26 outubro 2012

Voto sem vista



Senhor Presidente
Eminentes pares
Ouvi com a máxima atenção os votos divergentes dos ilustres relator e revisor no que diz com a fixação da pena cabível ao réu ora sob julgamento, cabendo-me opinar sobre eles.
Preliminarmente, peço vênia para repetir as palavras de um grande penalista brasileiro, o saudoso Heleno Fragoso, quando afirmava que é preferível ter más leis com bons juízes do que maus juízes para aplicarem leis boas, sendo certo que, como queria o emérito Glasson, “não basta que os juízes sejam honestos; é necessário que eles provem que o são.“ Ou, dito de outro modo, como o fez Warlomont, “a motivação não deve ser unicamente considerada como algo que dá confiança na pessoa do juiz, mas como um privilégio concedido a ele pelo legislador de justificar sua sentença diante de seus jurisdicionados”.  
Nosso Sidnei Benetti pondera que “a decisão realiza um silogismo perfeito cuja premissa maior é a lei e cuja premissa menor são os fatos, seguindo-se a extração da conclusão, que é a decisão judicial.” Mas adverte: “E assim realmente é. Mas muitas vezes a matéria não se exaure no exame da legislação, assim como, no sistema anglo-americano, a interpretação não estanca na análise dos precedentes”. Longe está isso de ser uma tarefa mecânica, diz ele. “A formação da decisão, em si, é ato aninhado nas profundezas do sistema psíquico do Juiz, cujas trilhas, nos casos realmente complexos, nem o próprio juiz possui meios de reconstituir”.
É esse amálgama de elementos tão díspares que constituirá o fundamento da decisão. “O silogismo jurídico objetivo em verdade toma corpo para o juiz especialmente no momento da concretização da decisão no escrito, na motivação, com a qual obedece ao disposto na Constituição Federal e nos Códigos de Processo, textos que, em verdade, apenas explicitam a necessidade de fundamentação inerente à etiologia de qualquer julgamento”, diz o mesmo autor, com sua autoridade de Ministro de um de nossos Egrégios Tribunais Superiores.
E por que isso deve ser assim? Porque, se “até os ditadores, nos regimes discricionários, sentem o imperativo de expor ao público as razões dos seus decretos, o que fazem, geralmente, antepondo-lhes consideranda justificativos”, como dizia o Ministro Mário Guimarães, com maior razão isso há de ocorrer em um regime democrático, em que os atos judiciais, tanto quanto os administrativos, emanam de um agente do Estado que recebe seus proventos não só para decidir desta ou daquela maneira, mas, principalmente, para dizer os motivos pelos quais decide desta e não daquela maneira, como exige a Constituição Federal no artigo 92, IX e X. E se ao prejudicado se assegura o direito de impugnar os fundamentos da decisão, como diz ela no artigo 5°, LV, como fazê-lo sem os conhecer? Como impugnar fundamentos meramente subjetivos?
Daí dizer o insigne Gaston Jèze: “Quando um agente público está obrigado, segundo a lei, a motivar seu ato, deve fazê-lo, sob pena de nulidade do ato. Assim, a ausência de motivos passa a ser um vício radical. Essa lacuna faz supor que o motivo determinante não é um motivo de interesse público”.
Além dessa suposição, há outra, igualmente relevante, segundo o já referido Mário Guimarães: “A fundamentação é que dá a prova de haver o juiz tomado conhecimento do processo. Ora, se não houve o estudo, ludibriou-se o princípio das duas instâncias, que assenta na vantagem de ser a causa examinada por juízes de hierarquias diferentes.”
No que diz com o presente processo, a lei penal não só exige que seja aplicada a pena adequada ao caso como que seja fundamentada adequadamente a fixação dela, demorando-se o julgador em três fases sucessivas, quando ele levará em conta vários critérios, indicados no artigo 59 do Código: “a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e consequências do crime, bem como o comportamento da vítima.” “Na fixação da pena de multa”, diz o Código, “o juiz deve atender, principalmente, à situação econômica do réu.” Em face de tais elementos, pode-se, então, fugir do subjetivismo?
Se pudéssemos estabelecer uma escala da culpabilidade, considerando a culpa mínima de grau 1 e a culpa máxima de grau 10, quando saberíamos que determinado réu atingiu o grau 8 e não o grau 5 de culpa? Os olhares de Vossas Excelências, pulando sucessivamente do relator para o revisor já nos dão a resposta.
Como falarmos dos antecedentes do presente condenado? Nasceu ele de uma gravidez desejada? Os psicólogos, como sabemos, entendem ser tal antecedente fundamental para tentarem compreender a conduta de alguém, máxime se desviante. Era filho único, daqueles sempre mimados? Ou tinha vários irmãos, disputando com eles o carinho talvez escasso dos pais? Como foi sua infância? Que exemplos teve na juventude? Como foi sua iniciação sexual? Que escolas frequentou? Que empregos teve? Que funções exerceu? Nada disso foi trazido a seus votos por relator e revisor.
