23 outubro 2012

Livre arbítrio e predestinação


Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto, sede prudentes como as serpentes e inofensivos como as pombas.” (Mateus 10:16)
“A aparente oposição irreconciliável entre liberdade e destino vem determinando as condutas e guiando os pensamentos dos homens deesde os tempos mais remetos.” (Rollo May, Liberdade e Destino)
 

               Eu poderia começar propondo uma indagação a meus leitores, mas deixo de fazê-lo porque ao longo desse tempo de convivência tenho notado que a grande maioria deles prefere manter-se à distância, mesmo quando o assunto seja, a meu ver, de relevância geral. Já comecei, lá se vão alguns anos, um texto dizendo que, “pretendendo escrever um livro sobre a felicidade, indaguei de vários amigos se eles se consideram felizes e o que entendem por isso. (clique aqui). Era claramente um convite para que o leitor se manifestasse sobre o tema, até porque não haverá ninguém num grupo social que alguma vez não se tenha perguntado isso. Quantas pessoas aderiram ao convite? Você tem como sabê-lo: basta acionar o sistema de “busca” do Migalhas. Mas, falando francamente, você irá fazê-lo? É claro que não. Quem perderia tempo tentando saber o que as pessoas pensam sobre a felicidade?
Quando tentei publicar o “Ninguém sofre porque quer” (clique aqui), enviei o texto a uma de nossas grandes editoras. Depois de algum tempo, ela, gentilmente, me devolveu os chamados “originais” do livro com uma observação curiosa: deixaremos de publicá-lo porque não sabemos como classificá-lo, pois é livro de auto-ajuda só na aparência. Tive ímpetos de escrever à editora indagando: “que vocês entendem por auto-ajuda?”
Leio constantemente, desde que me alfabetizei, mas, quando apresentei um quadro da chamada “síndrome do pânico”, lá se vão quarenta anos, cujo gatilho foi o lamentável estado da comarca para onde eu havia sido promovido “para restabelecer o prestígio da justiça”, segundo palavras textuais do desembargador Márcio Martins Ferreira, Presidente do Tribunal, os livros de auto-ajuda que me deram para superar o mal (lembro-me de um deles, o “Controle mental e espiritual”, do Narciso Irala) pouco me ajudaram. Foi preciso que o Paulo Gaudêncio me dissesse “você tem apenas dois problemas para serem resolvidos: um agudo e um crônico” para que eu tomasse consciência da gravidade da coisa, resolvesse tratar-me e voltar, depois de algum tempo, às minhas atividades normais. O que nos traz algumas indagações: se meu estado mental era tão precário que eu não conseguia sair à rua sozinho nem conseguia ler com proveito uma única página de livro, como então me decidi a procurar aquele médico e aceitar submeter-me a sessões semanais de psicoterapia que, naquele tempo, não era a coisa charmosa que é hoje? Como tomei conhecimento da existência dele, se aquele assunto, naquela época, era tabu?
Estamos, já se vê, nos domínios do confronto entre livre escolha e predestinação.
Espero que você não tenha passado por experiência tão dramática, mas certamente passou por esta: a escolha de uma casa para morar. Em primeiro lugar, casa ou apartamento? Qual o bairro mais conveniente? Qual o custo?
O corretor lhe indica três apartamentos no bairro escolhido por você. Gol do livre arbítrio. Você, por sua livre vontade (vontade que não é espontânea não é livre, concorda?), rejeita o primeiro por ser mal iluminado, o segundo por estar sob a rota de aviões e o terceiro porque o preço é abusivo. Goleada. É só ter paciência e escolher bem, pensa você. Então você é designado para trabalhar em outro Estado. Casa, apartamento ou hotel?
É claro que você pode recusar a designação e ser mandado embora do emprego. Vale a pena? Você, na verdade, escolhe aceitar a designação. Por sua espontânea vontade ou porque não tem escolha? Jogo empatado.
Eu poderia ir até o fim da página mostrando alternativas e os possíveis desdobramentos de cada escolha. Cito, porém, um caso concreto: quando jovem, eu pretendia ser engenheiro, não sei bem por que. Meu pai, que era um rábula de primeira, convenceu-me a fazer Direito. Fiz e cheguei aonde cheguei. Onde ficou a tal “vocação”?
A vida é uma somatória de circunstâncias. O Faeco, que depois se tornou ministro do STJ, era filho de juiz e solteirão convicto. O pai levou os familiares para um congresso de magistrados, o que também foi feito por outros juízes paulistas. O Raphael conheceu a Solange, engataram um namoro e deu no que deu. Você certamente terá algum caso semelhante para contar.
Quando se fala em “predestinação” é como se se pretendesse excluir nossa responsabilidade pela escolha feita. É karma, destino, maktub. Quem escolheu foram as deusas do destino. Quem eram elas? As Fatalidades, deusas que supervisionavam o destino das pessoas. Os gregos antigos referiam-se a elas como Moirai, ao passo que a mitologia romana chamava-as de Parcas.
Quando Freud adotou a figura mitológica de Édipo para tentar explicar a relação psicologicamente incestuosa entre mãe e filho, que ele tinha em mente? Quem foi Édipo?  
