“A verdade não só é muito mais incrível do
que a ficção como é muito mais difícil de inventar.” Millôr Fernandes
Que é a verdade? Dentre outras
definições possíveis, gosto desta: é a conformidade perfeita entre um fato ou
objeto e sua representação mental. Os antigos diziam, por isso, que nihil est in intellectu quod non prius in
sensibus. Em linguagem de vivos: para que algo chegue à nossa mente,
deve antes passar pelos nossos sentidos.
É aí que a porca torce o rabo, pois
nossos sentidos nem sempre são dignos de muita confiança, a começar pela visão.
Cada leitor tem casos e mais casos para contar sobre as inúmeras vezes em que
“tomou a nuvem por Juno”, como diziam meus avós. A bolorenta frase refere-se ao
fato de as nuvens formarem figuras, que nossa imaginação vai batizando. Aquilo
que para uns é um coelho, para outros talvez seja um canguru. E quando chamamos
um terceiro para desempatar, a nuvem já virou outra coisa.
Talvez tenha sido a partir de uma
experiência dessas que o psicanalista suíço Hermann Rorschach desenvolveu seus estudos no sentido
de estabelecer a relação entre imagens captadas por nossos olhos e o
significado psicológico da denominação que damos a elas. Suas tábuas, com manchas
coloridas e em preto-e-branco têm sido objeto de estudo e de crítica, até
porque a morte precoce do suíço, antes dos 40 anos, não lhe permitiu,
certamente, desenvolver seu trabalho.
As pessoas privadas de visão dizem
que, na ausência dela, os demais sentidos ficam mais aguçados. Já falei sobre
isso e não preciso voltar ao tema.
O filme Dúvida, uma
peça de teatro filmada e indicada ao Oscar, especialmente pela interpretação do
quarteto central de atores, coisa rara de acontecer, trabalha esse tema:
pode-se chegar à verdade por meio da mentira?
De certa forma, o próprio cinema é
uma mentira: imagens exibidas sucessivamente, à razão de 24 por segundo,
dão-nos a impressão de que algo se movimenta, tanto que, quando o primeiro filme, feito
pelos irmãos Lumière, foi exibido, mostrando uma inocente cena de um trem que chegava à estação,
muitos espectadores fugiram apavorados, isso em 1895.
Aliás, é curioso como a mentira é contagiante. Quando uma
brasileira, que vivia no Exterior, declarou-se vítima de maus tratos cometidos
por xenófobos, o nosso presidente da República, que não prima pela continência
verbal, saiu a campo para defender a pretensa vítima. Nosso ministro das
Relações Exteriores da época, homem sabidamente escolado, caiu no conto do
vigário e extrapolou em críticas inadequadas a quem ocupa tal cargo. Curiosamente,
ninguém por aqui se preocupou com alguns aspectos bizarros da coisa. Em
primeiro lugar, a agressão se teria passado em local público, em pleno dia, não
tendo sido visto por ninguém. Em segundo lugar, os riscos produzidos com
estilete no corpo da jovem (todos eles na parte dianteira do corpo) eram todos
superficiais, sugerindo extrema calma por parte do seu autor. Por fim, quem se
dispusesse a virar a foto de cabeça para baixo notaria que a letra “S” está de
cabeça para baixo em ambas as pernas, o que sugere auto-mutilação. Por que
nenhum de nós notou nada disso? Talvez porque temos a tendência de ver o que
queremos ver.
O assunto, nas lides forenses,
sempre vem a baila, pois a certeza do juiz deve fazer-se a partir de provas,
não bastando meros indícios. Beyond a
reasonable doubt, como dizem eles lá em cima. Ocorre que uma dúvida que não
é razoável para uns será, possivelmente, razoável para outros. Tanto que há os
votos vencidos.
O Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais vem de encarregar-me, um cinéfilo confesso, de elaborar a exibição de
filmes sobre o tema “A Justiça e o Cinema”. Estou vasculhando os sebos à
procura de obras raras sobre o tema, que acrescentarei aos DVDs que já possuo,
como “Sobre Meninos e Lobos”, do Clint Eastwood, “Conduta de Risco”, do Tony
Gilroy, “A Sombra de uma Dúvida”, do Alfred Hitchcock, “Rashomon”, do Akira
Kurosawa, “Anatomia de um Crime”, do Otto Preminger, “A Vida de David Parker”,
de Alan Parker, “Justiça para Todos”, do Norman Jewson, “Mephisto”, do István Szabó,
“12 Homens e uma Sentença”, do Sydney Lumet, “O Homem Errado”, do Alfred
Hitchcock, “Os Infiltrados”, do Martin Scorsese, “Crimes e Pecados”, do Woody
Allen.
Aceito sugestões, desde que se
refiram a filmes disponíveis no mercado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário