17 dezembro 2012

O fim do mundo


“Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar”. Assis Valente
 

Estamos chegando a 21 de Dezembro de 2.012, quando, finalmente, segundo os sábios Maias, o mundo vai acabar.

A discussão em torno do fim do mundo é uma conversa de bêbados semelhante à discussão sobre a existência ou inexistência de Deus. Os antigos diziam que isso era o mesmo que discutir o sexo dos anjos. Começa que, lá como cá, há necessidade de estabelecerem-se previamente os conceitos que serão utilizados na discussão. Que você entende por “anjo”? Que você entende por “Deus”? Que você entende por “mundo”? No caso concreto, se considerarmos “mundo” apenas o nosso planeta, a conversa é uma; se considerarmos que a palavra se refere a todo o universo, a conversa evidentemente será bem outra. Vá aos dicionários e veja o que eles dizem. Aliás, há quem já fale em multiversos e não apenas uni.

Se eu lhe perguntar se você gosta mais das mangas pequenas do que das mangas grandes, qual será sua resposta? Se eu lhe disser que na carpintaria da esquina há um sargento prendendo uma tábua na bancada, o que você imaginaria? Pois saiba que ali, unindo a serra elétrica à rede de força, há um cabo que nunca foi soldado. Deu pra entender? Eu falava em frutas ou em indumentária? Em militares ou em aparelhos de carpintaria?

Para limitar o alcance do nosso bate-papo de botequim, aceitemos que a palavra “mundo” se refira apenas a nosso planeta. Há quanto tempo nasceu ele?

Os sumérios, que se estabeleceram entre os rios Tigre e Eufrates (a Mesopotâmia, ou “terra entre rios” de nossas aulas de História da Civilização, lembra?) muito antes de muita coisa acontecer ali (5.300 a 2.330 a.C.), dentre outras coisas inventaram a escrita, com a vantagem de valerem-se de tábuas de barro, em lugar de eliminar florestas como passou a fazer a “civilização”, muitíssimo antes do nascimento do Gutenberg, para publicar livros feitos de papel. Eles descobriram que o céu era uma colcha de veludo escuro, com alguns furinhos, em número de sete. Era o primeiro contato dos homens com os deuses: Vênus, deusa do amor; Marte, deus da guerra; Saturno, que devorava os próprios filhos, ad cautelam tantum, pois, muito antes do Vinicius, já pregava: “Filhos? Melhor não tê-los”; Júpiter, o manda-chuva e manda-raios; o Sol e a Lua. Esses deuses foram concretizados nos dias da semana (settimana ou “sete manhãs”), em diversas línguas: Saturday (dia de Saturno), Sunday (dia do Sol), Monday (dia da Lua), Mardi (Martis dies ou dia de Marte), Mercredi (Mercurii dies ou dia de Mercúrio), Jeudi (Jovis dies ou dia de Júpiter), Vendredi (Veneris dies ou dia de Vênus), para não falarmos no Sábado (dia de Sabbat ou dia de repouso e oração) e no Domingo (dies dominicus ou dia do Senhor). E, no centro de tudo, nós e nosso umbigo.

À medida que a civilização suméria caminhava para o desaparecimento, como ocorre com todos os seres vivos, surgia não apenas uma outra civilização, mas um novo estilo de governo: a demagogia, baseada num casamento entre o divino e o profano, tendo como pano de fundo a certeza de que o povo, antes como hoje, gosta mesmo é de pão e circo. Panis et circensis, como se dizia no falecido Tropicalismo.

De fato, o rio Nilo apresentava fluxos e refluxos constantes. Subindo as águas, elas fecundavam áreas enormes, que se tornavam agriculturáveis quando baixavam as águas, o que significava fartura de alimento. A esperteza do governante (faraó) levou-o a assumir os méritos pelo fenômeno climático, pois ele era nada mais nada menos do que a divindade encarnada. Isso durou mais de 3.000 anos, 100 anos em média para cada dinastia. E nós ainda reclamamos dos poucos anos em que somos tapeados pelos nossos atuais demagogos! Fugindo os escravos hebreus do Egito, liderados, ao que se diz, por Moisés, o exemplo aprendido com o faraó frutificou, sendo posto em prática pelo líder dos fugitivos.

Aos trancos e barrancos a ciência avançou, driblando as resistências religiosas e tentando explicar a história de nosso mundinho com base em algo que não fossem as revelações feitas aos iluminados, fossem eles faraós, fossem pastores de rebanhos, televisivos ou não, fossem churrasqueiros de incréus.

