Toda cidade tem seu maluquinho,
alguém que serve de diversão para os sádicos, que gostam de expô-lo nas
situações mais ridículas. Vemo-los equilibrando-se em sapatos de salto alto, ou
com uma peruca ruiva, colaborando de boa fé para as maldades alheias. E sempre sorrindo.
Nas grandes cidades, como São Paulo,
certamente cada bairro tem o seu. Ou mais de um. Quase sempre granjeiam algum
tipo de simpatia, mesmo porque são, no geral, inofensivos.
Convivi com um deles. Seu nome era Burzeguim.
Quem lhe lançou o apelido? Quando? Ninguém sabia. O que todos viam era aquele
homem, com a idade indefinida dos mendigos, circulando permanentemente pelas
ruas do bairro, a puxar, para cima e para baixo, um carrinho de feira repleto
de pacotes de tamanhos os mais variados, provocando a curiosidade de tantos.
Que haveria ali? Jamais alguém conseguiu saber, pois ele desconversava quando
indagado a respeito. Seus andrajos eram sempre os mesmos, embora nas noites
mais frias alguma alma caridosa lhe doasse um casaco que, mesmo sendo usado,
destacava-se em face da sujeira geral da roupa que cobria. Por vezes um par de
tênis aparecia em seus pés e ali ficaria eternamente. Cabelos e barba crescidos
completavam aquela figura bizarra, que, ao que parece, jamais saiu do mesmo
bairro, circulando pelas mesmas ruas, como se temesse ir muito longe, sem
jamais ter tomado um banho. Dormia na calçada de alguma casa comercial,
aproveitando o espaço que, durante o dia, era ocupado pelos veículos dos
fregueses, coberto com um velhíssimo cobertor, que já merecia aposentadoria.
Seu café da manhã era servido pelo
garçom de um bar, que, por motivos óbvios, trazia-lhe a refeição aqui fora. Por
outro lado, um copo plástico de refrigerante acompanhava sempre seu almoço,
certamente doação de algum dos bares da região, aproveitando a inevitável sobra.
Esse era o Burzeguim.
Cheguei a puxar conversa com ele, mas
tudo o que consegui saber é que ele havia saído de casa por causa “de um
desgosto”, há tanto tempo que ele já não sabia ou não queria precisar a data
nem o fato. Falou-me de seus planos mirabolantes, como telefonar ao prefeito
para reclamar dos buracos na calçada e para fazer-lhe algumas sugestões, por
sinal bem mais sensatas do que as de muitos prefeitos.
Como tantos outros mendigos, recolhia
tocos de cigarro, que fumava quando conseguia encontrar quem lhos acendesse.
Além deles, recolhia qualquer objeto que chamasse sua atenção, talvez para
incluí-los nos incontáveis pacotes que arrastava de um lado para outro em seu
carrinho, coisa aí de um Sísifo, aquela criatura mitológica condenada a repetir eternamente a mesma tarefa:
empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, sendo que, quando estava prestes
a atingir o almejado topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo, exigindo
que ele renovasse seus esforços. Assim era com o Burzedguim.
Deu-se então que ele, nesse
comportamento compulsivo, encontrou um bilhete de loteria, que, segundo a
lenda, referia-se a uma data futura. Ou seja, alguém o perdera antes mesmo do
dia do sorteio. Ele mostrou o objeto a seu amigo garçom, que se admirou do
valor do prêmio prometido, algo capaz de acertar a vida de qualquer pessoa,
imagine-se a de um garçom. Para não falar da de um mendigo. Solicitamente, o
garçom sugeriu ao Burzeguim que deixasse com ele o bilhete, que no fim de
semana conferiria se ele foi ou não premiado e lhe informaria. O mendigo, sem
dizer palavra, recolheu o bilhete, dobrou-o várias vezes, colocou-o num dos
bolsos da roupa e afastou-se sem fazer qualquer comentário, como se nada
daquilo lhe dissesse respeito.
Os dias seguiram sua rotina, o Burzeguim
fazendo suas caminhadas costumeiras e chegou o domingo. Ao servir o café da
manhã ao mendigo, o garçom mostrou-lhe um pedaço de papel onde anotara os
números premiados no sorteio da véspera. O outro caçou o bilhete nos bolsos e entregou-o
ao amigo, que comparou os dois papéis, sem fazer qualquer comentário. O mendigo
nada perguntou. Limitou-se a recolher o bilhete, como fizera anteriormente,
dobrou-o e o guardou nalgum canto daqueles andrajos imundos.
Segundo se diz, esse bilhete jamais
saiu do bolso dele. Muitos anos depois, o Burzeguim congelou em uma noite de
inverno particularmente severo, tornando-se necessário revistar seus pertences
em busca de conhecer a identidade do falecido e providenciar seu enterro. Lá
estava, no meio de tanta inutilidade, o tal bilhete de loteria, que certamente
foi com ele para a cova.
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