"Putas quid est Deus?" (clique aqui)
“- Você acredita em Deus, vô?”
Será que os netos não têm mais nada para perguntar
aos seus avôs? Eu aqui descansado,
tentando decifrar um livro do Guimarães Rosa, e vem esse fedelho me desafiar
com suas dúvidas existenciais.
Marquei a página do livro até onde eu havia
conseguido chegar, coloquei-o sobre a mesinha, ao lado do abajur e de outros
três livros que disputam entre si a prioridade da leitura, sentei meu neto em
meu colo e tomei fôlego para uma conversa longa.
Como falar de algo tão transcendente sem ser pedante
nem ser, como direi?, ingênuo? Conheço meus netos e sei que eles estão sendo
criados com toda liberdade e num clima de diálogo, sem a imposição de verdades
absolutas, como era comum no meu tempo de criança e como sei que ainda ocorre
em certas famílias, principalmente quando os pais não têm tempo para dialogar
com os filhos ou, por modéstia ou ignorância, se acham sem competência para
isso.
“- Para que eu
fale de um assunto desses, primeiro quero saber o que você já sabe a respeito
dele” comecei, malandramente, invertendo,
de certa forma o problema por ele trazido.
Ele falou de coisas vagas, fantasiosas, que,
certamente, havia aprendido em aulas de religião. São os conceitos tradicionais,
que falam na criação do mundo, no surgimento do primeiro casal, em céu e
inferno e coisas tais. Uma criança que tem o mundo diante de si, por força da
Internet, aprendendo ali o que deve e o que ainda não precisa aprender,
aceitará essas histórias que intimidavam nossos pais e nossos avós? Será que
não há um modo mais adequado para despertar a criança para os valores
transcendentais? Para a chamada conduta ética?
Abri um dos livros que estavam sobre a mesinha e dei
para ele ler uma das páginas. Era um desses best-sellers do dia, traduzido para
o português, numa linguagem sem afetação. Ele leu atenciosamente o texto por
duas vezes e depois, a meu pedido, explicou-me, sem grande dificuldade, aquilo
que havia lido.
Depois, entreguei a ele um livro de poesia e repeti o
mesmo processo. Agora ele embatucou na hora de me explicar o que havia lido.
Olhou o nome do autor e me indagou quem era Fernando Pessoa. Sem comentar sua
dificuldade, indaguei-lhe se ele seria capaz de cantar as primeiras estrofes do
nosso hino nacional, pois eu já sabia que uma vez por semana eles são obrigados
a cantá-lo no colégio. Ele sapecou o “ouviram
do Ipiranga as margens plácidas de um povo heroico o brado retumbante.”
Mandei que ele parasse aí e me explicasse, com suas palavras, o que aquilo
queria dizer.
“- Agora você
me pegou” disse ele.
“- Quer dizer
que vocês cantam o nosso hino todas as semanas e os professores nunca lhes
explicaram o que quer dizer isso?” indaguei.
“- Eu nem
sabia que isso quisesse dizer alguma coisa” disse o cínico. Em lugar de um sermão sobre a má qualidade do ensino em
nosso país, propus a ele que puséssemos em ordem direta aquela frase. “Aliás esse é um exemplo daquilo que os
gramáticos chamam de hipérbato, ou seja, a colocação das palavras em uma frase
fora da ordem a que estamos acostumados. Logo logo o teu professor de português
lhe ensinará isso.”
“- Algum dia
ainda vou aprender isso tudo e serei tão culto como você, vô”, bajulou-me o garoto. Passamos então à ordem direta
daquela pomposa frase: “as margens do
(riacho do) Ipiranga ouviram o brado de um povo heroico”. Eis o que o poeta
quis dizer.
“- Mas um
riacho tem ouvidos, vô?”
“- Aí é que
entra algo que nos ajuda a entender a linguagem religiosa. Nem sempre aquilo
que está sendo dito significa aquilo que parece significar. Por causa disso,
surgem pessoas que se dispõem, de boa ou de má fé, a mostrar às pessoas o
significado daquilo que nossa inteligência não consegue entender”.
