"AMIGAS E AMIGOS
Admito, com toda a franqueza,
que resisti o mais que pude à missão de falar no momento em que se inaugura com
o nome de Adauto Suannes o auditório do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. E qual o motivo que se ocultava
atrás dessa resistência? Tomando de empréstimo as palavras de Carlos Drummond de Andrade, o sentimento de que "não há falta na
ausência". "A ausência é um estar em mim"[1]
e a " ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim" [2].
E tal ausência incorporou-se a todos os filhos, a todos os parentes e a todos os
amigos de Adauto, como uma subjetividade comum.
Para nós, Adauto não partiu:
distanciou-se apenas, mas tudo quanto ele representou em vida, acomodou-se em
cada um de nós como um legado precioso e intransferível.
É bem por isso que, em lugar
de estabelecer um clima de luto ou de tristeza, creio ser o instante exato no
qual sua
multifacetada personalidade deva
vir à tona para dar suporte à merecida homenagem que hoje a ele se presta.
Foram inumeráveis as
qualidades deste ser humano tão especial.
Adauto foi sempre um personagem complexo. E por tal razão, colecionava
amigos incondicionais e inimigos ferrenhos. Ele nunca seria capaz, como dizia Martin
Buber, de "permanecer na praia, contemplando as espumas das ondas".
Corria sempre o risco de "atirar-se na água e nadar[3]". Não tinha medo de afrontar os perigos,
viessem de onde viessem. E suas ações eram o retrato exato de seu pensamento.
Sem subterfúgios, sem enganos. Não era
homem de encobrir opiniões, emoções ou paixões. E se não deixou um diário de
sua vida, escreveu, como ele próprio afirmou, "páginas e mais
páginas" (...)" à espera de alguma oportunidade para serem utilizadas
pois nelas"[4], como afirmava Norberto Bobbio, exprimiria" não só sentimentos e
ressentimentos, simpatias e antipatias,
intolerâncias, pequenas indignações e enormes desprezos, mas também comentários
sobre os acontecimentos do dia, breves raciocínios para desfazer uma dúvida,
argumentos a favor ou contra uma tese controvertida, rascunhos de artigos
futuros. Essas folhas, como enfatizava Bobbio, contém, não raro, anotações autobiográficas, lançadas no papel
nem tanto para transmitir à posteridade
acontecimentos memoráveis, quanto para dar vazão a uma ansiedade de espírito,
refletir sobre um erro cometido com o propósito de não o repetir, anotar um
defeito para dele me libertar, tornando-me consciente dele e confessando-o, se
não aos outros, pelo menos a mim mesmo[5]".
Foi juiz, advogado, escritor,
cronista, poeta, pintor, escultor, gravurista e, ainda, foi um dos fundadores
do IBCCRIM. E todas essas múltiplas
atividades dão conta de que Adauto não era uma pessoa comum, mas alguém que
tinha indiscutíveis traços de genialidade. Com isso, não digo que só lhe
credito virtudes. Não é para o simples louvor que chamei a atenção para a variedade de suas
ações. Como qualquer ser humano, Adauto conjugava virtudes e defeitos: tinha
momentos de arroubos irrefreáveis e de gestos de extrema humildade; passava por
instantes de euforia e de depressão; era, por vezes, lobo solitário e
outras tantas vezes, apaixonado por seu
poder criativo; demonstrava alegrias intensas e tristezas profundas, mas o
saldo final, o que dava nota, tom e
sentido à sua personalidade, era-lhe extremamente favorável.
Se se pudesse em poucas palavras
resumir tudo quanto Adauto foi em vida, usaria a sua própria definição:
"nas vésperas de me tornar, irremediavelmente, um setuagenário, achei que
deveria prestar contas daquilo de melhor recebi ao nascer: MINHA CAPACIDADE DE
ME INDIGNAR[6]".
E tal capacidade fez-se presente
na sua judicatura. Lembro-me de trecho
de uma saudação por ele proferida na
qual destacava a insuportável impotência
do juiz " para fazer face a um sistema social desumano, que faz questão de
manter marginalizado aquele que se atreveu a denunciar, comportamentalmente, às
regras cínicas e injustas da sociedade em que vive. Quem é o ladrão senão alguém
que nos joga no rosto o sentido infantil de uma concepção do direito de propriedade
puramente individualista, incompatível com o "bem comum" a que tal
direito se destina? Quem é o ladrão senão alguém que executa, manu militari, aquela hipoteca social
que pesa sobre toda propriedade individual, para usar a expressão de Paulo VI?"[7]
E como não retratar sua
revolta contra "os Juízes frios,
legalistas, parados no tempo"? "Somos Juízes que conhecemos a
candente advertência de Calamandrei: "reduzir a função do juiz a um puro
silogismo significa empobrecê-la, torná-la árida, dessecá-la. A Justiça é algo
mais: é criação que surge de uma consciência viva, sensível, vigilante e humana.
É precisamente este calor vital, este sentido de contínua conquista, de atenta
responsabilidade, que necessita ser prezado e desenvolvido no Juiz. O maior
perigo que, numa democracia, ameaça os juízes e, em geral, todos os
funcionários públicos, é o perigo da rotina, da indiferença burocrática, da
irresponsabilidade anônima. Para o burocrata, os homens deixam de ser pessoas
vivas e tornam-se números, fichas, documentos: uma papelada como se diz na
linguagem cartorária, isto é, um conjunto de papéis com capas que contém muitas folhas protocoladas
e, no meio delas, um homem dessecado, sem vida. Para o burocrata, as aflições
do homem vivo que está aguardando alguma providência valem pouco: ele vê aquele
processo que estorva sua mesa e apenas trata de encontrar um expediente para
fazê-lo passar para a mesa de outro burocrata e de descarregar sobre ele o
fastio daquele aborrecimento[8]".
Adauto estava mil anos-luz à
frente dos juízes de sua época. Sou testemunha, como seu companheiro na 5a.
Câmara do extinto Tribunal de Alçada Criminal
de São Paulo, do quanto ele contribuiu para abrir novos caminhos. Seu
desapego ao texto da lei ordinária, diante de princípios e regras
constitucionais, sua exclusão de todo tipo de
corporativismo, sua visão
abrangente do saber, sua perspectiva de garantidor de direitos que atribuem
dignidade ao ser humano, seu enfrentamento ostensivo a todo tipo de exclusão,
seja social, seja provocada pelo não-consumo, sua luta pela igualdade de gêneros, contra o
racismo e contra a violência policial, tornaram-no um juiz moderno e democrático, modelo a ser seguido por
qualquer juiz.
Como advogado, após sua
aposentadoria causada por injusto ato do
Tribunal de Justiça, fez sucesso e nunca se separou dos menos afortunados para
os quais, diante da detecção de flagrante injustiça, impetrava habeas corpus para Tribunais Superiores
ainda que o favorecido desconhecesse tal impetração.
Na qualidade de escritor, não
se restringiu a escrever livros jurídicos de alto gabarito. Foi além. Foi escritor de inumeráveis contos e de outras tantas crônicas. Não sei se produziu romances. Sei apenas – e ele dizia
isso com frequência– que estava
em busca de um editor para publicação de outros livros. Dava gosto vê-lo
escrever, seja na velha máquina datilográfica, seja no computador: seus dedos
tamborilavam as teclas na mesma velocidade com que seu cérebro funcionava e um
texto, simples ou complexo, jurídico ou literário, surgia como um passe de
mágica. Adauto tinha particular conexão com a literatura que, como afirma
Vargas LLosa, " é, foi e continuará sendo, enquanto existir, um desses
denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se
reconhecem e dialogam, não importa o quão distintas sejam suas ocupações e desígnios vitais, as geografias e as
circunstâncias em que existem e, inclusive os tempos históricos que determinam
o seu horizonte[9]". Em resumo, a boa literatura foi para ele,
como recentemente ressaltou Amós Oz: "a capacidade de fazer se abrir um
terceiro olho em nossa testa[10]",
com o poder de nos provocar perturbações.
Na arte, Adauto, com o nome
fictício Adalon, não foi uma figura menor. Escultor produziu peças de real
valor, premiadas no Brasil e no estrangeiro. Como pintor expressava seus
sentimentos mais profundos. Seus traços e as cores que seus pinceis imprimiam à tela demonstravam, com extrema
fidelidade, o seu estado interior: tranquilo ou explosivo, alegre ou
depressivo. Suas gravuras não fugiam à sua maneira de ser e punham à luz o seu
temperamento e à sua forma de entender a vida e o mundo.
