Ao
Dr. Helano, com estima
Dizem que os erros médicos são cobertos
pela terra. Na Noruega isso não ocorre. Ali, tais erros são cobertos pela neve.
O que sempre nos enche de coragem toda vez que precisamos ir a um consultório
médico ou mesmo a um hospital de lá. Saber se alguém morreu de pneumonia dupla
ou de mera pneumonia simples pode interessar a algum estatístico, não à família
e aos amigos do morto. Menos ainda ao morto. Logo, não saindo vivo de uma
cirurgia, que me transformem em cinza e façam dela um bom adubo para minhas orquídeas,
eis meu último desejo. Pelo menos se lembrarão de mim cada vez que ela florir,
sem terem o trabalho de ir até o cemitério conferir se ainda estou lá bem
guardado.
É o que as pessoas geralmente fazem,
pois levar flores para quem não pode cheirá-las é perda de tempo e de dinheiro.
Igual aos japoneses, que levam arroz para o morto, que teima em permanecer
deitado e sem apetite. E saber que ainda serei útil depois de morto me dá uma
certa tranquilidade que compensará eventual erro médico que me tenha tirado de
cena antes do tempo previsto.
Aliás, os cemitérios da Noruega são
tão simpáticos, que não me parece que seus habitantes tenham do que reclamar.
Eles não chegam a ser magníficos hotéis cinco estrelas, com espaço cultural e
biblioteca circulante como os hospitais de lá, mesmo porque é discutível que os
mortos queiram ler alguma coisa. Mas é até prazeroso visitar as campas, todas
muito discretas, como convém à igualdade das caveiras que lá estão guardadas,
pois não podemos esquecer que aquilo é uma sociedade socialista, uma espécie de
Cuba, mas de primeira classe. E aquelas inscrições tão simpáticas, dizendo
coisas que talvez faltou dizer em vida. E às vezes há uma igrejinha medieval ao
lado, para fazermos nossas orações pelos que se foram.
Isso é algo que sempre me intriga:
ou bem acreditamos que haja alma ou não acreditamos. Se acreditamos, sabemos
que ela certamente não estará confinada às quatro paredes da sepultura. Se não
acreditamos, sabemos que tudo o que há ali embaixo é um corpo em decomposição ou
um esqueleto. Logo, para que ir ao cemitério?
Nos Estados Unidos, como é bastante
sabido, o pavor de serem obrigados a pagar indenizações astronômicas tem
afastado bons cirurgiões das salas de cirurgia. Eles preferem fazer pesquisa ou
ministrar medicamentos do que correr o risco de serem chamados à Corte para
explicar a morte do paciente ou algum dano sobrevindos da cirurgia. “O paciente queixa-se de que a cicatriz
deixada no abdômen dele está um centímetro maior do que o necessário. E pede um
milhão de dólares de indenização. O senhor é inocente ou culpado?” E tome
acordo, patrocinado pela companhia de seguros, cujo prêmio o médico paga o ano
todo.
Antes os médicos inventaram a alergia para diagnosticar tudo aquilo
cuja causa desconheciam. Hoje falam em virose,
um novo nome para a mesma ignorância. Em compensação, os advogados inventaram a
palavra iatrogenia. Esta é utilizável
contra os médicos. “Efeito secundário danoso ao paciente, decorrente da
atividade médica” segundo qualquer dicionário médico. Previsível e evitável,
segundo se diz na petição inicial. E tome pedido de indenização por dano moral.
Amigo meu que passeava nos States,
sentiu-se mal e foi levado às pressas a um daqueles hospitais de nome famoso.
Feito o diagnóstico, o médico indicou cirurgia de urgência. Meu amigo ficou
apavorado, pois não conhecia o tal médico. Foi acalmado pela delicada esposa: “Veja o lado positivo da coisa, querido.
Vamos imaginar que ele cometa um erro e você morra. Já imaginou o valor da
indenização que eles vão me pagar?” Ele deve ter ficado muito feliz com
essa possibilidade! Eu, acontecesse isso comigo, chamaria o escrivão e faria um
testamento, deixando meus bens para o taxista que me levou ao hospital!
