Ela tem uns olhinhos puxadinhos, coisa que só um anjo pode fazer nas crianças antes de elas nascerem. Esse anjo foi contratado especialmente pelos pais dela, porque, normalmente, ele só repuxa olhos de criancinhas chinesas. Os olhos da Carol foi uma gentileza especial daquele bondoso anjinho.
Os cabelos dela então, nem te digo! São rolinhos e mais rolinhos de cabelo, que, vistos de longe, parecem nuvens sapecas. E ainda tem uns rolinhos bem pequeninhos na nuca e atrás das orelhas, que estão só esperando espaço para crescerem e ficarem do tamanho dos demais.
A mãe da Carolinda penteia os cabelos da menina com muito cuidado, que é para não acordar os filhotes de beija-flor que às vezes nascem dentro daqueles cachinhos dourados. É muito comum haver ninhos de passarinho dentro dos cachinhos da Carol e se os cabelos dela forem penteados sem muito cuidado, podem-se quebrar alguns ovinhos ou serem acordados os filhotes que esperam a mãe para trazer-lhes comida. E aí é um berreiro danado.
Um dia desses, depois do jantar, os pais perguntaram aos filhos o que eles queriam ser quando crescessem. O irmão da Carol foi muito prático: “quando eu crescer eu vou querer ser adulto!”. Palmas para ele. “E você Carol?”
Os pais teriam de adivinhar qual seria a escolha feita por ela. Ela subiu na mesa, pegou um pão de queijo, tirou toda a massa de dentro daquela bolota e ficou só com a casca na mão. Aí ela cobriu o narizinho minúsculo dela com aquela casca de pão de queijo. “Adivinhem o que eu vou ser quando crescer!”
A mãe pensou bastante, olhou aquele narigão e disse: “Vai ser uma tartaruga!” Todos riram muito, pois nunca haviam visto uma tartaruga com um nariz daqueles. Essa dona Vavá, onde está com a cabeça?
O pai também arriscou: “você vai ser um pé de carambola!” Mais risos, pois ninguém jamais tinha visto carambola redonda. Seu Carlito, mas que fora!
O irmão pensou, pensou e concluiu que não dava para adivinhar só com aquela indicação. Ele queria mais. Aí ela se pôs a dar cambalhotas sobre a mesa. Agora ele já estava em condições de dar sua opinião. “Você vai ser um ventilador!” Nana, nina, não. Erraram todos.
Carol pegou uma fatia de bolo de chocolate e deu nela a maior mordida que ela conseguiu. Aquele chocolate se espalhou pela cara da menina, aumentando a boquinha dela, que agora parecia uma bocarra enorme. O pai, a mãe e o irmão viram aquilo, olharam um para o outro e chegaram à conclusão de que ela, quando crescesse seria uma comedora profissional de bolo de chocolate. Que gente sem imaginação!
Então ela abriu as pernas e os braços, formando uma enorme letra X e disse: “quando eu crescer eu vou ser palhaça!” Todos deram palmas e vivas. Os pais da Carol subiram na mesa e abraçaram a filha, contentes com a precoce vocação demonstrada por sua menina. “Grande escolha, minha filha. Médico, advogado, motorista de táxi, varredor de rua, sapateiro e costureira qualquer um pode ser. Mas palhaço não é para qualquer um. Palhaça, então, é para pouquíssimas. Parabéns! Parabéns!” E não pararam mais de dar beijos e mais beijos na pobre da Carol, que não tinha mais espaço no rosto para tantas beijocas.
Desse dia em diante, a menina passou a aprimorar sua vocação. “Não basta ter vocação, é necessário aperfeiçoar-se” dizia-lhe o pai, que era professor de algum matéria de nome complicado numa escola de nome ainda mais complicado. Deixa pra lá. O que importa é que a Carol agora não subia para seu quarto à noite, quando ia dormir, nem descia para a sala de manhã, logo que acordava, do modo como faziam as demais pessoas da casa. Ela subia e descia andando sobre o corrimão da escada. A rigor, para ela não era mais corrimão, era corripé. Quando ela já estava craque em subir e descer pelo corripé, ela dava umas piruetas enquanto subia e enquanto descia. Uma gracinha!