Por derradeiro, e para embasar
a cerimônia na qual Adauto empresta seu
nome ao maior e mais significativo espaço do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais, devo partir de uma indagação:
o que ele representou para o IBCCRIM? Foi um dos subscritores da ata de
fundação no dia 14 de outubro de l992. Era o trigésimo quinto associado. Isto
representaria muito pouco se sua ação se circunscrevesse à assinatura de uma
ata. Adauto foi além. Acompanhou pari
passu, dia a dia, tijolo a tijolo,
parede a parede a construção física do Instituto desde a pequena sala da
Rua Tabatinguera até a ocupação quase integral do Palacete Elza, na rua XI de
Agosto. Mas sua contribuição avançou bem
mais à frente. Por sua coragem, por sua
ousadia, e sobretudo, por seu exemplo, transformou em realidade os objetivos estatutários:
o respeito incondicional dos princípios e das garantias constitucionais, a
defesa do Estado Democrático e Social de
Direito e a luta apartidária em prol das minorias e dos excluídos sociais. Seus
escritos no Boletim do IBCCRIM e na Revista Brasileira de Ciências Criminais
dão conta do empenho e da dedicação com que sempre se conduziu. Adauto resume, em verdade, a própria história do IBCCRIM. Sua figura
permite recompor a instituição desde os
momentos inaugurais, com as dificuldades próprias de seu lançamento; tornam
explícitas as variadas crises pelas
quais passou, e comprova o
reconhecimento de sua seriedade científica. Adauto foi presença constante em
cada uma dessas etapas. Quem hoje ingressa no Instituto talvez imagine que o IBCCRIM desde seu início até a
presente data teve sempre a mesma estrutura atual. Pouco se sabe sobre o enorme sacrifício pessoal realizado por seus associados desde os anos iniciais até o dia de hoje para
torná-lo vivo e produtor de conhecimentos, sem receber recursos financeiros
oficiais e sem, em momento algum, renunciar ou desmentir seus propósitos e seu
passado. Adauto foi e será sempre o
cavaleiro andante do IBCCRIM, o homem destemido
e um tanto quixotesco que não se conformava com as injustiças do mundo e
se punha, lança à mão, a enfrentar todo e qualquer obstáculo que representasse
ofensa à dignidade da pessoa humana. A placa
que ora se inaugura chama a atenção para o poder de indignação de que Adauto era possuidor desde seu
nascimento, mas, além disso,
lembrará, a todos que
frequentam o auditório do IBCCRIM que
sua ausência deverá estar sempre marcada em cada um de seus associados e por
ter sido uma ausência assimilada nunca será apagada. O Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais será, enquanto puder ser, o ponto de encontro de pessoas,
como Adauto, que carregam dentro de si o propósito de ir ao encontro de utopias,
mesmo que estejam distantes demais e possam parecer impossíveis de serem
alcançadas. Isto faz lembrar Mário
Quintana[11]:
"Se as coisas são
inatingíveis...ora!
Não é motivo para não
querê-las...
Que tristes os caminhos, se
não fora
A mágica presença das
estrelas!"
Alberto Silva Franco, 19 de maio de 2016.
[1] ANDRADE,
Carlos Drummond de. Corpo e Novos
Poemas, São Paulo: Editora Record, l984:
"Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E
lastimava, ignorante, a falta.
Hoje, não a lastimo. Não há falta na
ausência.
A
ausência é estar em mim"
[2] ANDRADE,
Carlos Drummond de. Ob. cit.:
"porque a ausência, essa ausência assimilada
ninguém a rouba de mim"
[3] BUBER,
Martin, Eu e Tu, trad. Newton Aquiles von Zuben, Introdução, São Paulo: Cortez
& Moraes Ltda., l977, .p. XXVIII e XXIX.
[4] SUANNES,
Adauto, Justiça & Caos, Curitiba:
Instituto Memória, 2008, p.20
[5] BOBBIO, Norberto. O tempo da Memória, Rio de Janeiro: Editora Campus, l997, p. 3/4.
[6] SUANNES,
Adauto, ob. cit. p.2
[7] Saudação proferida por Adauto Suannes na cerimônia de
recepção dos Juízes Benedito Mário Vitirito e Evandro Antonio Cimino., no Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo
[8] Saudação aos
Des. Benedito Vitirito e Evandro Antonio
Cimino
[9] VARGAS
LLOSA, Mario. A verdade das Mentiras,
trad. Cordelia Magalhães, São Paulo: Arx, ,2004, p. 380
[10] OZ, Amós.
Como Curar Um Fanático, trad. Paulo
Geiger, São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 13
[11] QUINTANA,
Mário, Espelho Mágico, 2a.ed. 8a. Reimpressão, São Paulo: Editora Globo, 2010,
p.28.
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