25 março 2011

A Coragem de Criar



“Quod natura relinquit imperfectum, ars perficit.”(*)
(provérbio alquimista)


Em seu celebrado História da Arte, H. W. Janson procura, inicialmente, conceituar a Arte. Páginas e páginas depois você conclui que ele não explicou nada. Aí você tenta entender a diferença entre artista e artesão. O artista possui originalidade, coisa que falta ao artesão, diz ele. O problema é conceituarmos originalidade. Talvez a obra do artista seja única, enquanto o artesão repete a obra vezes sem conta, sugere ele. Se você considerar que uma gravura é igual a outra gravura da mesma série, voltaremos ao ponto de partida. Aliás, depois que se incluiu a fotografia na categoria de obra artística, adeus peça única, coisa para uma Mona Lisa ou uma Vitória de Samotrácia. Aliás, nosso Vik Muniz, que se bandeou para os EUA há mais de vinte anos, fala, em sua auto-biografiaas “origens dos múltiplos e a multiplicidade de originais”, até porque ele é fotógrafo. E conclui: quem adquire uma peça única feita por Van Gogh, que, aliás, não vendeu mais do que dois quadros em vida, está mais interessado em revendê-la com bom lucro amanhã ou depois do que apreciá-la como obra de arte. Mesmo porque ela ficará guardada na caixa forte de algum banco, longe de olhares curiosos, nem que sejam os de seu atual dono.
“Todo dia ele faz tudo sempre igual”, diria o Chico. Na biografia do artista catalão Joan Miró há algo assim: ele acordava, ficava na cama uma hora ou mais, programando mentalmente o que iria fazer durante aquele dia. Depois disso levantava-se, tomava seu café com leite, ia até o estúdio, onde se dirigia a um dos quadros inacabados, no qual ele trabalhará naquele dia. Alguns desses quadros inacabados esperavam há anos esse novo contato, incentivado pelo passeio mental dele naquele dia. “É hoje!” certamente era o que lhe dissera seu interlocutor intergalático em sua reflexão matinal nesse dia.
Graças a essas tais reflexões matinais, que não são privilégio do Miró, descobri, a duras penas, que sou artista e quanto isso dói. Quem contribuiu muito para essa constatação foi o Rollo May, num dos seus livros, de leitura obrigatória para todo aquele que ainda não assumiu os pendores criativos que acha que tem. O que a natureza deixou imperfeito, a arte aperfeiçoa, diziam os alquimistas. Não é isso que todos nós, que nos rotulamos artistas, fazemos, assumindo, falsamente, um tom de modéstia? Ou passando-nos falsamente por tema de capa de revista badalada, para impressionar os incautos? Pergunte ao Zé Francisco e à Vanessa, pais do Felipe, a estrela recém-nascida a que se refere a fake cover da revista famosa aí de cima.
Sim, meus caros, como todo artista é um insatisfeito com a obra de Deus, é necessária muita coragem para completar o que Ele deixou incompleto. Aliás, nós, artistas, estamos convencidos de que Ele produziu essa incompletude exatamente pensando em nós. Para nos dar oportunidade de completá-la. Estivesse tudo pronto e que faríamos com nossa eterna e insolúvel insatisfação?
Quando aquela famosa senhora dirigiu-se ao Matisse, reclamando que ele havia pintado, num de seus quadros, uma mulher azul, ela, certamente, estava com o pensamento ligado na obra acabada.  
Deus locuto, causa finita. Ele, porém, estava completando o que faltava na Natureza. Ao dizer a ela “minha senhora, isto não é uma mulher, é uma pintura” ele deixava claro isso: “Deus faz do jeito d’Ele; eu faço do meu”.
O artista é alguém que poderia muito bem intitular-se um pontífice, tanto quanto o Papa. É, também ele (somos, também nós, eis o que eu queria dizer), um construtor de pontes. Pontes de corda, que ele atira longe, na esperança de que as garras dela se enganchem na sensibilidade de quem vê seus quadros, toca suas esculturas, ouve sua música, lê seus textos, declama seus poemas. E é por essa escada, nem sempre firme, nem sempre segura, que o destinatário toma conhecimento da obra de arte, que lhe produzirá um sorriso, ou um esgar, pouco importando quem seja o autor de quê. A obra de arte, quando o é, fala por si. Encantar-se diante de um pôr-de-sol sobre o mar de um Turner ou horrorizar-se diante de uma Guernica? Faça sua escolha. 
O fato é que não há texto sem leitor, nem música sem ouvinte. Quem faz o artista não é sua obra, é o outro, aquele que entrará em contato com ela. Imagine um pintor fazendo quadros e mais quadros, numa ilha deserta. Ele enlouquecerá, certamente.
Só um artista será capaz de imaginar o que seja você se perder num dos labirintos do I Tribunal de Alçada Civil de São Paulo e, num repente, chegar a um pequenino hall, graciosamente decorado, e ver sobre uma mesinha encostada na parede uma escultura de bronze que lhe é familiar, obra de que, como um pai desnaturado, você já se havia esquecido, tanto tempo faz que ela partiu, cativada pelo presidente daquela Casa, que a pedira em casamento. Nesse momento você entende, emocionalmente, o que significa a expressão feed-back. É um retorno que te alimenta. Poderíamos dizer de nossas obras de arte aquilo que o Gibran Kalil disse de nossos filhos: “Ils viennent par vous, mais non de vous ; et bien qu’ils soient avec vous, ce n’est pas à vous qu’ils appartiennent”. Elas surgem por nosso intermédio, mas não nos pertencem; ainda que elas estejam conosco, não é a nós, os artistas, que elas pertencem. Acho que nem o Gibran tinha percebido isso.
Ou quando, na sala de espera de seu psicoterapeuta, você ouve da secretária a surpreendente pergunta: “O senhor tem escrito muitas poesias?” Tudo que eu consigo pensar é: Essa mocinha evidentemente está a me confundir com o Paulo Bomfim, que nem sei se é cliente do Gilberto Franco. São tantos os juízes que já encontrei na sala de espera do meu analista que encontrar ali o chamado “poeta de São Paulo”, funcionário honorário do Tribunal de Justiça, não me surpreenderia nem um pouco. Educadamente dou continuidade ao diálogo e ela, um incrível sorriso no rosto, abre uma gaveta, tira dali um pedaço de papel, que desdobra cuidadosamente. Em seguida, lê o poema Tristeza 
Tudo o que eu consigo fazer é chorar. Nunca imaginei que meu poema ficaria tão bonito sendo recitado por uma sensível jovem secretária de um médico psiquiatra.
Artista sofre!
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(*) "O que a Natureza fez imperfeito, a arte aperfeiçoa."