Assim, muito embora a grande explosão inicial (o tal big bang, que, na realidade, nem fez barulho nem era grande) tenha ocorrido há cerca de 13,7 bilhões de anos, o nosso Sol teria surgido há “apenas” 4,6 bilhões de anos. Dele se destacaram pedaços, que foram estabelecendo suas rotas, uns mais e outros menos próximos da “nave-mãe”. Dois desses corpos tinham rotas incompatíveis. Hoje eles são identificados por Terra e Theia, um nome de que você talvez jamais tenha ouvido falar. Quando o Sol comemorava aí os seus 50 milhões de anos, aqueles dois planetas colidiram, espalhando cacos e poeira para todo lado. A rotação da Terra, cujo volume a tornava  bem maior do que a extinta Theia, era tão grande que, a exemplo do que faz uma máquina de produzir algodão doce num parque de diversões, catalisou aqueles elementos ultra-aquecidos, que, contatando entre si, foram-se amalgamando, até reunirem-se em um único corpo celeste. Estava criada a Lua, presa à Terra por um fio invisível chamado “força gravitacional”. Agora, o nosso planeta não se esforçava apenas para produzir o seu giro em torno de um eixo, carregando seu peso. Foi-lhe adicionado o peso da Lua, o que levou a velocidade da sua rotação a reduzir-se a 1/6 do que era antes, algo que os cientistas, muito tempo depois, chamariam de “dia”.

Como tem sido a vida desse nosso “mundo” desde então? Tem sido uma eterna competição entre vida e morte. Aquela bola de fogo inicial foi esfriando graças, principalmente, a impactos de meteoros gelados, quando ainda não havia uma “rede de proteção” contra isso envolvendo o planeta, a tal camada de ozônio. Paradoxalmente, com as erupções vulcânicas, a Terra foi esfriando, pois as nuvens fantásticas que se formavam barravam a chegada de raios solares, levando ao congelamento a água existente. A era do gelo, ao contrário do que se supõe, não foi uma só, nem foi tão divertida como sugere um simpático desenho animado de nossos dias. Os seres vivos que foram aparecendo ao longo do tempo acabavam desaparecendo, ante a inclemência desse sobe/desce da temperatura. Nem a família dos mega sauros aguentou. Depois de passearem pelo planeta por mais de 160 milhões de anos (até no Brasil e na Argentina foram encontrados fósseis relativos a eles, pois não havia oceano separando continentes), bastou que um meteoro colidisse contra a Terra, há 65,5 milhões de anos, onde hoje é Yucatan, no México, para que a alteração climática acabasse com cerca de 80% dos seres vivos existentes na Terra. Só a cratera produzida tinha 160 quilômetros de diâmetro.

Chegando ao mês de dezembro, estamos às vésperas do 6° fim do mundo ocorrido em nosso planeta, o que quer que isso signifique.

A afirmação de que o homem está, com sua irresponsabilidade, destruindo o planeta é mais uma demonstração de nossa megalomania e egocentrismo. A irresponsabilidade do homem está diminuindo a quantidade de oxigênio respirável por aqueles que, como nós, necessitam dele. Ocorre que nem todos os seres vivos dependem do oxigênio para viver, o que significa que nós iremos e eles ficarão. Estamos aumentando o número de seres humanos de forma irresponsável, mesmo sabendo ser impossível produzir alimento para 7.000.000.000 de bocas. Estamos concentrando riqueza, em lugar de distribuí-la, criando formas violentas de sua obtenção, seja considerando-se os crimes individualmente, seja considerando-os a nível de nação contra nação. Ou seja, nós estamos destruindo a própria humanidade, a nossa própria espécie, coisa que nenhum ser vivo fez até hoje.

Estamos simplesmente confirmando o que diz a sabedoria popular: Deus perdoa sempre, o homem perdoa às vezes, mas a Natureza perdoa nunca.

O que surpreende é que, se desde a colisão entre Theia e a Terra (cerca de 4,5 bilhões de anos atrás) até este momento se tivesse passado apenas um dia, ou seja, 24 horas, o aparecimento do Homo sapiens teria ocorrido quando faltavam apenas três segundos para a meia-noite. Ou seja, o meio ambiente da Terra teria vivido 23 horas, 59 minutos e 57 segundos sem o ataque perpetrado pela nossa “civilização”.

Simplesmente incrível essa nossa capacidade patológica de destruir, que o velho Freud associava à tanatofilia, ou paixão pela morte.

Pelo sim, pelo não, aí vai o texto. Sei lá onde estarei no dia 21.
 

