos um bom psicoterapeuta sem esse requisito básico. Nem uma boa juíza, nem uma boa advogada, nem uma boa balconista, digo eu.
Quais seriam, então, os requisitos para que alguém interpretasse o papel de mãe, meu caro Carl? Todos nós já ouvimos mãe de primeiro filho responder, ao ser indagada quando virá o segundo: “E eu sou louca? Passar por tudo aquilo outra vez? Jamais!” Algumas não dizem bem isso mas é isso que pensam. É fácil imaginar o que será a vida sexual daquele casal, pois, maiores que sejam os cuidados, o risco de nova gravidez sempre estará rondando. E tome frigidez!
É claro que o problema não está na má personalidade daquela mulher. Simplesmente ela não consegue ser a mãe que gostaria de ser, da mesma forma como outras mulheres não conseguiriam acertar um chute numa bola ou sensibilizar-se diante do drama de um cliente que a procure, como médica, advogada, psicóloga ou que tais. Ao tomar consciência disso, ela certamente não insistirá em ser médica, ou advogada, ou balconista. Ou mãe, por que não?
Poderá, no entanto, vir a ser uma excelente médica quem não consegue ser uma razoável mãe. Por que não? Se ela tiver tido a graça de casar-se num templo católico, certamente ela terá ouvido que a mulher nada mais é do que a parte mínima de um homem, uma mísera costela, que, por maior que fosse, foi dele retirada durante o sono sem que ele percebesse isso quando acordou. Mais insignificante do que isso só se Eva fosse elaborada com material extraído do dedão do pé esquerdo do Adão. E não tenha dúvida que isso não foi tudo o que ela ouviu naquela ocasião festiva. O sacerdote certamente comparou a esposa à Igreja, donde o dever dela de submeter-se, sem tugir, nem mugir, nem fugir, dia e noite a seu Senhor. Falo da esposa.
Por motivos profissionais, ainda não posso manifestar-me oficialmente sobre o mérito da questão trazida pela consulente, nem adiantar sua opinião sobre o belo caso que tem nas mãos. Lembro a ela que certa ocasião ouvi de uma senhora um comentário feito aos presentes, diante de duas meninas, ambas irmãs. “Esta é a menina mais bonita que já vi na vida” disse ela. Depois, notando a presença da irmã, completou: “E esta outra menina é muito boazinha.”
Com essa minha mania de tirar conclusões, tive ímpetos de mostrar àquela senhora o que ela havia dito. A primeira menina não precisa preocupar-se em ser “boa”, o que quer que isso signifique, para ser aceita pela comunidade a que pertence. No limite, pode até ser “má”, que sua beleza compensará isso. Já a irmã, ai dela se, além de feia (ou, “não tão bonita”), ainda tiver o atrevimento de ser “não boa” (para não dizer “ser má”). Vai purgar no inferno em vida!
Aliás, não é verdade que ser mãe é padecer? Para dourar a pílula, diz-se que isso se dará “no Paraíso”. Antes ou depois da morte? É, acima de tudo, desfibrar fibra por fibra o coração. Prazer mesmo, nenhum, até porque, como gozava o Vinicius, “filhos? melhor não tê-los!”
Nenhum comentário:
Postar um comentário