09 março 2011

O fim



“Já encarei a morte seis vezes. E seis vezes a morte desviou seu olhar e me deixou passar. É claro que ela vai acabar me levando, como faz com todos. É só uma questão de quando e como. Aprendi muito com essas confrontações, especialmente sobre a beleza e a doce pungência da vida, sobre a preciosidade dos amigos e da família, e sobre o poder transformador do amor. Na verdade, quase morrer é uma experiência tão positiva e construtora do caráter que eu a recomendaria a todos, não fosse, é claro, o elemento irredutível e essencial do risco.” ( Carl Sagan, Bilhões e bilhões, falando da doença que acabaria por levá-lo, aos 62 anos de idade )



Dizem que os chineses (quais deles?) choram quando nasce alguém e se alegram quando alguém morre. Sempre me perguntei por que motivo os cristãos, que dizem acreditar na vida eterna, a qual, é lícito esperar, será muito melhor do que esta, não têm esse mesmo procedimento. Até onde vai a fé do cristão numa vida eterna? Como é possível que nos alegremos sabendo tudo o que passará na vida aquela criança inocente e indefesa que acabou de ser posta no mundo? Tirando a nossa alegria de termos ali um brinquedinho de carne e osso para nos entreter, tudo o que espera essa criança são as dificuldades naturais da vida. Sorte dela que ainda não lê jornal nem vê noticiário de televisão.

Encontrei, há muitíssimos anos, um amigo que eu não via há muito tempo. À pergunta “como vai você?” tentei brincar: “cada dia mais longe do berço e mais perto da sepultura.” Nunca mais nos falamos, pois ele ofendeu-se terrivelmente com o meu “pessimismo”. E o que eu disse era algo absolutamente verdadeiro, válido para mim, para ele e para todos nós. Em compensação, certa ocasião fui à missa de corpo presente de uma senhora, nossa vizinha, que tinha vários filhos, um deles sendo um frei franciscano, que rezou aquela missa. Muitos dos presentes ficaram chocados quando ele disse que estava tendo sua segunda alegria em menos de seis meses. A primeira alegria fora pela celebração, por ele, da missa em ação de graças pelas bodas de ouro de seus pais. A segunda era agora, quando se comemorava a passagem da alma de sua mãe para o local que, certamente, Deus lhe havia reservado. Quantas vezes você já ouviu isso ser dito em uma missa de corpo presente?

O medo da morte é algo absolutamente irracional. Não confundir isso com a quebra do dever de cuidar da própria saúde, que está em qualquer código de ética, coisa que até as plantas não desconhecem. Mais absurdo ainda é quando a pessoa que tem esse medo pânico da morte fuma, bebe e expõe constantemente sua vida a riscos de toda natureza. Qual a lógica?

Veja a coisa por este ângulo: pense num pedaço de corda. Essa corda começa à sua esquerda e termina à sua direita, alguns metros mais adiante. Como se chama o começo da corda? Chama-se começo. E como se chama o fim da corda? Chama-se fim. Tanto o início como o final da corda são corda. Se há um nada antes do início da corda é porque esse nada não se confunde com o início da corda. Se há um nada depois do fim da corda é porque o fim da corda não pertence ao nada, mas à corda.

Ora, a vida tem um início, pouco importando aqui as discussões científicas a respeito de quando ocorre esse momento. O que importa é que há um momento em que a vida tem início. E a vida tem um fim, pouco importando também qual o método que vamos utilizar para atestar que ela terminou. O início da vida se chama “nascimento” e o fim da vida se chama “morte”. Logo, tanto o nascimento como a morte pertencem à vida. São o primeiro e o último momento de uma coisa contínua chamada vida individual. O que veio antes e o que virá depois são outros trezentos e cinqüenta.