01 dezembro 2012

Santos advogados e advogados santos

 
"OAB vai ao STF para excluir advocacia da lei de lavagem de dinheiro".
                                                                                       (dos jornais)

Eça costumava dizer que era advogado, "como toda a gente", mesmo porque era filho de José Maria d'Almeida de Teixeira de Queirós, magistrado, formado em Direito por Coimbra e que, ironia das ironias, foi juiz instrutor em processo movido contra o escritor Camilo Castelo Branco, de quem Eça viria a tornar-se amigo e colega na arte da escrita. Como advogado foi um excelente romancista e diplomata nas horas vagas.
Também foi advogado Afonso Maria Antônio João Cosme Damião Miguel Gaspar de Liguori, que nasceu em Nápoles, nos idos de 1.696. Diz a lenda que, de tão inteligente, formou-se em Direito precocemente e, já aos 19 anos, prestava as provas de admissão à Advocacia, algo que já existia no século XVII, saiba a senhora. Desgostoso em face de uma derrota inesperada de um cliente numa causa que antecipadamente considerara ganha, em lugar de desconfiar da honestidade do juiz preferiu ver naquilo a mão de Deus. Retirou-se da Advocacia e passou a dedicar-se a ações sociais. Acabou canonizado, como Santo Afonso de Liguori, depois de haver fundado a Congregação dos Redentoristas que, aliás, em nosso país, são, entre outras coisas, os responsáveis pela Basílica de Nossa Senhora Aparecida, dita padroeira do Brasil. Antes, porém, deixou ele um decálogo com aquilo que imaginava serem os deveres do Advogado:
I - Não aceitar causas injustas, porque são perigosas para as suas consciência e dignidade.
II - Não defender uma causa usando de meios ilícitos.
III - Não cobrar do cliente senão aquilo que com ele convencionou.
IV - Tratar da causa, que lhe fora afeta, com zelo e dedicação.
V - Estudar conscienciosamente a defesa dos direitos do cliente.
VI - Não prejudicar o cliente com negligência ou demoras, e, se por acaso causar-lhe algum prejuízo, deve ressarci-lo, sob pena de pecar contra a Justiça.
VII - Implorar o auxilio de Deus, porque Deus é o primeiro defensor da Justiça.
VIII - Não aceitar causas superiores a seu talento ou às suas forças.
IX - Ser sempre justo e honesto no exercício da profissão.
Para outros biógrafos, o tal decálogo não era composto de nove mas de apenas sete mandamentos:
I - Nunca deve o advogado patrocinar uma causa injusta: a isso se opõem sua honra e sua consciência.
II – O advogado não deve defender uma causa, ainda que justa, com meios injustos e ilícitos, devendo suas defesas ser verídicas, sinceras e respeitosas.
III- O advogado é obrigado a estudar as peças do processo, a fim de tirar delas os argumentos mais eficazes para a defesa de suas causas, fazendo-o com tanto cuidado como se tratasse de seus próprios interesses.
IV- Para lograr êxito em sua defesa, o advogado deve implorar o auxílio de Deus, primeiro protetor da justiça.
V- O advogado merece censura se encarrega de processos que ultrapassem seus talentos ou suas forças, ou se ele prevê que o tempo lhe faltará para preparar a defesa de sua causa e mesmo assim a aceita.
VI- Se, por sua demora ou negligência, o advogado perde a causa, ou acarreta prejuízo a seu cliente, ele é obrigado a indenizá-lo, além de restituir-lhe o valor de despesas supérfluas.
VII- A justiça e a probidade devem ser as duas companheiras do advogado, que deve amá-las como a menina de seus olhos.
Gabriel de Rezende Filho, Professor de Direito Processual na Faculdade do Largo de S. Francisco, que em seu manual transcrevia esses deveres, ironicamente ali anotava: "Se Afonso de Liguori cumpriu, como advogado, todos estes mandamentos, mereceu certamente ser canonizado".
Outro santo ligado ao Direito foi Ivo Hélory de Kermartin, que viveu no século XIII. Foi membro do Tribunal Eclesiástico de Paris e, nessa condição, era tido como um habilíssimo conciliador. Numa época em que era heresia falar em droit de l’homme et du citoyen, Ivo de Kermartin era mais absolvidor e esquerdista do que um Ranulfo Mello Freire. Daí o apelido que lhe deram, possivelmente os promotores de Justiça, um dos quais talvez de nome Barbosá, de advogado dos pobres. Curiosamente, talvez por desconhecer História, alguém sugeriu um juiz para patrono da classe dos Advogados, quiçá nomeado (por quem?) em obediência a algum quinto constitucional, a partir de uma lista em que Afonso de Liguori não poderia estar ausente.