“- Eu, por
exemplo, não entendi nada de todo esse seu discurso, vô.”
“- Então me
diga: você acredita que exista a Austrália?”
“- Claro,
vozão. Eu vi na televisão um programa que mostrava o deserto da Austrália e os
cangurus saltando pra todo lado.”
“- Mas quem
lhe garante que aquele deserto é mesmo na Austrália e não na África? Quem lhe
garante que aqueles animais estranhos, que têm as pernas da frente bem menores
do que as pernas de trás, não é um truque de cinema, um efeito especial como
alguns personagens da série Guerra nas Estrelas?”, provoquei.
O garoto ficou sério, pensou um pouco e saiu-se com
esta: “Quer dizer que eu não devo
acreditar em tudo que me mostram? Em tudo que me contam?”
Dei uma sonora gargalhada e um abraço no meu neto
mais velho.
“- Você agora
falou como certos filósofos gregos, que diziam exatamente isso: desconfie
sempre. Eu não aceito essa filosofia, porque ela torna a vida um inferno. Já
imaginou eu pondo em dúvida se você é meu neto, pondo em dúvida se a água que
sai da torneira está boa para se beber, se a comida que me servem no
restaurante não está envenenada, se a notícia que li no jornal é mentirosa e
assim por diante. Quem consegue viver assim?”
“- Mas eu
também não posso aceitar tudo o que me dizem, é ou não é?” diz ele com seriedade.
“- Viu como
isso é complicado? Pois quando alguém, por mais importante que seja, afirma que
Deus lhe disse alguma coisa, a primeira pergunta que nossa inteligência faz é:
se ninguém sabe como é Deus; se ele, ao que tudo indica, não usa carteira de
identidade, como é que aquela pessoa, mesmo estando de boa fé, sabe que falou
com Deus?”
“- Então esse
problema não tem solução”, concluiu meu
esperto neto primogênito.
“- Algumas
pessoas, de fato, entregam os pontos e chegam a afirmar que Deus não existe, o
que é uma grande bobagem. O fato de eu nunca ter estado na Austrália e nunca
haver tocado num canguru não me dão a certeza de que eles não existam. Se eu
pegar um avião e for à Oceania, que é um outro continente, eu poderei saber,
sem ter de confiar na palavra dos outros, se a Austrália e os cangurus existem
ou não.”
“- Isso quer
dizer que, se eu pegar um foguete e for pelo espaço eu acabo descobrindo se
Deus existe e onde ele está“
disse o garoto.
A conversa estava indo mais longe do que eu esperava,
mas eu não poderia encerrá-la sem dar um fecho razoável ao assunto, para não
deixar meu neto mais confuso do que estava antes. Dizer a ele que só na nossa
Via Láctea, uma das milhões de galáxias que há no universo, deve haver mais de
200 bilhões de estrelas e que, de acordo com qualquer cálculo de
probabilidades, deve haver algum outro ambiente no espaço sideral onde a vida,
tal como a conhecemos na Terra, é possível, seria algo adequado à idade
dele?
“- Então me
responda o seguinte: o que é o sol para você?” indaguei-lhe.
O garoto, sem pestanejar, foi objetivo: “é uma bola de fogo que circula no céu e
produz luz e calor.”
“- Bravo. Bem
na mosca. Se você olhar esse mesmo céu à noite, especialmente quando não há
lua, você verá um número incalculável de estrelas. Que é uma estrela?”
“- É um
pontinho luminoso azulado”.
“- Pois fique
sabendo que a maioria daqueles pontinhos luminosos azulados são também bolas de
fogo, que produzem luz e calor. Em torno de cada uma dessas estrelas talvez
girem planetas, como ocorre com o nosso sol, que, saiba você, é também uma
estrela, menor do que muitos daqueles pontinhos azulados.“
A surpresa de meu neto, diante de minha revelação,
foi muito menor do que imaginei que seria.
“- E o que
isso tem a ver com Deus?” foi tudo o
que ele disse.
