24 fevereiro 2012

Fuzuê no sambódromo


Tenho dificuldade em levar o carnaval, como tudo neste país, a sério. Quando sei que algum jurado deu nota 9,76 para alguma escola de samba, no quesito “adereços”, eu me arrepio. Que é isso? Segundo o Aurélio, é o mesmo que “acessórios cênicos de indumentária ou de decoração”. “Objeto vistoso, geralmente levado na mão do sambista ou de pessoa fantasiada nas escolas de samba, blocos de carnaval etc. e que compõe a sua indumentária carnavalesca” ensina-nos o moderninho Houaiss, que, ao contrário do outro dicionarista, não separa singular de plural.
Ora, se os homens que entendem disso não se entendem sobre isso, quem sou eu para saber o que são adereços?
E há escolas de samba que são rebaixadas ou conquistam o primeiro lugar em face de tão enigmático quesito.
O meu assunto, é claro, não é bem esse. Quero falar da confusão no final da apuração dos votos dados às escolas de samba pelos jurados e da questionável decisão dada à situação gerada pelo fuzuê ocorrido no sambódromo quando da leitura desses votos.
Para você que acabou de chegar da Ásia eu explico. Imagine que na Tailândia estivesse sendo realizado o campeonato mundial de surf, coisa aí de umas seis ou sete baterias. Nas primeiras cinco ou seis baterias, cada competidor, mais de uma dezena, obteve pontos proporcionais à sua atuação, de acordo com um júri especializado. Quando da última prova, por força de um tsunami, as ondas, que até então tinham 5 metros, subiram para 20 metros, levando terra adentro os surfistas, os membros do júri, os vendedores de picolé e os de pipoca e tudo o mais que encontraram pela frente. Se coubesse a você decidir quem deve ser proclamado o campeão, que você faria?
Aqueles que passaram, como eu, ou ainda passam, boa parte da vida tendo em mãos problemas semelhantes, sabem como decidir é difícil. Se duvida, vá ver o excelente filme “A separação”, sério candidato ao Oscar deste ano. Diante dos efeitos do tsunami, um leigo diria: “cancela-se aquela prova e marca-se outra”. E para que serviu o esforço dos competidores, que, possivelmente, talvez não tenham desempenho semelhante numa próxima prova? Para não dizer que algum deles talvez tenha morrido durante a tragédia.
Pense numa prova de natação. Dois nadadores estão bem à frente dos demais, disputando, cabeça a cabeça, o primeiro lugar. Isso vai ser decidido pelo cronômetro eletrônico que um deles tocará em primeiro lugar na chegada. Exatamente nesse momento fatal, o cronômetro entra em pane e ficamos sem saber quem o tocou em primeiro lugar. Você, como diretor da prova, que decisão tomaria?
A hermenêutica contempla princípios que não apenas servem para auxiliar na interpretação das leis como também para que se resolvam as questões jurídicas do melhor modo possível, até porque interpretar uma lei é buscar a melhor maneira de fazê-la atuar no caso concreto sob julgamento.
Que princípios são esses? Fala-se muito em “bom senso” que alguns confundem com “senso comum”. Vejamos um exemplo: é do senso comum que as mulheres são más motoristas. “Volta pro tanque, Dona Maria”, que algumas delas ouvem no trânsito, não é bem um elogio. Entretanto, as companhias de seguro cobram menos das mulheres proprietárias de veículos motorizados do que dos marmanjos. Mera gentileza? É claro que não. É que as estatísticas demonstram que as mulheres causam menos desastres de automóvel do que os homens, o que significa que, se apenas as mulheres dirigissem, as despesas das companhias seguradoras com pagamento de indenização seriam bem menores. As companhias de seguro não se guiam pelo “senso comum”, mas pelo “bom senso”, isto é, um juízo feito a partir de dados concretos e não mero fruto de preconceito machista.
Imaginemos que um casal de milionários, o marido bem mais velho do que a mulher, sem descendentes nem ascendentes, esteja viajando de avião. O avião cai na floresta amazônica e os corpos dos passageiros, já sem vida, são resgatados vários dias depois do acidente. Como fica a fortuna do casal? Sabemos que, se o casal não tem descendentes nem ascendentes, morrendo o marido, os bens dele passam para ela; morrendo a mulher, os bens dela passam para ele. Assim sendo, no caso concreto, os irmãos da mulher, seus herdeiros, terão interesse em provar que o marido morreu antes, ao passo que os irmãos do marido, herdeiros dele, procurarão provar o contrário. Que nos diz o “senso comum”? Que nos diz o “bom senso”?
