“As questões
ortográficas podem ser resolvidas sem dificuldade com o dicionário. Mas, para
isso, é preciso ter desconfiômetro. Duvidar sempre faz mal para a saúde, mas
bem para o texto.” - Josué Machado, Língua sem vergonha
“Todo texto é uma
máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte do seu trabalho.”
(Umberto Eco, Seis passeios pelos bosques
da ficção)
O Oscar tem um filho, Tomás. O Tomás
tem um filho, João. O João tem um filho, Pedro. O Pedro tem um filho, Antônio. O
Antônio tem um filho, Francisco. E o Francisco tem uma dúvida. De fato, ele
sabe dizer qual é a relação parental entre ele e Pedro, que é o pai do seu pai.
Daí pra cima, nada! Oscar, por exemplo, avô do seu avô, o que é dele? E Tomás?
Eu disse que ele tem uma dúvida, mas
retifico. Ele tem duas dúvidas. Sua namorada é a Maria Aparecida, que só fala
em casamento. A dúvida dele: se eles se casarem, ela será sua parente? Se for,
qual o grau desse parentesco?
Pensando bem, suas dúvidas são três.
Eis a terceira: se a noiva se chamasse Dilma e se ele se casasse com ela, ela
seria sua parente ou sua parenta?
É que o Francisco entrou para
a faculdade de Direito (quem entra na faculdade é o carteiro, mas ali
não assiste os professores, até porque quem assiste os professores é o médico,
já que os alunos assistem às aulas dos professores) e está encontrando
alguma dificuldade em entender o que alguns professores dizem.
Por exemplo, quando o professor fala
em “bem fungível” o Francisco deve incluir aí a sua Cidinha ou não? O professor
mostrou a diferença entre coisa útil, coisa necessária e coisa supérflua. A
serra elétrica que o Chico tem em casa é coisa necessária, útil ou supérflua?
Embora esteja no primeiro ano, ele
trabalha como “fórum boy” no escritório de advocacia de um amigo de seu pai. O
tal advogado entrou com uma ação junto à Vara de Família e pediu a concessão
antecipada da tutela reclamada, a ser concedida “inaudita altera pars”. Você acha que isso está certo? Pior: o
curador de família deu um parecer dizendo que os argumentos da pretensão vêm de
encontro à opinião da doutrina. O advogado quer saber se o promotor concordou
ou discordou dele. Que lhe parece?
Não bastasse isso, a juíza que recebeu
os autos mandou retificar a petição inicial porque está dirigida ao “Exmo. Sr.
Juiz de Direito” e ela é uma “Exma. Sra. Juíza de Direito”. Como você faria no
futuro para que outra juíza não se abespinhasse com um cabeçalho que ela reputa
machista?
Perguntas semelhantes a essas eu
costumava apresentar a meus alunos, no século passado, muitos dos quais ainda
viam nas petições do escritório onde trabalhavam coisas como “E.R.M.” e “Nestes
termos pede deferimento”, conforme me relatavam no intervalo de aulas. Tem
sentido isso? Que pode me acontecer se eu omitir essas velharias?
Já na primeira aula eu dava uma
indicação de como seria o curso. Entregava a cada um deles uma folha de papel
com algumas indagações, precedidas de uma observação: “Leia com atenção toda a
folha e depois faça o que vem determinado”. Depois disso vinham os itens a
serem obedecidos:
1.
Nome:
2.
Matrícula:3. Data de nascimento:
4. Se você for do sexo masculino, assobie a primeira estrofe do Hino Nacional Brasileiro
5. Se você nasceu em outro Estado da Federação, fique de pé e erga o braço direito
6. Se você tiver filhos, fique de costas para a lousa
7. Se você trabalha, além de estudar, erga os dois braços
8. Se você fala uma segunda língua, bata palmas
9. Se você for viúvo, rasgue a folha
10. Agora que leu tudo, atenda apenas as primeiras duas determinações
Eu não fazia isso por sadismo, mas
para que aprendessem que um advogado, um promotor, um juiz ou mesmo um delegado
de polícia somente deve iniciar o seu trabalho depois de ter conhecimento de
todos os dados do problema a ser por ele equacionado. Ou passará a mesma
vergonha daqueles alunos que, açodadamente, foram atendendo às determinações
por mim feitas antes de ler a última e caíram no ridículo.
Além disso, ficava a lição de que,
antes de utilizar uma palavra ou uma expressão incomum, especialmente se for em
língua estrangeira, o profissional do Direito deve certificar-se do seu exato
sentido e de sua correta grafia, até porque há alguns conceitos ou redações
vulgares que não correspondem ao conceito ou à redação técnicos, como se dá com
a palavra “tataravô”. Quem é seu tataravô? Tataravô ou tetravô? E seu trisavô?
E chega de fazer perguntas. Agora
quero saber das respostas. No fim da próxima semana darei as notas aos alunos
que voluntariamente acederam a este desafio. Como diz o Umberto Eco, “que problema seria se um texto tivesse de
dizer tudo o que seu receptor deve compreender. Não terminaria nunca.”
Muito bem engendrado, caríssimo! Mas a língua tá apenas mudando... é assim mesmo. Um dia será outra, para outros usuários.
ResponderExcluirAbração.
Triste panorama do descaso com nossa "inculta e bela". O pior é que sem o manejo adequado da própria língua não há sequer desenvolvimento mental satisfatório. Estamos formando analfabetos funcionais que não têm noção do significado das palavras necessárias às respectivas profissões (medicina, engenharia, direito). Nem sei se é possível ter esperança de melhora porque já não há sequer professores que saibam fazer os alunos pensar.
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