Fala-se, é verdade, que este réu já se envolveu com a polícia anteriormente. O que isso significa? Maus antecedentes? Ou esse envolvimento conduziu a uma sentença condenatória, ou a uma sentença absolutória, ou a sentença nenhuma. Se ainda não houve sentença, isso não pode ser considerado mau antecedente, pois ele não só é presumido inocente pela Constituição como pode até vir a ser absolvido por negação de autoria. Se foi absolvido, ainda que por carência de provas, continua inocente quanto a tal crime, não mais por mera presunção constitucional, mas por força de uma decisão judicial. Se foi condenado, isso também não pode ter influência nenhuma neste processo, pois a pena correspondente àquele processo foi lá fixada e não pode ser alterada para mais, o que ocorreria se aquela outra decisão fosse levada em consideração na fixação da pena deste.
Aliás, a chamada reincidência técnica, constante do Código Penal, é claramente inconstitucional pois o plus aqui aplicado sobre a pena base não decorreria dos fatos aqui julgados, mas dos fatos que culminaram na sentença condenatória anterior. Isso é violação do antiquíssimo “Ninguém pode ser processado duas vezes pelo mesmo fato”, que os de língua inglesa chamam princípio do “no double jeopardy”, oua procedural defence that forbids a defendant from being tried again on the same (or similar) charges following a legitimate acquittal or conviction”, que foi acolhido pelo International Covenant on Civil and Political Rights, assinado pelo Brasil e entrado em vigor aqui aos 24 de Abril 1992 (clique aqui), com força de emenda constitucional, a teor do contido no parágrafo 3° do artigo 5° de nossa Magna Carta, especialmente no que diz com o artigo 14, inciso 7, do mencionado Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
Outrossim, que sabemos da conduta do réu? É bom vizinho? Maltrata seus empregados? Participa regularmente das reuniões de condomínio? Embriaga-se? Dá calote nos credores? Enfim, como se relaciona com a companheira, com os filhos e com os vizinhos? Não sabemos.
Algum psicólogo foi ouvido para nos indicar como é a personalidade do réu? É ele introvertido? Extrovertido? Tende à depressão? À euforia? Seu humor é bipolar? Se soubéssemos responder a essas indagações, isso nos levaria a aumentar a pena básica ou a diminuí-la? Nem relator nem revisor esclareceram isso.
Para não esgotar a paciência de Vossas Excelências passo para a pena de multa proposta por relator e revisor, cujos valores também não coincidem. Diz a lei que se deve levar em conta principalmente a situação econômica do réu. Quanto ganha ele em média por mês? Quais os seus gastos médios? De que se compõe o seu patrimônio? Quantas pessoas estão sob sua dependência econômica? Não tenho resposta para nenhuma dessas questões.
Sendo assim, ou peço vista dos autos, prolongando ainda mais o tempo já enorme da tramitação do processo, ou dou um voto na base do “em face do jeitão do condenado, fixo a pena em tantos anos, tantos meses e tantos dias”, ou, menos por justiça e mais por equidade, invoco o velho e revelho in dubio pro reo e, pragmaticamente, fixo a pena final no mínimo legal.
Aliás, por falar em equidade, figuremos que a turma julgadora fosse composta de 7 juízes e, desses, 2 absolvessem o réu. Os 5 restantes discutiriam qual a pena justa, pois se teria entendido que os juízes que o absolvem não podem “logicamente” fixar pena. Como aqui se disse, “quem absolve não impõe pena”. Sendo isso assim, figuremos que, enquanto 2 deles fixam a pena no mínimo, 3 fixam a pena no máximo. Destarte, pela “maioria lógica” de 3 votos, a turma julgadora, composta de 7 juízes, condenaria o réu a cumprir a pena máxima. Entretanto, se, estrategicamente, os juízes que haviam absolvido o réu resolverem mudar o voto, o que podem fazer até a proclamação do resultado final, para também condená-lo, certamente aderirão aos que fixam a pena no seu mínimo legal. Resultado: a turma, por sua verdadeira maioria de julgadores, imporia ao condenado a pena mínima. Eis o paradoxo: se dois juízes da turma absolvessem o réu, ele receberia a pena máxima; se todos os membros da turma o condenassem (o que, logicamente, é mais grave do que absolver), ele receberia a pena mínima.
E aproveito o ensejo para deixar o meu protesto no que diz com a competência originária deste Tribunal para julgar processos criminais: nós aqui não chegamos ao mais alto grau da Magistratura para estarmos a brincar de juízes originais. Nossa função social deve ser, antes e acima de tudo, a de concretizarmos os preceitos constitucionais, o que estamos deixando de fazer ao longo deste famigerado processo, com prejuízo enorme a número incalculável de pessoas, ao perdermos nosso tempo em análise de provas e cálculos matemáticos, operações que gritantemente refogem de nosso carisma institucional, enquanto se acumulam na secretaria recursos e mais recursos que só serão julgados quando este terminar de ser julgado. Até porque, a meu enfoque, o contido no artigo 102, letras b e c, é incompatível com o contido no parágrafo 3° do artigo 5° da Constituição Federal, implantado em 2004.
                                    É como voto.


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