Relembremos. Esse não era o nome do guri, mas seu apelido. Laio era o rei da cidade de Tebas, na Grécia. Sua mulher, Jocasta, engravidou e o oráculo de Apolo informou-lhe que a criança que estava para nascer mataria o próprio pai. Temeroso do terrível do vaticínio, Laio decidiu livrar-se do filho logo que este nasceu. Assim, entregou-o a um pastor para que lhe desse sumiço. Já naquele tempo havia pastores de todo tipo. O bom homem (lembram-se da Branca de Neve?), em lugar de matá-lo, amarrou-lhe os pés e pendurou o garoto em uma árvore com a cabeça para baixo. Os vagidos da criança atraíram a atenção de um pastor de Corinto, cidade não muito distante de Tebas, que a socorreu e entregou aos reis de seu país, Pólibo e Mérope, que, como não tinham filhos, resolveram adotar a criança, que passaram a chamar de Édipo, por causa dos pés inchados decorrentes da posição em que ficara pendurado na árvore.
Pausa para reflexão: veja que os fatos acima sugerem tanto a presença da decisão pessoal como da predestinação.
Édipo cresceu como príncipe de Corinto, ignorando sua verdadeira origem, como é comum fazer-se com os filhos adotados. Certa vez, já adulto, como bom filho mimado, teve um desentendimento com um bêbado em uma festa, pois este havia lançado a suspeita de não ser ele filho legítimo dos reis de Corinto. In vino veritas, lembra? Decidido a esclarecer a questão, Édipo viajou para Delfos, a fim de consultar o oráculo. A resposta que obteve foi surpreendente: ele estava destinado a assassinar o pai e casar-se com a própria mãe, tal como fora dito a seus pais naturais. Horrorizado e acreditando que o oráculo se referisse a seus pais adotivos, decidiu o jovem nunca mais retornar a Corinto. Seguindo pela estrada, chegou a uma encruzilhada, onde se deparou com uma carruagem, cujo ocupante exigiu que ele se colocasse à margem da estrada para deixar a carruagem passar. Édipo recusou-se e seguiu-se uma briga entre ambos, durante a qual ele matou seu opoente, sem saber que se tratava de Laio, seu pai.
Morto o rei, assumiu o trono seu cunhado, Creonte, irmão de Jocasta. Quando chegou a Tebas, Édipo foi desafiado pela Esfinge, monstro com cabeça de mulher, corpo de leão e asas de águia, que propunha enigmas aos viajantes, devorando aqueles que não conseguissem resolvê-los. O enigma então apresentado, hoje famoso, foi este: Qual é o ser que tem quatro pés pela manhã, dois ao meio-dia e três à noite?
Enquanto você pensa na resposta, pensemos.
É claro que o autor da história era fã da predestinação, algo como “do destino ninguém foge”, nome bom pra telenovela.
Se você não matou a charada, fê-lo nosso herói: o Homem anda de quatro na infância, com as duas pernas na maturidade e, pobre de nós, nos arrastamos na sua velhice, apoiados numa bengala. Diz a lenda que, derrotada pelo esperto Édipo, a Esfinge arrojou-se do alto de um rochedo. Como prêmio, Édipo foi sagrado rei de Tebas. Sendo Jocasta uma viúva de boa aparência, casou-se com ela, não apenas para efeitos políticos, tanto que tiveram filhos: Etéocles, Polinice, Antígona e Ismena, ótimas sugestões de nomes para teus rebentos, prezada leitora.
A vida prosseguiu e Tebas foi assaltada por uma peste que, segundo o oráculo de Delfos, era uma maldição pelo assassinato de Laio. O rei amaldiçoa o criminoso desconhecido, que, segundo lhe diz Tirésias, o confiável adivinho de plantão, era ele mesmo. Jocasta, ao tomar conhecimento do incesto em que vivia, enforca-se. Seu marido, numa autopunição muito simbólica, arranca os próprios olhos, passando a perambular sem rumo.
Que que o Sigismundo viu nessa história para escolher seu personagem como símbolo de alguma coisa?
Se consideramos que tanto Laio como Édipo procuraram evitar que a predição se consumasse, sem êxito, concluiremos que o livre arbítrio cede diante do destino previamente traçado pelas Parcas. O pastor, à sua vez, esteve diante de uma opção: matar ou não matar a criança. Escolheu não matar. Pólibo e Mérope tiveram a oportunidade de ficar ou não com a criança, adotando-a ou não. Ficaram com ela e a adotaram. Por fim, diante da revelação de haver cometido incesto inconsciente, Jocasta tinha a liberdade de romper o casamento e tornar-se freira trapista, representante comercial ou capa da Playboy. Preferiu o suicídio. Que que as Parcas tiveram a ver com isso? Quanto ao Édipo, no primeiro capítulo da história, limitara-se a defender-se de um rei prepotente que nem se deu o trabalho de perguntar ao forasteiro “sabe com quem está falando?” No capítulo seguinte, diante daquela viúva alegre, fez o que qualquer um faria, como o Plácido Domingo: dar-lhe-ia uma cantada (clique aqui).
O próprio Freud foi vítima de sua predestinação. De fato, quando ele nasceu, um anjo torto pousou na guarda do berço e disse: “Vai, Sig, só pensar naquilo durante a vida”. Em lugar de discorrer sobre o castigo terrível e descabido imposto por Édipo a si mesmo, ainda que fosse absolutamente inocente do incesto de que seu draconiano superego o acusava, preferiu dedicar-se ao inocente romance entre mãe e filho, generalizando a coisa a mais não poder. Dizem alguns fofoqueiros que essa generalização tinha como explicação uma idéia que atormentava o Sig: “É verdade que eu cobiço minha mãe, mas não sou o único”. Isso é o destino de todos os homens. Ir às últimas conseqüências? Isso é coisa do livre arbítrio.

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