No Malecón,
pessoas ainda conversam, debruçadas sobre a mureta larga, onde um e outro
atrevido senta-se, admirando, pela milésima vez, a água que, tal como as
pessoas que por ali passam, nunca é a mesma. Viejos coches trafegam sonolentos em ambos os sentidos. Fords e
Packards que testemunham tempos idos ou tempos que insistem em ficar, em
imagens tão impensáveis como um desfile de mamutes ou desses megalossauros que
o cinema faz renascer das cinzas antidiluvianas. No ar, o eterno e enjoativo
cheiro de charuto.
A
limpeza da rua destoa das paredes enegrecidas das casas, que lembram velhos
mineiros que, chegando do trabalho famintos, sentam-se à mesa sem mesmo
passarem pelo chuveiro, fosse embora ele apenas uma lata de banha vazia com providenciais
furos nos fundos, suspensa a uma altura conveniente para recolher a água
provinda da bica. E as crostas acumulando-se no rosto e nos braços,
incorporando-se ao corpo, para sempre, tatuagens com figuras abstratas a
registrar o passar do tempo. Assim o amarelo das fachadas, já descascadas, mais
pelo desleixo dos moradores do que pelo inexorável rato que tudo come, o tempo.
O que é de muitos não é de ninguém, não é isso?
A
janela do sobrado em cuja soleira apoio os cotovelos também traz nas venezianas
as onipresentes marcas do mesmo rato, o minúsculo roedor que nada deixa ficar
como era, como diz a sabedoria hindu. Uma ou duas palhetas já deixaram o posto
há algum tempo, vencidas pelo cansaço, sem que houvesse outras de plantão para
substituí-las. O que resta de vidros na janela está surpreendentemente limpo,
ainda que discutível seja sua utilidade, já que o vento contorna o obstáculo
sem a mais mínima cerimônia.
Na
sala, o relógio na parede testemunha, na imobilidade dos seus ponteiros, o
tempo que parou lá fora, por desnecessário. Como se quisessem mostrar a
inutilidade de seus movimentos, diante da identidade entre o ontem e o amanhã.
É um relógio simpático, sextavado, imponente em sua imobilidade absoluta, com o
tampo de vidro limpíssimo, fruto dos cuidados de quem faz o que pode para
conservar aquelas peças arqueológicas. Como um taxidermista que diariamente
escova os dentes inúteis dos seus animais empalhados.
Um
móvel envidraçado, estrategicamente postado sob o aposentado marcador do tempo,
portas de vidro translúcido, cujo largo bisotê multiplica os escassos objetos
lá dentro guardados. Um bule com uma pintura bizarra, tendo no bocal um friso
dourado; cinco xícaras de café com os respectivos pires, todos com a mesma
pintura campestre e o mesmo arremate dourado do objeto maior. Alguns outros
objetos anônimos passam despercebidos pelo olhar do visitante, em sua
insignificância estética. Talvez uma geladeira sem marca, que, se fosse aberta,
mostraria toda sua inutilidade, no vazio de suas prateleiras.
Sobre
a peça, um impensável vaso de louça com a boca levemente lascada e um ainda
mais impensável conjunto de flores plásticas, cores desbotadas e um repugnante
perfume de bolor. Quem as teria plantado ali? Quando? A que título? Para
remate, uma toalhinha de renda, já amarelecida, cujo bico pende além e abaixo
do vaso.
Repare
o chão. São tábuas largas, enceradas certamente com sebo animal e lustradas com
os pés envoltos em improvisadas luvas de algodão. Em frente ao desbotado sofá,
um tapete ainda mais desbotado, a sugerir que muitas noites ali foram passadas
em conversas intérminas, cujo conteúdo só as paredes conhecem. Sobre que
falariam? Sobre quem conversariam? Seriam conversas descuidadas, entre um gole
e outro de rum, ou sussurros, ditos entre um lance e outro de olhos para os
lados, como se os espiões pudessem surgir do nada num átimo de repente,
brotados da parede?
A
mesinha no canto e a luminária claramente improvisada, pois ninguém venderia um
objeto daquele formato e acabamento, completam a decoração do ambiente, algo
próximo de uma cela franciscana, ou uma instalação de algum Braque cubano. Na
falta da imagem do santo, a fotografia do bravo guerreiro e seu grito de guerra:
hay que endurecer sin perder la ternura jamás! Também poderia
ser hace de mi señor los brazos y los piés de tu misericordia.
No
quarto anexo, a cortina de voal baila solitária para uma platéia de fantasmas,
uma sinistra dança do ventre por força da brisa que vem do mar distante. O
colchão largo, posto diretamente sobre o chão, sugere a presença de um casal na
casa. Ao menos naquelas dependências da casa. Um armário, apinhado de coisas impróprias
a um quarto de dormir, demonstra que a casa do casal tem como limite as paredes
do quarto. Não me atrevo a tocar em nada, como quem teme que o toque das mãos
produza danos irreparáveis naquelas memórias.
Lembro-me
vagamente dos sonos longos que ali passei, quando a companhia justificava, ou
nas noites de insônia, com um puro entre os dedos, saboreando sua
fumaça dançarina. Em que pensava o jovem idealista entre uma tragada e outra do
longo e saboroso charuto? No futuro é que não estariam seus pensamentos, pois jamais
fui sonhador. No passado? Ainda menos, pois sempre fui pragmático.
Noto,
porém, que esse pragmatismo hoje assemelha-se a Fords e Packards que circulam
pelo Malecón da minha mente, e que os rolos do charuto que subiam naquela época
estão sendo substituídos por dois corregozinhos mornos que lentamente buscam
seu caminho pelo acidentado terreno do meu encarquilhado rosto, como se descessem
as encostas da longínqua e saudosa Sierra Maestra.
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