“A Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), celebrada em São José da Costa Rica,
em 22 de novembro de 1969, apensa por cópia ao presente decreto, deverá ser
cumprida tão inteiramente como nela se contém.” (Decreto n. 678, de 06 de Novembro de 1992, art° 1°)
“Toda pessoa acusada de um delito tem
direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada
sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às
seguintes garantias mínimas: (...) direito de recorrer da sentença a juiz ou
tribunal superior.” (Pacto de São José da Costa Rica, art° 8°, 2, h)
Sabe-se que a Constituição Federal contempla aquilo que os leigos
chamam de “foro privilegiado”, ao dizer, no art° 102, letras b e c, que compete
ao Supremo Tribunal Federal julgar, “nas infrações penais comuns, o Presidente da
República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios
Ministros e o Procurador-Geral da República”, bem como “nas infrações penais
comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os
Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos Tribunais
Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática
de caráter permanente”. Estranho privilégio, pois tais réus não contam com a
garantia do duplo grau de jurisdição, o que faz de tal disposição lei de
interpretação restritiva, como é de todo curial.
Como
também é sabido, quando do início do julgamento do já famoso processo 470, que
cuida do chamado “mensalão”, modo bem
brasileiro de simplificar conceitos mediante apelidos, um dos réus, que não se
enquadra em qualquer das hipóteses acima referidas, apresentou “exceção de
incompetência”, que veio a ser rejeitada pela maioria da Corte, por fundamentos
ainda não tornados públicos, mas relacionados com a “conexão de causas”, uma
vez que, cuidando-se de mais de 30 réus e cerca de 5 crimes diferentes, alguns
dos quais cometidos por associação de agentes, o juízo especial atrai todos os
processos conexos, sob pena de decisões conflitantes para fatos idênticos, o
que não condiz com o prestígio da Justiça. Demais disso, certos crimes, como o
de “quadrilha” e de “branqueamento de capital”, consta terem sido cometidos por
congressistas e não congressistas em associação. Imagine-se, por exemplo, a
formação de uma quadrilha, que, de acordo com a lei, deve ter pelo menos quatro
membros. Se a tal quadrilha de que cuida a denúncia tiver cinco membros, sendo
dois deles congressistas e três não congressistas, caso haja a divisão do
processo, para que apenas os congressistas sejam julgados pelo STF por formação
de quadrilha, estará descaracterizado tal crime, pois nem aquele tribunal pode
levar em conta réus cuja conduta está sendo apreciada pelo juízo de primeiro
grau, nem o juízo de primeiro grau pode levar em conta a conduta dos membros da
quadrilha que estão sendo julgados no STF. Assim, muito embora a lei não
ressalve o fato excepcional, a Suprema Corte, no legítimo exercício de sua
jurisdição, resolveu o impasse, dando-se excepcionalmente por competente para
julgar pessoas não enquadráveis no art° 102 da Magna Carta. Roma locuta causa finita.
Um dos
condenados, porém, teria manifestado o propósito de dirigir-se a algum tribunal
internacional, para ver reconhecido o seu direito ao duplo grau de jurisdição.
Em razão disso, juristas eméritos têm-se manifestado sobre essa possibilidade,
dentre os quais Carlos Velloso e Luiz Flávio Gomes, em resposta à indagação “A
Corte da OEA pode interferir na decisão do STF sobre o mensalão?”, feita pelo jornal Folha de S.Paulo, edição de 13 do
corrente, na seção Tendências e Debates.
Enquanto
o ex-ministro do Supremo Tribunal opta pela resposta negativa, o jurista de São
Paulo sustenta o seu cabimento.
Diz
Velloso: “O entendimento de que o Pacto de São José da Costa Rica, nos art°s 8,
h, e 25, obrigaria os Estados a prover, no caso, o duplo grau de jurisdição,
constituiria interpretação extensiva da Convenção. A doutrina internacional,
porém, adota, de regra, a interpretação restritiva dos tratados, principalmente
quando a interpretação extensiva tiver como conseqüência limitações à soberania
estatal ou a submissão do Estado a uma jurisdição internacional, arbitral ou
permanente”.
O
contrário diz Flávio Gomes: “No caso Barreto
Leiva contra Venezuela, a Corte, em decisão de 17 de novembro de 2009,
apresentou duas surpresas. A primeira é que fez valer em toda sua integralidade
o direito ao duplo grau de jurisdição; a segunda é que deixou claro que esse
direito vale para todos os réus, inclusive os julgados pelo tribunal máximo do
país, em razão de foro especial”.
E que tem
dito o nosso Tribunal Máximo sobre tal tema?
