Que você faria se conhecesse um cirurgião que não conseguisse manipular um bisturi? Permitiria que ele operasse alguém de suas relações de amizade? Confiaria nele? Contrataria para trabalhar em seu hospital?
Todos nós temos nossas limitações, sejam elas físicas ou psíquicas, como é de conhecimento óbvio. A questão está na superação dessas deficiências, para tentar evitar que elas nos impeçam de utilizar nossos demais atributos. Ou, lamentavelmente, tentarmos desempenhar atribuições incompatíveis com essas limitações. Como um advogado cego pode examinar os autos de um processo? Ou ler a tela de um computador? Eis uma pergunta que eu me fazia até o dia em que recebi um livro com dedicatória do autor, que eu conhecia apenas de nome: Francimar Torres. Esperto a mais não poder, agradeci a oferta e arrisquei: “Por sua letrinha arredondada, aposto que você é arquiteto”. E ele: “Errou. Sou advogado e cego. A letrinha é da minha secretária”. Graças a ele, aprendi muito sobre as habilidades dos cegos, dos quais eu conhecia alguma coisa graças ao Instituto Padre Chico, no bairro do Ipiranga, onde judiquei por uns bons anos. Além de jogarem futebol com bola de guizo, os alunos do tal instituto circulavam pelo bairro, geralmente aos pares, fazendo toque toque com a bengala branca. Certa ocasião, uma dessas duplas se encontrava num ponto de ônibus, em frente a um bar, onde houve forte discussão e um disparo com arma de fogo. Os dois cegos foram arrolados por algum sádico como testemunhas dos fatos (testemunhas “visuais”?). Na apuração de certa eleição, a turma apuradora começou a anular cédulas de votação aos magotes. Advertido por um fiscal de partido, fui ver o que estava acontecendo e fui esclarecido pelo presidente da mesa: “Todas essas cédulas só têm furinhos”. É claro que ele jamais havia ouvido falar em Louis Braille.
Fui durante breve tempo voluntário no Lar Escola São Francisco, uma entidade aqui de São Paulo que abriga pessoas com deficiência física, principalmente crianças, com a finalidade de prepará-las para terem uma vida tão normal quanto possível. Conheci ali algumas pessoas notáveis, como um casal de paraplégicos que se mantinha vendendo chiclete junto aos semáforos. Casaram-se e tiveram um filho, que corria pela casa. Com minha autoridade de “pai adotivo” deles, meti cadeados de braço longo em todas as janelas da casa, pois se aquela criança sapeca resolvesse subir numa cadeira para olhar o mundo lá fora pela janela, nenhum dos pais chegaria a tempo de impedir um desastre. Tentei convencê-los a terem emprego com registro, mas não deu certo, pois eles ganhavam muito mais no emprego informal. Fui fiador do contrato de locação do imóvel onde residiam e jamais fui importunado pelo locador. Disseram-me que tinham condição de adquirir imóvel, mas não tinham como comprovar renda, o que os obrigava a morar em imóvel alheio.
Ali também conheci o “Caiaque”, um rapaz que tinha apenas uma perna. A outra era uma improvisação feita de madeira, que se apoiava em uma base mais larga, que parecia um barquinho. Daí seu apelido. Como membros superiores ele tinha dois semi-braços, cada um com um único dedo, enorme. Tinha lábio leporino e voz roufenha. Jogava futebol, mesmo porque, segundo as regras ali vigentes, ele poderia “chutar” com a muleta. Certa ocasião, durante uma partida, a bola tocou naquele dedo único de um dos braços. O juiz marcou falta, que, na linguagem popular, ainda se chama “hands”. Ele protestou veementemente, com aquela voz rouca: “Que rends é esse se nem mão eu tenho?”
Certa ocasião ele me disse que estava prestando concurso para laboratorista. Dentre suas atribuições estava a manipulação de microscópio. Constrangidamente, indaguei-lhe como ele faria isso.”Dá pra encarar, dá pra encarar” foi sua resposta.
Escrevi tudo isso para preparar o espírito do leitor para um comentário a respeito de nossa seleção de futebol, que acaba de entrar para o Guiness Book graças ao feito notável de não haver consignado um único e mísero gol na cobrança de penalties.
Em lugar disso, vou preferir um eloqüente silêncio. Ao som de um violão tocado por um artista excepcional, que não é argentino, nem uruguaio, nem paraguaio, mas nicaraguense.
Bom proveito, com direito a bis.