E até o nosso Ruy botou sua colher de plástico nesse angu quente, baixando, agora sim, um decálogo de dez mandamentos:
I- Não desertar a justiça, nem cortejá-la.
II - Não lhe faltar com fidelidade, nem lhe recusar o conselho.
III - Não transfigurar da legalidade para a violência, nem trocar a ordem pela anarquia.
IV - Não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínio a estes contra aqueles.
V - Não servir sem independência à Justiça, nem quebrar da verdade ante o poder.
VI - Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade.
VII - Não subtrair-se à defesa das causas impopulares, nem à defesa das perigosas quando justas. Onde for apurável um grão, que seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo do amparo judicial.
VIII - Não proceder, nas consultas, senão com a imparcialidade real do juiz nas sentenças.
IX - Não fazer da banca, ou da ciência, mercatura.
X - Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade.
Note-se que, enquanto lá tínhamos decálogos de nove ou sete mandamentos, aqui é um decálogo de doze, pois dois deles são dúplices.
Já a nossa Ordem dos Advogados, atenta à desejável canonização dos colegas de Eça, Afonso e Ruy, está sendo mais pragmática: vamos canonizá-los em vida!
Para quem, como juiz, viu safadezas serem praticadas não só por advogados como por juízes e promotores, até mesmo com perda do cargo, que dizer? Eu mesmo fui mandado, mal ingresso, substituir certo juiz, afastado do cargo e depois aposentado, porque no dia 1° de Abril de 1964 hasteou no fórum, a meio pau, o chamado auriverde pendão. Em outra ocasião assumi certa comarca depois que o titular foi removido para a capital por haver sido descoberto que ele era sócio de um advogado na comarca. "Logo na comarca, doutor?" talvez lhe tenha dito o corregedor. Fui mais tarde promovido para outra comarca, com a incumbência específica de "restaurar o prestígio da Justiça", depois que o titular foi aposentado por recusar-se a pisar no fórum durante o dia. Só trabalhava à noite o famigerado "Doutor Chiquinho Vagalume". Isso para não falar de casos envolvendo bacharéis e promotores, como o advogado que fez acrescentar no texto da procuração, abusivamente, cláusula assegurando a ele 30% de honorários. Bastava colocar uma régua sobre aquele papel para verificar (era texto datilografado) que a tal cláusula fora inserida fora do alinhamento do texto primitivo e datilografada em outra máquina. Depondo nos autos do incidente de falsidade suscitado então, a secretária dele assegurou que aquele tipo de letra pertencia à máquina dele e não à dela. Ou o procurador de Justiça que tinha cinco ou seis modelitos de parecer (repito: ainda não havia computador), com afirmações genéricas, que a secretária punha nos autos de acordo com a indicação dele. As parcas se revoltaram e eu, como relator, recebi, de uma só vez, três processos criminais que, embora cada um com suas peculiaridades, tinham pareceres praticamente idênticos assinados pelo salafrário, que, em face disso, foi convidado a aposentar-se.
Cito, a propósito, um caso bem significativo: certo desembargador do TJ/SP, homem educado, além de corretíssimo, no intervalo da sessão desculpou-se junto aos colegas que o acompanhavam, um dos quais este escriba, visto não acompanhar-nos no lanche. "É que um fazendeiro amigo meu veio trazer-me um dossiê que, segundo ele, comprova o envolvimento do juiz, do promotor, advogados e do síndico numa falcatrua de milhões, envolvendo desvio de bens da massa num processo de falência". E, certamente antecipando o que iria dizer ao tal fazendeiro: "No envolvimento dos demais eu acredito, mas do juiz eu duvido, embora não o conheça".
Lá, com manifesto exagero, bastava cobri-lo com a toga para converter um pecador em santo; agora se pretende que a conversão se opere por força do uso da beca.
Curioso é que o tal desembargador, grande latinista, sabia melhor do que nós todos, que ubi homo ibi peccatum. A quem se pretendeu beneficiar, por exemplo, com a sobrecarga de processos originários no Supremo Tribunal Federal? A quem se pretende beneficiar tentando impedir que o Ministério Público, entidade independente, apure irregularidades, deixando-se isso apenas ao critério da Polícia, entidade subordinada ao Poder Executivo, onde as mazelas pululam?
Positivamente, a OAB tem coisa mais importante com que ocupar-se, cabendo a cada advogado defender-se, como qualquer um de nós, quando eventualmente for alvo de investigação abusiva.