“- Eu estou
tentando mostrar que tanto o sol como as demais estrelas que vemos à noite
representam uma parcela mínima, quase insignificante de um conjunto de estrelas
que se chama Via Láctea. A Via Láctea é apenas uma das inúmeras galáxias que
compõem o universo, cujo número exato nós desconhecemos.”
“- E onde entra
Deus nisso tudo?” indagou o garoto, já demonstrando
certa impaciência.
“- A nossa
experiência nos ensina que tudo o que existe teve um criador. Se você vê na
calçada um montinho de cocô” disse
eu, usando, de caso pensado, um objeto de que ele certamente não se esqueceria,
“você conclui que o criador daquele
objeto foi um cachorro, até porque cocô não surge do nada. Certo?”
Ele não tinha como discordar de mim.
“- Ocorre,
porém, que você não tem como saber qual a raça nem a cor do criador daquele
objeto. O que, no entanto, você consegue saber é que o criador é muito maior do
que aquilo que ele criou. De acordo?”
Ele não deixou por menos: ”você está tentando me dizer que Deus é um enorme cachorro e que esses
bilhões de estrelas são como cocôs que ele deixou no espaço?”
Não pude deixar de dar uma gargalhada estrondosa,
diante da irreverência do garoto. Agora era aproveitar a deixa.
“- Em termos
poéticos, sua comparação não seria de se jogar fora, principalmente se levarmos
em conta o que os homens fizeram com nosso planeta. Na verdade, o que estou
tentando mostrar é que, pelo fato de nós conhecermos a obra, isso não significa
que conseguiremos conhecer o seu autor. No caso do universo, nem podemos dizer
que conhecemos a obra toda, pois ainda sabemos muito pouco a respeito dele. A
rigor, nós sabemos quase nada. Quantas galáxias ele tem? Isso compreende
quantas estrelas? Qual o tamanho do espaço ocupado por isso tudo? Nós não temos
resposta para essas perguntas.”
“- E Deus deve
ser maior do que isso tudo” diz meu neto,
deixando-me emocionado.
“- É
exatamente isso. Se nós não temos condição de conhecer a obra criada, como
podemos atrever-nos a dizer que conhecemos seu criador, que, como bem disse você, deve ser maior e mais complexo do
que ela?”
“- E como
saímos dessa, vô?” indaga-me o garoto, com certa apreensão na voz.
“- Acho que a
solução mais prática é esta: a nossa inteligência nos diz que nós nascemos para
sermos felizes. E também ela nos mostra que nós não conseguimos ser felizes se
as pessoas à nossa volta não forem também felizes. Se a ideia de quem nos criou
foi a de permitir que cada um de nós alcance a felicidade, podemos extrair
disso uma regra geral: não faça ao próximo aquilo que você não gostaria que ele
lhe fizesse. E trate o próximo como gostaria de ser por ele tratado.”
“- Ou eu irei
para o inferno. É isso?” indaga o
guri.
“- Eu não
gosto de falar em céu e inferno, porque acho que podemos ensinar as crianças a
descobrir que fazer a coisa certa traz um prazer que não depende de uma futura
gratificação. E que fazer a coisa errada acaba causando um enorme mal-estar,
com sentimento de
culpa e arrependimento, que fará a pessoa concluir que esse não é o melhor
caminho. Talvez esse sofrimento é que seja o verdadeiro inferno.”
“- Acho que
por hoje chega, vozão. Tenho que pensar em tudo isso, que já é muito para minha
cabeça”, disse meu neto.
Finda a exposição, meu primogênito deu-me um beijo no rosto e saltou do meu colo. Antes que ele se fosse, fiz-lhe uma última pergunta, que, de certa forma, concluía tudo o que eu havia tentado ensinar-lhe.
“- Você beijou
meu rosto porque se sente bem quando está comigo? Porque sabe que isso me faz
feliz? Ou porque está interessado em ganhar um bom presente no seu
aniversário?”
... por amor ou temor à Deus, ... estou com o Einstein, ... é preciso ter muita coragem para não crer, esse ateu, dizia ele, talvez fosse o homem mais corajoso da Terra, ...
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