“Quod natura relinquit imperfectum, ars perficit.”(*)
(provérbio alquimista)
Em seu celebrado História da Arte, H. W. Janson procura, inicialmente, conceituar a Arte. Páginas e páginas depois você conclui que ele não explicou nada. Aí você tenta entender a diferença entre artista e artesão. O artista possui originalidade, coisa que falta ao artesão, diz ele. O problema é conceituarmos originalidade. Talvez a obra do artista seja única, enquanto o artesão repete a obra vezes sem conta, sugere ele. Se você considerar que uma gravura é igual a outra gravura da mesma série, voltaremos ao ponto de partida. Aliás, depois que se incluiu a fotografia na categoria de obra artística, adeus peça única, coisa para uma Mona Lisa ou uma Vitória de Samotrácia. Aliás, nosso Vik Muniz, que se bandeou para os EUA há mais de vinte anos, fala, em sua auto-biografia, as “origens dos múltiplos e a multiplicidade de originais”, até porque ele é fotógrafo. E conclui: quem adquire uma peça única feita por Van Gogh, que, aliás, não vendeu mais do que dois quadros em vida, está mais interessado em revendê-la com bom lucro amanhã ou depois do que apreciá-la como obra de arte. Mesmo porque ela ficará guardada na caixa forte de algum banco, longe de olhares curiosos, nem que sejam os de seu atual dono.
“Todo dia ele faz tudo sempre igual”, diria o Chico. Na biografia do artista catalão Joan Miró há algo assim: ele acordava, ficava na cama uma hora ou mais, programando mentalmente o que iria fazer durante aquele dia. Depois disso levantava-se, tomava seu café com leite, ia até o estúdio, onde se dirigia a um dos quadros inacabados, no qual ele trabalhará naquele dia. Alguns desses quadros inacabados esperavam há anos esse novo contato, incentivado pelo passeio mental dele naquele dia. “É hoje!” certamente era o que lhe dissera seu interlocutor intergalático em sua reflexão matinal nesse dia.
Graças a essas tais reflexões matinais, que não são privilégio do Miró, descobri, a duras penas, que sou artista e quanto isso dói. Quem contribuiu muito para essa constatação foi o Rollo May, num dos seus livros, de leitura obrigatória para todo aquele que ainda não assumiu os pendores criativos que acha que tem. O que a natureza deixou imperfeito, a arte aperfeiçoa, diziam os alquimistas. Não é isso que todos nós, que nos rotulamos artistas, fazemos, assumindo, falsamente, um tom de modéstia? Ou passando-nos falsamente por tema de capa de revista badalada, para impressionar os incautos? Pergunte ao Zé Francisco e à Vanessa, pais do Felipe, a estrela recém-nascida a que se refere a fake cover da revista famosa aí de cima.
Sim, meus caros, como todo artista é um insatisfeito com a obra de Deus, é necessária muita coragem para completar o que Ele deixou incompleto. Aliás, nós, artistas, estamos convencidos de que Ele produziu essa incompletude exatamente pensando em nós. Para nos dar oportunidade de completá-la. Estivesse tudo pronto e que faríamos com nossa eterna e insolúvel insatisfação?
Quando aquela famosa senhora dirigiu-se ao Matisse, reclamando que ele havia pintado, num de seus quadros, uma mulher azul, ela, certamente, estava com o pensamento ligado na obra acabada.
Deus locuto, causa finita. Ele, porém, estava completando o que faltava na Natureza. Ao dizer a ela “minha senhora, isto não é uma mulher, é uma pintura” ele deixava claro isso: “Deus faz do jeito d’Ele; eu faço do meu”.
O artista é alguém que poderia muito bem intitular-se um pontífice, tanto quanto o Papa. É, também ele (somos, também nós, eis o que eu queria dizer), um construtor de pontes. Pontes de corda, que ele atira longe, na esperança de que as garras dela se enganchem na sensibilidade de quem vê seus quadros, toca suas esculturas, ouve sua música, lê seus textos, declama seus poemas. E é por essa escada, nem sempre firme, nem sempre segura, que o destinatário toma conhecimento da obra de arte, que lhe produzirá um sorriso, ou um esgar, pouco importando quem seja o autor de quê. A obra de arte, quando o é, fala por si. Encantar-se diante de um pôr-de-sol sobre o mar de um Turner ou horrorizar-se diante de uma Guernica? Faça sua escolha.
O fato é que não há texto sem leitor, nem música sem ouvinte. Quem faz o artista não é sua obra, é o outro, aquele que entrará em contato com ela. Imagine um pintor fazendo quadros e mais quadros, numa ilha deserta. Ele enlouquecerá, certamente.
Só um artista será capaz de imaginar o que seja você se perder num dos labirintos do I Tribunal de Alçada Civil de São Paulo e, num repente, chegar a um pequenino hall, graciosamente decorado, e ver sobre uma mesinha encostada na parede uma escultura de bronze que lhe é familiar, obra de que, como um pai desnaturado, você já se havia esquecido, tanto tempo faz que ela partiu, cativada pelo presidente daquela Casa, que a pedira em casamento. Nesse momento você entende, emocionalmente, o que significa a expressão feed-back. É um retorno que te alimenta. Poderíamos dizer de nossas obras de arte aquilo que o Gibran Kalil disse de nossos filhos: “Ils viennent par vous, mais non de vous ; et bien qu’ils soient avec vous, ce n’est pas à vous qu’ils appartiennent”. Elas surgem por nosso intermédio, mas não nos pertencem; ainda que elas estejam conosco, não é a nós, os artistas, que elas pertencem. Acho que nem o Gibran tinha percebido isso.
Ou quando, na sala de espera de seu psicoterapeuta, você ouve da secretária a surpreendente pergunta: “O senhor tem escrito muitas poesias?” Tudo que eu consigo pensar é: Essa mocinha evidentemente está a me confundir com o Paulo Bomfim, que nem sei se é cliente do Gilberto Franco. São tantos os juízes que já encontrei na sala de espera do meu analista que encontrar ali o chamado “poeta de São Paulo”, funcionário honorário do Tribunal de Justiça, não me surpreenderia nem um pouco. Educadamente dou continuidade ao diálogo e ela, um incrível sorriso no rosto, abre uma gaveta, tira dali um pedaço de papel, que desdobra cuidadosamente. Em seguida, lê o poema Tristeza.
Tudo o que eu consigo fazer é chorar. Nunca imaginei que meu poema ficaria tão bonito sendo recitado por uma sensível jovem secretária de um médico psiquiatra.
Artista sofre!
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(*) "O que a Natureza fez imperfeito, a arte aperfeiçoa."