No
julgamento da Medida Cautelar em Habeas Corpus n° 109.544/BA, julgado em 09 de
Outubro de 2011, o ministro relator Celso de Mello, decano da Casa e
constitucionalista respeitadíssimo, faz referência a outro julgamento daquela
Corte. “Cabe registrar”, disse ele, “importantíssima decisão proferida pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos, em 22/11/2005, no
julgamento do ‘Caso Palamara Iribarne vs. Chile’, em que se determinou, à República do Chile, dentre outras providencias, que ajustasse, em prazo razoável, o seu ordenamento interno aos padrões internacionais sobre jurisdição penal militar.” E
continua: “Mais do que isso, a
Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Sentença proferida no ‘Caso Palamara Iribarne vs. Chile’,
determinou que a República do
Chile estabelecesse, em sua
legislação interna, limites à
competência material e pessoal
dos Tribunais militares, em ordem a que,
‘en ninguna circunstancia un civil se vea sometido a la jurisdicción de
los tribunales penales militares'”.
Seria interessante
conhecermos o caso referido, para concluirmos se tem ou não pertinência aqui.
Por falta de espaço, remetemos o leitor ao site,
onde matará a curiosidade.
O fato relevante é que,
como diz Regina Ingrid Díaz Tolosa, da Pontifícia
Universidade Católica do Chile, em artigo publicado na Revista Chilena de
Derecho, vol. 34, 2007, “nos parece
curioso que una causa que comienza con la demanda de declaración de
responsabilidad del Estado de Chile por la violación de la libertad de
pensamiento y de expresión y el derecho de propiedad, consagrados en los
artículos 13 y 21 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos, termine
con la condena al Estado de adecuar, en un plazo razonable, el ordenamiento
jurídico interno a los estándares internacionales respecto a la legislación
sobre jurisdicción penal militar, como forma de reparación.”
Imaginemos que o “Caso José Dirceu”,
como elegantemente poderíamos referir-nos ao processo 470, fosse submetido à
mesma Corte Internacional e por ela julgado. Qual poderia ser o conteúdo de tal
decisão? Quais seus efeitos práticos?
Cançado Trindade, jurista brasileiro
internacionalmente respeitado e juiz daquela Corte Interamericana, fez incluir
na decisão do “Caso Palamara Iribarne vs. Chile”, que pode ser lida no site,
seu aplauso a ela. Disse ele então: “Hace años vengo sosteniendo, en el seno de esta
Corte, mi entendimiento en el sentido del amplio alcance de los deberes
generales de protección consignados en los artículos 1 y 2 de la Convención
Americana. A mi juicio, no se viola la Convención Americana solamente y en la
medida en que se violó un derecho específico por ella protegido, sino también
cuando se deja de cumplir uno de los deberes generales (artículos 1 y 2) en
élla estipulados. Así, el deber general del artículo 1 de la Convención - de respetar y hacer respetar, sin discriminación alguna, los derechos por élla
protegidos - es mucho más que un simple accesorio de las disposiciones
atinentes a los derechos convencionalmente consagrados, tomados uno a uno,
individualmente; es un deber general que se impone a los Estados Partes y que
abarca el conjunto de los derechos protegidos por la Convención”.
Diz
ele ainda: “Tal como me permití
señalar en mi Voto Disidente en el caso El
Amparo (Interpretación de Sentencia, 1997), referente a Venezuela, ‘Un
Estado puede (...) tener su responsabilidad internacional comprometida, a mi
modo de ver, por la simple aprobación y promulgación de una ley en desarmonía
con sus obligaciones convencionales internacionales de protección, o por la
no-adecuación de su derecho interno para asegurar el fiel cumplimiento de tales
obligaciones, o por la no-adopción de la legislación necesaria para dar cumplimiento
a éstas últimas. Es llegado el tiempo
de dar precisión al alcance de las obligaciones legislativas de los Estados
Partes en tratados de derechos humanos. El tempus commisi delicti es, en mi entendimiento, el de la
aprobación y promulgación de una ley que, per se, por su propia existencia, y su aplicabilidad, afecta los
derechos humanos protegidos (...), sin que sea necesario esperar por la
aplicación subsiguiente de esta ley, generando un daño adicional. El Estado en
cuestión debe remediar prontamente tal situación, pues, si no lo hace, puede
configurarse una situación continuada violatoria de los derechos humanos (...).
Es perfectamente posible concebir una situación legislativa contraria a las
obligaciones internacionales de un determinado Estado (v.g., manteniendo uma legislación
contraria a las obligaciones convencionales de protección de los derechos
humanos, o no adoptando la legislación requerida para dar efecto a tales
obligaciones en el derecho interno). En este caso, el tempus commisi delicti se extendería de modo a cubrir todo el
período en que las leyes nacionales permanecieron en conflicto con lãs obligaciones
convencionales internacionales de protección, acarreando la obligación
adicional de reparar los sucesivos daños resultantes de tal `situación
continuada' durante todo el período en aprecio" (párrs. 22-23).”
