15 abril 2012

Law & order

“Demência na prisão é um fenômeno ainda pouco comentado nos EUA, mas que está crescendo com rapidez e muitas das prisões do país não estão preparadas para lidar com ele. É uma consequência não prevista das políticas de ‘tolerância zero’ com a criminalidade. Cerca de 10% dos 1,6 milhão de presidiários nos EUA cumprem prisão perpétua, enquanto outros 11% receberam penas de mais de 20 anos.” (Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 14/04/2012)

Quem disser que sala de espera de consultório médico ou de dentista nada tem a ver com cultura merecerá minha total desaprovação, pois está redondamente enganado. Não saberia contar de quantos fatos importantíssimos já tomei conhecimento em razão daquelas revistas que ali somos praticamente obrigados a folhear. Ainda agora fiquei sabendo, graças a uma dor de dente que me levou ao consultório do Pedro Paulo, que a princesa Diana sofreu um acidente fatal. O carro, aparentemente dirigido por um motorista alcoolizado, colidiu contra um poste ou um barranco, a reportagem não esclarece isso muito bem. Daqui a alguns meses talvez eu fique sabendo se o motorista teve culpa ou não, dúvida que me assalta no momento. É só ter uma nova dor de dente. O importante para mim não é a data, mas o fato. Não era assim que aprendíamos história na escola?


Creio que o leitor não conhece, como eu não conhecia até minha última visita ao cardiologista, o John Mendez. Nem jamais dele ouviu falar, tanto quanto eu. A julgar pelo prenome, cuida-se de cidadão norte-americano, já que reside nos Estados Unidos da América do Norte. O nome de família, no entanto, deixa claro que se cuida de descendente de um dentre tantos latinos que subiram o continente para proporcionar melhor padrão de vida aos seus familiares, cruzando o rio Grande. Suporá o leitor que talvez estejamos diante de um desses jogadores de baseball que, vindos de Cuba ou São Domingos, fazem carreira no Eldorado do esporte profissional praticando esse jogo de taco que nos parece tão enfadonho e nos remete à infância. 


Ou um desses atores, como um Antonio Rudolfo Oaxaca, que, vindo do México, encantou o mundo com os personagens marcantes que interpretou em Hollywood tanto quanto na Europa. Não conhece? A senhora nunca ouviu falar do Rudolfo Oaxaca? Pois saiba que um dos personagens mais famosos por ele interpretado foi Zorba, o grego, sob o nome artístico de Anthony Quinn. Que, aliás, era também um conceituado pintor. De telas, acrescento. E que publicou uma autobiografia na qual nos dá uma pálida ideia do que é ser ator famoso. Você termina o livro adorando ser anônimo.
Informo, porém, que Mendez não é artista. O motivo que o levou ao noticiário televisivo foi, talvez, uma expressão que teria tudo para enquadrar-se nessa categoria, a julgar pelos feitos de um Pollock, por exemplo, aquele que brincava de pintar, salpicando tela, chão e parede de borrifos de tinta. Pena que as autoridades norte-americanas assim não pensassem.


De fato, a arte de John Mendez (arte naquele sentido que nossas mães e avós empregavam para rotular nossa falta de modos) foi pouco menos do aquilo que fez Miró, ao aproveitar-se de fezes humanas para dar a uma de suas telas a cor exata que procurava, como revela em sua longa entrevista publicada como A Cor dos Meus Sonhos. Pois a arte de Mendez consistiu nisto: deu, por motivos que não vêm ao caso, uma solene cusparada no rosto de um policial. Algo que Nélson Rodrigues, comentando incidente semelhante ocorrido num Flamengo versus Canto do Rio, ocorrido nos idos de 1957, chamou de “cusparada metafísica”, muito embora naquele longínquo episódio o alvo não fosse uma autoridade, nem intra nem extra-campo, mas simplesmente a bola, que, humilhada pelo deboche, desviou-se da trave, num lance que “envergonharia até mesmo uma cambaxirra”, no dizer do mesmo cronista.
Mendez, por força do inoportuno gesto, foi levado a julgamento, como seria alguém que fizesse o mesmo por aqui. Talvez aqui isso fosse conceituado como um crime de injúria (que os técnicos chamam, no caso, de injúria real, pelo contato físico entre o que arremessou o autor e a vítima) ou, em derradeiro caso, um desacato, a girafa do Código Penal, ao juízo do Edmeu Carmesini, crimes para os quais a pena imposta por um juiz brasileiro seria a imposição de multa, ou, na pior das hipóteses, prestação de serviços à comunidade. 


O azar de Mendez é que ele não reside no Brasil, onde os juízes costumam aplicar em casos tais o chamado princípio da proporcionalidade, que aprenderam, ironicamente, com os signatários da Declaração Norte-americana dos Direitos Fundamentais (na verdade, um conjunto de emendas introduzidas na Constituição Federal dos EUA). Lá, uma cusparada metafísica como essa custou ao cucaracha condenado nada menos do que o resto de sua vida. Prisão perpétua, eis a pena que, em nome da necessidade de se manter a ordem e fazer obedecer a lei, foi imposta ao cuspidor. Foi o que aprendi na sala de espera do consultório do Feltrin.


A revista não informa que aqueles soldados norte-americanos que impuseram tanto sofrimento a prisioneiros paquistaneses foram condenados, pelos equilibradíssimos juízes norte-americanos, a apenas alguns meses de recolhimento. 


Nada a ver com isso, mas vem-me à lembrança, sei lá por que, episódio envolvendo nosso famigerado Lampião. Diz a crônica que, doidinho pra fumar, o cangaceiro entrou num boteco e se dirigiu ao primeiro conterrâneo que ali encontrou, indagando com sua voz grave: “Vosmicê fuma?”. E o conterrâneo, todo gaguejante, pelo sim, pelo não, respeitando a autoridade (coisa que nosso cucaracha não fez), não teve dúvida: “Até hoje fumei sim, senhor. Mas, se o capitão quiser, eu paro agorinha mesmo”. 


Quando for aos Estados Unidos da América do Norte não se esqueça dessa historinha.



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