Falei em princípios interpretativos e ilustro. Imaginemos que todos os juízes de um Estado tenham direito ao recebimento de certo valor. Como o caixa do Estado anda baixo, isso é pago em parcelas mensais, a perder de vista. Acontece que alguns juízes, que, pelo cargo que ocupam, estão mais próximos do cofre, resolvem pagar a si mesmos, de uma só vez, aquilo que lhes é devido. Tal conduta é censurável?
Se, para responder a essas perguntas, ficássemos apenas no “senso comum”, cairíamos no achismo: uns diriam “acho que sim” e outros diriam “acho que não”. Melhor irmos à Constituição Federal, onde encontraremos os chamados “princípios superiores do Direito”. Quando cuida da Administração Pública, ela fala em alguns deles, dentre os quais “moralidade” e “impessoalidade”. O chamado nepotismo não é reprovável apenas por ser imoral. Ele viola o princípio da impessoalidade, pois a relação familiar, mais do que o mérito, é que determina a escolha do auxiliar. Com mais razão se o beneficiário é o próprio ocupante do cargo com poder de decisão.
A Constituição também contempla o princípio da “razoabilidade”, outro nome para o “bom senso”. Uma decisão, qualquer decisão, deve ser tomada racionalmente e não emocionalmente. Mais que isso: dentre várias decisões possíveis, devemos preferir aquela que, graças à nossa experiência na arte de interpretar, melhor atenda à maior parte dos abrangidos por ela. Uma das aplicações desse princípio pode ser notada durante um jogo de futebol, quando o juiz, em lugar de parar o jogo, por causa de uma falta, deixa de fazê-lo porque, mesmo tendo recebido a falta, o jogador conseguiu dar prosseguimento ao lance.
Se você for ao Código Civil, ali encontrará uma palavra curiosa: comoriência. Que instituto jurídico é esse? Diz o Código que, muito embora seja raríssimo duas pessoas morrerem na mesma hora, mesmo minuto e mesmo segundo, em determinadas circunstâncias, como durante um desastre, presume-se que todos morreram no mesmo instante. Com isso, o Código diz que, morrendo aquele casal no mesmo desastre, não é razoável seus herdeiros disputarem por causa da herança. Os irmãos da mulher herdam a metade que era dela e os irmãos do marido herdam a outra metade.
Tudo isso para concluir que, se as duas escolas de samba tinham condições de chegar em primeiro lugar e se a segunda colocada teve frustrada sua expectativa por algo alheio à sua vontade e ao torneio, teria sido mais razoável que a disputa fosse considerada empatada.
Aliás, essa possibilidade sempre existe, pois duas ou mais escolas podem perfeitamente obter o mesmo número de pontos totais.    


2 comentários:

  1. Adauto, leio em silêncio os seus artigos. Após a leitura o senhor sempre me abandona em valiosa reflexão (freqüentemente, nem sei para que servem ou o quanto valem, mas sei serem de valor). E, se estou e fico refletindo não posso aqui postar um comentário. Hoje, porém, quebro a regra. Depois que o senhor me honrou com agradável entrevista no Café com Autor li Justiça e Caos: obra suficiente para me converter em leitor regular de seus artigos, sempre em silêncio, sempre levado ao regozijo da reflexão. Chegou a hora de agradecer pelo nutriente que nos tem servido aqui no Circus, pelo simples prazer de servir, de contribuir. Adauto Suannes, além de agradecer passei por aqui para pedir autorização para reproduzir esta postagem no Dr. Negociação: negociar demanda escolher e decidir. Raras vezes li sobre decisão e escolha na forma tão clara e simples como esta que nos apresenta.
    Um abraço,
    Nacir Sales

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  2. ... precisamos de mais entrevistas e programas televisivos com o nosso Mestre Adauto, ... a história de humanidade, penhorada e antecipadamente agradece. Cleanto Farina Weidlich

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