E remata: “Por consiguiente, en la medida que el Estado
no armonice integralmente la normativa de derecho interno con los estándares
internacionales de la Convención Americana, y deje de cumplir con el deber
general de respetar y asegurar el respeto de los derechos convencionalmente
protegidos, incurre en violaciones adicionales de los artículos 1 y 2 de la
Convención. Siendo así, en el presente caso Palamara Iribarne, el Estado chileno ha violado y continúa
violando las obligaciones generales establecidas en los artículos 1 y 2 de la
Convención Americana, en la medida en que estaban vigentes en el momento en que
ocurrieron los hechos del presente caso y continúan vigentes en la actualidad,
normas de derecho interno que no son acordes con los estándares internacionales
de protección de los derechos humanos establecidos em dichos artículos de la
Convención Americana.”
Uma pergunta:
tendo a Constituição atual entrado em vigor em 1988 e havendo o Pacto de São José da Costa Rica
sido incorporado ao nosso Direito positivo, sem qualquer ressalva, em 1992,
qual o alcance, entre nós, do art° 8°, 2, h, do Pacto? Prevalecerá ele sobre a Constituiição, que lhe é anterior?
Disse o Min. Celso de Mello, relator do pedido de Extradição
n° 662-2/República do Peru, julgado em 28 de Novembro de 1996: “Sabemos
todos que tratados e convenções internacionais – tendo-se presente o sistema
jurídico vigente no país – guardam estrita relação de paridade normativa com as
leis ordinárias.
Com
efeito, os atos internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito
interno, situam-se no mesmo plano de validade e eficácia das normas
infraconstitucionais. Essa visão do tema foi prestigiada em decisão proferida
pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE n° 80.004/SE (RTJ 83/809,
rel. o Min. Cunha Peixoto), quando se consagrou entre nós a tese – até hoje
prevalecente na jurisprudência da Corte – de que existe, entre tratados
internacionais e leis internas brasileiras, mera relação de paridade normativa.
É certo que já se registra no plano do direito comparado uma
clara tendência no sentido de os ordenamentos constitucionais dos diversos
países conferirem primazia jurídica aos tratados e atos internacionais sobre as
leis internas. É o que ocorre na Argentina, Holanda, Federação Russa, Holanda,
Paraguai e França. Tal, porém, não ocorre no Brasill, seja por efeito de
ausência de previsão constitucional seja em virtude de orientação firmada pela
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, por mais de uma vez,
reconheceu – como precedentemente assinalado – que os atos internacionais
situam-se, após sua formal incorporação ao sistema positivo doméstico, no mesmo
plano de autoridade e de eficácia das
leis internas.”
Se assim deve ser quando se esteja diante de eventual
conflito entre tratado e mera lei interna, quando se cuide de disposições
diferentes sobre o mesmo tema constantes de tratado e da Constituição (como
entre lei interna e Constituição) dúvida não pode haver de que não se pode
falar em conflito, mas tão somente em prevalência da Constituição, Lei das
Leis.
Como disse
o sempre citado Ministro Celso de Mello, agora como relator da Ação Direta de
Inconstitionalidade n° 1.480-3, julgada em 04 de Setembro de 1997, “no sistema jurídico brasileiro os tratados
ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade
normativa da Constituição da República. Em consequência, nenhum valor jurídico
terão os tratados internacionais que, incorporados ao sistema de direito
positivo interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta
Política.
O exercício do treaty-making power pelo Estado
brasileiro – não obstante o polêmico art° 46 da Convenção de Viena sobre o
Direito dos Tratados (ainda em curso de tramitação perante o Congresso
Nacional) – está sujeito à necessária observância das limitações jurídicas
impostas pelo texto constitucional”.
E conclui
ele: “O primado da Constituição, no
sistema jurídico brasileiro, é oponível ao princípio pacta sunt servanda,
inexistindo, por isso mesmo, no direito positivo nacional, o problema da
concorrência entre tratados internacionais e a Lei Fundamental da República,
cuja suprema autoridade normativa deverá sempre prevalecer sobre os atos de
direito internacional público”.
Tal
decisão, no entanto, é anterior à Emenda Constitucional n° 45, que,
acrescentando o parágrafo 3° ao art° 5° da nossa Magna Carta, equiparou os
tratados sobre direitos humanos a emendas constitucionais, se forem aprovados pelo
Congresso Nacional com observância de quorum qualificado. Tal parágrafo
aplicar-se-ia a tratados entrados em vigor em data anterior à dele?
Amigo Adauto,
ResponderExcluirObrigado por conceder-nos a oportunidade de compartilhar de seu conhecimento e sabedoria.
Ailton B. Brandão