Outra coisa que a Carolinda fazia era ir até o supermercado andando com as mãos e tendo as perninhas esticadas para cima, com os dois pezinhos lá em cima, olhando a paisagem. Ela usava um macacão que tinha uns nove bolsos, todos eles com zíper, que era para não ficar espalhando moedas pela rua. Se você for a um supermercado e vir um par de pés passeando na altura das prateleiras, pode procurar mais embaixo que vai encontrar a carinha da Carol. A vendedora já conhece a menina e faz um pacote com as compras, colocando com todo o cuidado sobre os dois pés juntos da Carol, que assim carrega o pacote até sua casa.
Outra coisa que ela pretende fazer é brincar com malabares. Sabe o que é isso? São aquelas garrafas feitas de madeira, pintadas de branco, como se fossem pinos de jogo de boliche. É por isso que quem joga aquelas garrafinhas para cima e fica equilibrando no nariz ou na testa se chama malabarista. Alguns desses malabaristas até aparecem na rua, diante do nosso carro, quando o sinal de trânsito está com a luz vermelha para nós.
Por enquanto, ela treina com laranjas. Ela joga com três laranjas. A mão direita joga a primeira laranja para cima. Quando a laranja está lá em cima, a mão direita lança a segunda laranja. Enquanto uma está subindo, a outra já está caindo na mão esquerda. Nesse momento a mão direita lança a terceira laranja. E o processo continua. O segredo é movimentar a mão direita mais depressa do que o movimento das laranjas. Com o tempo ela vai aumentar o número de laranjas, até chegar a umas sete ou nove.
Ela tentou fazer esse malabarismo usando ovos, que são um pouco menores do que as laranjas e cabiam melhor na mãozinha dela. O resultado foi que nunca se comeu tanto omelete naquela casa como depois que ela começou esse tipo de treino. Nem ela agüentava mais tanto omelete, motivo pelo qual preferiu voltar às laranjas.
O sonho da Carol é realizar um número sensacional, desses que vão levar o nome dela para a lista dos maiores malabaristas de todos os tempos. Ela vai comprar um fio de prata muito resistente, vai amarrar uma ponta dele na canela do porteiro do teatro onde ela irá apresentar seu número. A outra ponta ela vai amarrar na batuta do maestro que ficará no palco, regendo os músicos que farão aquele tralalalalala que antecede o número final do espetáculo. Embaixo do fio esticado ficarão os boquiabertos espectadores, com seus fraques e roupas longas.
Terminado o repique do tambor, virá um silêncio enorme. Até pum de borboleta vai dar para ser ouvido, diz ela. Aí ela vem lá de fora, pede licença ao porteiro, que lhe estenderá a mão. Ela sobe no fio de prata e vem caminhando lentamente sobre ele. Um pé de cada vez. Às vezes ela finge que vai cair, só para provocar aquele Oh dos que estão vendo o espetáculo. À medida que ela caminha sobre o fio de prata, vem a parte inesperada do show: dos cachinhos dourados da cabeça dela vão saindo colibris, patativas, sabiás, tico-ticos e sanhaços, que voam em círculo por dentro do teatro. O público aplaude, sem imaginar o gran finale, que é como os artistas denominam o ponto mais alto do espetáculo: quando a Carol chega ao palco, o maestro lhe estende a mão e ela desce graciosamente apoiando-se no braço do gentil cavalheiro. Quando ela se volta para o público, do último dos cachinhos de seus cabelos sai uma arara azul, completamente azul, que dará uns vôos pelo palco, gritando “Carol!, Carol!” Depois a arara subirá, subirá, até que o seu azul se misturará com o azul do céu.
Ainda falta acertar uns detalhes finais. Depois disso ela sumirá do palco? Voltará até a porta pelo fio de prata? Ela diz que ainda tem muito tempo para decidir isso.
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