simplesmente exalam
o perfume que roubam de ti.”
(Angenor de Oliveira)
Aprendi a gostar de flores com minha mãe. Era com enorme pachorra que ela cuidava de suas samambaias de metro, com as quais conversava diariamente, enquanto despejava água nos vasos. Separava cascas e mais cascas de ovos e, depois de algum tempo, as colocava no forno aceso. Quando dali saíam, as cascas estavam estalando de secas. Minha mãe as colocava sobre um tabuleiro e, com o pau de macarrão, transformava aquilo tudo em um pó fino. Quando lavava a carne recém chegada do açougue, ela recolhia aquela água avermelhada, que misturava com o pó de casca de ovos, formando uma pasta, com a qual alimentava suas samambaias, que lhe agradeciam uns dias depois, exibindo novos rebentos.
O jardim de nossa casa era demarcado por uma fileira ovalada de buchinho, umas arvorezinhas de folhas redondas duras, que estalavam quando atiradas no fogo. Sendo devidamente aparadas, formavam um murinho verde, que delimitava as dálias e as rosas que minha ali mãe havia plantado. Dália é uma flor que me parece ter saído de moda com o tempo, pois nunca mais vi. Quanto às roseiras, serviam para minhas experiências. Com uma gilete eu fazia um T no caule da roseira maior, coisa de um centímetro cada braço. Abria as duas laterais da perna vertical do T, como se aquilo fosse um casaco de lã sem zíper, e ali colocava um “olho” que havia sido retirado, com a mesma gilete, de outra roseira. Esse “olho” era o indicativo de que ali se estava formando um novo galho, que, graças à minha cirurgia, iria nascer na outra árvore, se a operação fosse bem sucedida. Resultado: havia no jardim roseiras que tinham braços com rosas vermelhas, outros com rosas brancas e outros ainda com rosas de uma outra cor, para espanto dos que não conheciam a técnica da enxertia.
Minha mãe certamente ficaria muito feliz se soubesse (se é que não sabe) que uma de suas netas herdou seu amor pelas flores.
Por algum motivo que não sei explicar, vim a preferir as orquídeas. Li sobre as lélias, catléias, dendrobiuns, phalenopsis e paphiopediluns principalmente, se me permitem o exibicionismo, além de freqüentar a feira periódica que se realiza no bairro da Liberdade, onde se aprende tudo sobre as orquidáceas. A única exigência é que você entenda japonês. Mero detalhe, como se vê.
A flor do dendrobium é o popular “olho de boneca”; a flor do phalenopsis são como borboletas em torno de uma haste; e a flor do paphiopedilum é a popular “sapatinho de Vênus”. Embora moremos num apartamento típico de classe média, temos nas duas varandas para mais de cinquenta vasos com orquídeas. Visito diariamente uma a uma, verificando um novo botão que se está insinuando aqui, um novo ramo que está apontando ali, algum pulgão que precisa ser eliminado ou uma muda que desistiu de tentar tornar-se adulta e precisa ser substituída.
Há pessoas que preferem flores de plástico, que têm a indiscutível vantagem de não exigir essas preocupações. Você não precisa incomodar-se com os pulgões, nem com as regas periódicas, nem com uma colherinha de vitamina a cada dois meses. A vantagem maior da flor de plástico é tornar seu proprietário alguém absolutamente desnecessário. Se ele morrer, as flores não perceberão.
Pois num desses fins de semana de inverno, passamos, eu e a Maria Helena, em uma cidade do interior, na qual me chamou a atenção uma tabuleta: Orquidário. Era um espaço onde, além de ali se criarem e venderem orquídeas, há um amplo salão onde é servido um tal “chá colonial”. Número incontável de chás, à sua escolha, mais geléias caseiras, doces e bolos também feitos ali, tudo mantido por uma senhora e sua filha, ambas já grisalhas e um tanto mal-tratadas pela vida. Parecem irmãs.
Enquanto minha mulher se entretinha com os cheiros dos pacotinhos de sachês e sais de banho que ali também se fabricam, eu tomei o óbvio rumo do caramanchão, onde, certamente, me deslumbraria com as várias espécies de orquídeas ali oferecidas. Não havia ninguém lá dentro. Numa prateleira vi centenas de vasinhos de plástico, negros e vazios como a alma de um pecador. Sobre as bancadas um número incrível de vasos com orquídeas mortas, ressequidas como se tivessem chegado ontem do agreste nordestino. O mato completava a decoração do ambiente, invadindo tudo ali. Em suma: o orquidário era o reflexo do modo de ser das proprietárias. Se elas não encontram tempo para cuidar da própria aparência, como achar tempo para as plantas? O altruísmo começa pelo egoísmo, diz-nos a Ética.
Consegui descobrir, depois de muito procurar, cinco vasos, nada mais do que cinco, cujas plantas ainda respiravam. Um deles tinha uma incrível dupla de flores azuis, dois tinham meros botões sugerindo que, bem cuidados, dariam em flor, enquanto que os demais eram apenas uma promessa de flor futura, cuja cor e forma eu não poderia imaginar.
Trouxe-os para fora da estufa, tendo a impressão de que algumas das plantas que lá ficaram me acenaram as amarelecidas folhas, como a despedir-se. Ou pedindo-me socorro.
Minha mulher terminava de separar os produtos que estava a comprar e eu perguntei à filha da dona qual era o preço das orquídeas que eu havia separado. A mãe dela arregalou os olhos e quase teve uma síncope: “Mas são minhas matrizes!” Enquanto a mãe saía aflita, para encaminhar suas preciosidades de volta à prisão e ao pão sem água anterior, de onde eu as libertara há pouco, a filha explicou que era com aqueles exemplares que elas produziam novos exemplares. “Exemplares de lixo, naturalmente” foi a sutileza que me saiu da boca, para desespero da minha mulher. Tentei amainar a merecida crítica parafraseando o ex-ministro Antonio Magri: “Pois saiba a senhora que as flores também são humanas!” Fosse ela budista e naturalmente saberia o que eu quis dizer.
Cumprido o mandado de prisão, voltou até nós a tal senhora, que agora me pareceu ainda mais feia do que parecera antes do incidente. Trazia na mão uma vassoura, que eu fiquei em dúvida se ela utilizaria para me agredir ou para dar um passeio sobrevoando a cidade sentada nela. Pensei em perguntar, mas a Maria Helena certamente não aprovaria esse novo desabafo. A megera olhou-me nos olhos, bufou e embarafustou casa a dentro, talvez para preparar uma nova tabuleta, em substituição à que existia na entrada.
Se eu voltar à tal cidadezinha, sou capaz de apostar que vou dar com uma nova advertência junto à entrada do orquidário: “É proibida a entrada de cães e de amantes de orquídeas”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário