Quando era criança, eu tinha a
curiosidade de saber que tipo de livros meu pai lia, pois ele era um apaixonado
por livros, que comprava geralmente em sebos,
onde encontrava autênticas preciosidades. Eu ainda não conhecia essa história
de “objeto primário do amor”, mas tinha consciência de minha admiração por ele.
Ele não era um homem letrado, no sentido pernóstico da palavra, mas um self-made man, que aprendera francês
utilizando três elementos básicos: um livro escrito obviamente em francês, um dicionário
e uma gramática francesa. Simples, não é?
Dele sempre me lembro sentado numa
poltrona, com um livro ou uma caneta na mão, ou dedilhando sobre a mesa a
métrica de algum poema em fase de elaboração. Depois passou para a máquina de
escrever, que ele tricotava, como dizia, utilizando-se, com rapidez, de apenas
um dedo de cada mão. Daquela Royal, modelo 1938, saíram muitos livros, alguns
deles não só publicados como premiados.
Quis o destino que ele viesse a
falecer justamente depois de haver feito aquilo que mais gostava de fazer:
discursar sobre suas leituras, transmitindo, com sua voz tonitruante e
entusiasmo, aos ouvintes a emoção que sentira quando da leitura que fizera.
Falara sobre Petrarca, o notável poeta italiano, e, certamente, sua musa, Laura,
um amor platônico, como tantas loucas paixões dos poetas, que pretendem
transformar suas musas em pessoas de carne e osso. O que geralmente acaba em
tragédia.
Meu pai teve uma morte tranquila.
Morte feliz para ele e muito difícil para nós, que levamos muito tempo para nos
acostumarmos com sua ausência definitiva, até porque o esperávamos para celebrarmos
- o que é a ironia do destino! - o Dia dos Pais, em cuja véspera deu-se seu
passamento. A cada dia depois disso era como se ele estivesse para chegar da
viagem que fizera para participar de um congresso de escritores, onde a morte o
recolheu. Íamos até a porta, e nada! Até que sua imagem foi sendo levada cada
vez para mais fundo da memória e ali ficou, pendurada na parede do panteão que
dentro de cada um de nós homenageia os nossos mortos ilustres. E cujo pó nós
vamos tirando com a lembrança constante de sua imagem tão cara. Ele, que havia
falado sobre poesia e recitado com sua bela voz aquilo sobre que falava, se
emocionou certamente como das demais vezes em que falara em público. Ali , porém,
por algum motivo especial, a emoção foi mais forte e o coração dele não
suportou. Morreu como tanta gente gostaria de morrer: praticamente depois de um
orgasmo, como Raffaelo Sanzio, ainda que o do meu pai fosse meramente
intelectual. Um prazer parúsico, uma visão beatífica de Deus, certamente.
Retorno às estantes de sua variada
biblioteca. Os livros do Tarzan me levavam, como a tantos outros jovens, para
uma África onde o Edgar Rice Burroughs jamais havia estado. Ou saberia que
aquelas árvores imensas, dignas de uma floresta amazônica, só existiam em sua imaginação
de escritor, sempre perdoado, como todos os que escrevemos, por nosso direito à
chamada “licença poética”, que não se aplica apenas à poesia, é claro. O
campeão olímpico Johnny Weissmuller e seu inesquecível grito (mais tarde, para
minha decepção, uma dentre tantas que o conhecimento acaba nos impondo, vim a
saber que era uma construção de laboratório, que mesclava três ou quatro sons
diferentes) completava nossa fértil imaginação. Não tínhamos ainda malícia
suficiente para perceber que as lutas dele contra os crocodilos esparramavam
tanta água para que não percebêssemos que os animais eram, na verdade, feitos
de borracha. O DVD está aí para confirmar esse primarismo de “efeito especial”,
que lograva nos enganar.
Aliás, uma das brincadeiras
prediletas de nossa turma de jovens era um singular jogo de pega-pega. Alguém,
devidamente sorteado, deveria contar até dez e, depois disso, alcançar um de
nós que, obrigatoriamente, nos “escondíamos” no cimo de uma árvore de um
limitado bosque nas proximidades de nossas casas. Como as árvores eram próximas
umas das outras, à medida que subíamos, o galho vergava com o peso e passávamos
de uma árvore para outra, no melhor estilo do Tarzan. Vez ou outra um de nós
despencava lá do alto e vinha-se agarrando nos galhos inferiores, para impedir
a queda ou amainar os efeitos dela, quando ela era inevitável. Não era raro um
de nós ficar deitado algum tempo no chão, tentando superar os efeitos da inevitável
queda.
Outros livros me chamavam a atenção
na estante de meu pai. Como muitos eram escritos em francês, ficava no garoto
aquele assombro por ter em casa alguém que tinha acesso a um mundo fantástico a
que eu ainda não tinha condições de ir. Muitos deles falavam da Índia e seus
mistérios, pois meu pai era chegado ao budismo. Chamavam-me a atenção as
ilustrações que, embora ainda em preto-e-branco, mostravam aqueles deuses
incríveis, cujas histórias ele pacientemente me contava. Shiva e Shatki, o
homem em sua dualidade, cujos nomes, evidentemente, não guardei na ocasião, mas
fui aprender já adulto, quando entendi ser indispensável a alguém minimamente
culto o conhecimento da sabedoria que o Oriente teima em nos transmitir, por
mais que sejamos impermeáveis a essa milenar cultura.
Dentre os outros livros,
interessei-me por um de nome estranho, que eu supus se referisse a algum deus
hindu ou ao nome de algum lugar onde se passaria alguma das inúmeras aventuras
de Tarzan: Kon Tiki. Que diabos seria aquilo? Li e me convenci de que o autor
era tão imaginoso como o Edgar Rice Bourroughs, pois atravessar o Pacífico em
uma autêntica casca de noz era algo tão impensável como o homem pisar na Lua.
Algo absolutamente impossível de ser concretizado. Coisas de um Júlio Verne,
que ali também estava contemplado, com sua Volta ao Mundo em 80 Dias e, mais
atraente por seu conteúdo, A Guerra dos Mundos, livros que me faziam viajar com
meu foguete imaginário, como costumava fazer outros heróis daqueles tempos, o
Buck Rogers e o Flash Gordon.
Tendo vivido algum tempo na Noruega,
aproveitava o tempo livre em Oslo para o prazer de passear pelos museus do Bygdøy,
num dos quais está precisamente a réplica da incrível embarcação. Se em
condições normais eu já teria minha curiosidade despertada, graças àqueles
antecedentes que guardei na cabeça, fui ali lendo tudo o que era possível ler,
vendo fotografia por fotografia que registram a extraordinária aventura,
esgotando o material de cada parede do museu com avidez. E o filme feito na
ocasião por algum cinematografista amador, cuja coragem, também digna de todo
louvor, é impressionante.
A balsa Kon Tiki foi construída como uma cópia
de um barco pré-histórico, fico ali sabendo. Feita com nove troncos de madeira
leve, uma tripulação de apenas seis pessoas embarcou nela em 28 de abril de
1947, em Callao, no Peru, chegando à Polinésia depois de 100 dias. Thor Heyerdahl
também construiu uma réplica de uma embarcação egípcia, em 1969, que, saindo do
Marrocos, percorreu cerca de 3.000 milhas até chegar a Barbados. Construiu
mais tarde outra embarcação semelhante, com a qual percorreu 4.000 milhas em 57
dias, fazendo o mesmo curso, demonstrando, assim, ser possível que as
civilizações do Velho Mundo tivessem tido contato com o ainda não descoberto
Novo Mundo.
E vejo por toda parte o rosto do
extraordinário navegador Thor Heyerdahl, desde a juventude
até a idade avançada, sempre sorridente, de bem com a vida, que ele amou mais
do que tudo. Um antropólogo que não
ficou no gabinete, mas foi a campo fazer suas experiências concretas, como ao
visitar a ilha de Páscoa e trazer para a Noruega alguns daqueles bonecões de
pedra enormes, que, por sinal, também estão no museu.
Ao fim da visita,
chega-se a um mini auditório, onde alguém dá uma palestra a jovens
universitários. Mistura frases em inglês com outras em norueguês. É um homem
magro, alto, cabelos grisalhos. E tem o mesmíssimo rosto do navegador. Mas é simplesmente
impensável que, nascido em 1914, ainda esteja vivo e com tamanha lucidez.
Em 1947, com pouco mais
de 30 anos portanto, o notável antropólogo norueguês se dispôs a explorar, com
o mesmo material por eles antes utilizado, a rota que teria sido observada
pelos incas, que, saindo do Peru, cruzaram o Oceano Pacífico. A distância
física entre a Costa do Peru e as ilhas Tuamotu é de cerca de 4.000 milhas , mas os
incas teriam descoberto que, explorando adequadamente as correntes marítimas,
essa distância poderia ser feita em menor tempo, correspondente a 1.000 milhas físicas.
O barco, construído com
o auxílio dos nativos, utilizando talos de papiro, tinha cerca de 15 metros de comprimento
por 6 metros
de largura. Era uma autêntica jangada, impulsionada por uma vela quadrada. E
como não afundou? O segredo dos incas estava justamente nisso: não era um barco
para enfrentar as águas, mas um objeto para ser levado por ela, a seu bel
prazer. Logo, escolhendo adequadamente a corrente marítima, era só deixar-se
levar, rendendo-se às forças da natureza, que se chegaria ao destino.
Algo muito próprio do
espírito de um norueguês. Realmente, enquanto em outros países as pessoas
“questionam” os fatos naturais, até mesmo quando qualificam o tempo de “bom” e
“mau”, como se a natureza estivesse sujeita a avaliação ética (“piove,
governo ladro!”, como se diz em algum lugar da Europa), na Noruega
convive-se com a natureza, aceitando o que ela nos traz.
Chuva e frio não impedem
que as mães saiam às ruas com crianças de poucos meses, mesmo porque é em tal
ambiente que elas viverão. Assim, deixá-las na calçada enquanto a mãe entra na
loja para fazer compra, em pleno inverno, é das coisas mais comuns na Noruega.
Diz-se que uma delas, quando fez isso em outro país, foi chamada ao distrito
policial, onde queriam processá-la por haver abandonado o filho à própria
sorte.
Como autênticas bonecas,
elas ali ficam, com o corpo todo agasalhado e apenas os olhos, o nariz e as
bochechas vermelhas de fora. E a boquinha aberta, com a qual elas vão
recolhendo, quando calha, a garoa ou a neve que lhe cai no rosto. Nada a
admirar, portanto, na escolha feita pelo viking do século XX, que trazia na
alma a tradição que lhe foi transmitida por seus antepassados.
Consta que quando
Francisco Pizarro, considerado o desbravador do Oceano Pacífico, vinha do
Panamá para o leste, por volta de 1526, encontrou no caminho embarcações feitas
de madeira leve, com cerca de 20 peruanos remando. O segredo dessas embarcações
é que, além de feitas com madeira que não afundava, não tinham como reter água,
que retornava naturalmente ao mar pelas brechas deixadas ao amarrar o material
utilizado em sua confecção, pois ainda não haviam imaginado aquilo que a prof.
Maria Helena Rolim, especialista em Direito do Mar, tanto conhece: a ballast
water, ou água de lastro.
Isso impressionou tanto
o navegador espanhol que ele recolheu vários dos nativos para ensinarem a seus
homens a técnica de confecção daquele tipo de embarcação.
Pois nosso bravo Thor
Heyerdhal resolveu explorar a mesma técnica, o que fez com sucesso, como se vê
do material constante do museu, cujo logotipo é internacionalmente conhecido.
Terminada a exposição,
fomos cumprimentar o expositor, que, de fato, se chama Thor Heyerdhal, nome que
carrega com muito orgulho e ao qual o pai acrescentou um Júnior. É também
pesquisador e nos deu várias indicações a respeito do tema que há tanto tempo
ocupa a família Heyerdhal. Além de um livro autografado.
Seu pai, em verdade,
faleceu em 2002, segundo nos conta o orgulhoso filho, reconhecendo que, de
fato, se parece muito com o extraordinário navegador, o que, compreensivelmente,
o enche de orgulho ainda maior do que o que já lhe traz o nome. E que me acrescenta
que os objetos que ali se encontram não são réplicas, como eu imaginara, mas os
originais utilizados na famosa viagem.
Uma autêntica viagem no
tempo!
Voltei para o hotel
imaginando como se sentiria meu pai se passasse pela experiência por que acabo
de passar. Não creio que seu coração tivesse suportado.
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