Dou-lhe outro exemplo: você está dentro da sala, olhando a paisagem lá fora através da janela. Nisso aparece um avião, vindo da esquerda, cruza a frente do seu rosto e desaparece à sua direita. De onde ele veio? Você não sabe. Para onde ele foi? Você também não sabe. Tudo o que existe de visível é o caminho que ele fez desde o batente esquerdo da janela até o batente direito da janela. O mais é o desconhecido. Você sabe que ele levantou vôo em algum lugar, em algum horário, mas não tem conhecimento exato sobre isso. E sabe que ele voltará ao solo, mais cedo ou mais tarde. Onde? Quando? Como? Você também não sabe.

Será difícil imaginar a vida como esse vôo?

Tive ao longo de minha já longa vida inúmeros encontros com a morte. E sempre saí desses encontros mais fortalecido, mais preparado para seguir adiante. A primeira vez se deu quando eu ainda não tinha dez anos de idade. Havia ido ao sítio de meu padrinho e dois primos, pouco mais velhos do que eu, o Zé Carlos e o Zezinho, brincavam em um barco a remo, dentro de um açude, palavra que eu, que jamais saíra da capital, nem conhecia. A certa altura o barco virou e um dos remos veio até a borda do açude, impulsionado pelas ondas que a agitação que eles faziam na água havia produzido. Abaixei-me para pegar o remo, senti tontura e caí n’água. Meus primos, entretidos com suas brincadeiras aquáticas, nem repararam nisso. Quando fui retirado da água, já estava inconsciente. Fui reanimado por um empregado do sítio. Que faltou para que eu morresse? Apenas que eu parasse de respirar e meu coração parasse de bater. Eu posso dizer que vi a morte.

Eu e o Jung temos muita coisa em comum, sendo uma delas essa perigosa atração pela água. Mais tarde, já adulto, encontrava-me no Rio de Janeiro, com suas praias tremendamente traiçoeiras, pois são do tipo “praia de tombo”, diferentemente do que ocorre nas praias paulistas. Você está caminhando em direção ao mar e, de repente, falta chão sob seus pés. Entrei num redemoinho desses, contra o qual era inútil tentar lutar. Moço ainda, nadei acompanhando o movimento da água, abrindo cada vez mais o círculo, até que consegui sair de sua influência e chegar à areia. Com as pernas tão bambas que não conseguia ficar de pé. Nova sobrevida, a sugerir que eu ainda não havia feito tudo o que fui chamado a fazer por aqui.

Mais recentemente, já avô, novamente vou a uma tranqüila praia do Rio de Janeiro. Novo redemoinho e eu já sem a juventude e o fôlego que me salvariam daquele próximo afogamento. Eu não tinha condições físicas mas tinha cérebro. “Help! Help!” foi o que se ouviu por ali, grito a que os salva-vidas cariocas estão acostumadíssimos. Em fração de segundos, um deles se aproximou de mim e, mantendo uma distância de segurança, atirou-me uma bóia amarrada numa corda. Agarrei a bóia, fui arrastado até a praia, onde lhe agradeci encarecidamente o auxílio. Em inglês, é claro.

Para não me alongar muito, pois matéria é que não falta, falo de umas cólicas intestinais esquisitas que me vinham aborrecendo há alguns meses. Um exame de colonoscopia revela que há um pólipo bastante alterado ali. Em português claro: câncer. Cinco horas de cirurgia e trinta pontos no abdômen e mais dois dias de repouso, lá estou eu caminhando pelos corredores do Sírio-libanês, fazendo piadinhas com colegas de “Cooper”. Vali-me desta vez, confesso, de uma lição (mais uma!) que me fora dada pelo Ranulfo: “Diarréia se chama diarréia, estrabismo se chama estrabismo. Só para o câncer os cretinos insistem em por apelido.” Valeu-me também a lição de minha mestra, filha e psicóloga Cláudia: “Geralmente, a sombra é maior do que o bicho!” Agora é enfrentar seis meses de quimoterapia e seus efeitos colaterais quase-insuportáveis e estarei novinho em folha, concluí. Para então poder morrer com saúde.

Por que trago tal assunto para este espaço? Porque ainda há entre nós essa cultura estranha de achar que, mascarando a realidade, a vida fica mais fácil. É claro que não fica. Ouvi de uma senhora que caminhava comigo pelos corredores do hospital a estranha frase: “Nós não merecemos isso!” Pensei em indagar-lhe o que ela entendia por “merecimento”. Onde está o certificado de garantia que nos dá a certeza de que nossa vida durará no mínimo 80 anos e que as doenças só atingirão nossos vizinhos e nossos desafetos?

Repare bem: quase sempre nós perdemos muito do nosso tempo preocupados com o futuro ou lamentando o passado. O presente, com a alegria proporcionada pelo fato de saber que um tumor canceroso agora está fora do meu corpo, pode passar batido.

Nossa vida, estou convencido, é aquilo que nós fazemos dela.