Os países latinos têm uma atração
pela especialização, que consiste em alguém saber cada vez mais sobre cada vez
menos, até o dia em que saberá praticamente tudo sobre praticamente nada, no
dizer de um humorista, o nosso professor de Medicina Legal, o Almeidinha. E
isso tem produzido situações curiosas, como a daquela senhora que, estando no
banho preparando-se para ir a uma festa importante, deparou-se com um caroço no
seio esquerdo. Terminou o banho, arrumou-se para a festa, mas a ideia de um
câncer de mama não lhe saía da cabeça, o que foi percebido por uma amiga. “Ora”, diz a tal amiga, “tenho um cancerologista extraordinário, ali
na Avenida Paulista. Vá ao consultório dele no prédio número 47 e fale com o
doutor Xavier”. No dia seguinte, a ainda nervosa senhora lá se foi para a Paulista,
mas seu estado de ânimo a fez confundir-se e entrou no prédio número 74, onde
funcionava um escritório de advocacia, talvez o do Magalhães. A aflita mulher foi-se
logo dirigindo à secretária: “Eu tenho um
câncer no seio esquerdo e quero um doutor que me atenda com urgência”. A
secretária, sem entender nada, foi logo dizendo: “Mas a senhora está enganada. O doutor Magalhães é especialista em
Direito”. E a mulher, surpresa: “Mas
isso é especialização demasiada!”
Tal situação certamente jamais
ocorreria na Noruega, onde os médicos têm uma visão holística do organismo
humano. É como mecânico de automóvel: ou entende de tudo ou não nos serve. Modestamente,
um desses mecânicos, num país da América do Sul, colocou uma placa na frente da
oficina: “Especializado em carros
nacionais e importados”. Ou seja, especializado em tudo, como muitos
médicos noruegueses.
Imagine a cena: alguém chega ao
consultório do médico, que eles chamam de lege,
e informa: “Doutor, eu senti uma
vertigem, caí sobre o braço, que se partiu, e, com isso, perdi o apetite.” Fosse
no Brasil, seriam três, pelo menos, os médicos
a serem consultados: o tomografista, para verificar a origem da vertigem,
talvez um tumor no cérebro; o radiologista, para ver se a lesão no braço não
seria uma fratura cominutiva; e o nutricionista, para elaborar uma dieta
alimentar para o paciente readquirir o prazer de comer. Além do clínico geral
que atendera inicialmente o paciente, é claro. Sendo na Noruega, a secretária
do médico retira sangue de teu braço, faz os exames ali mesmo, na salinha
contígua, e ele, em seguida, diagnostica, pelo exame de sangue, que a vertigem
foi devida à brusca mudança do tempo, o braço deve ser engessado e o paciente
deve tomar óleo de fígado de bacalhau para suprir as deficiências alimentares
decorrentes da inapetência. “E volte
daqui a três meses.”
Em outros países, a coleta de
material para exame é feita no laboratório, com toda assepsia possível. Imagino-me
indo fazer um exame de urina aqui no Brasil e sendo orientado pela enfermeira. “Com este gaze úmido o senhor lava o seu como-direi? Com este outro, seco, o
senhor enxuga o como-direi? e colhe o material com todo cuidado para não haver
contaminação. Depois de colhido o material, o senhor o coloca neste frasco sem
tocar na parte interna, pois ele está esterilizado. Depois, o senhor fecha o
frasco com esta tampa, tomando cuidado para não tocar na parte interna, porque
ela também está esterilizada. Feito isso, o senhor me traz o frasco fechado
para fazermos o exame”.
Já na Noruega o procedimento é
diferente. “O senhor compra na farmácia
um frasquinho, urina dentro e me traz tudo aqui”. Eu compro o tal
frasquinho, abro, colho o material, fecho o frasquinho e levo ao consultório.
Ali mesmo o material é examinado e se conclui que eu tenho sabonete na urina. “Se o senhor me disser a marca do sabonete
talvez eu confira se não seria aquele com que lavei a mão antes de iniciar o
tal procedimento. Vai ver não enxaguei devidamente o como-direi.”
Imagino como deve ser uma curetagem.
Ou uma operação cardíaca. Nesta, talvez o cirurgião abra o peito do paciente,
retira o órgão a ser operado e pede ao próprio paciente: “O senhor segure um instante enquanto eu pego a tesoura”. Essa
integração entre paciente e médico é muito valiosa para a recuperação do
operado. Feita a cirurgia e costurado o peito do paciente, uma surpresa. “Doutor, que faço com este pedaço de safena
que o senhor me pediu para segurar?” “Xii! Vai ver que eu usei o caninho
plástico da bolsa d’água destilada para fazer a ponte cardíaca!”
Pensando bem vivendo naquele
paraíso, você acha que vão preocupar-se com essas miudezas?
... o Dom Jayme, aqui do barro vermelho missioneiro, versejou, ... talho grande se costura e se mija na queimadura, em seu Medicina Campeira, ... achei muito parecida com a que se pratica nos fiordes nuruegueses, ... me veio de cara, ... tudo o que você escreve, querido Mestre, tem um sabor especial, um gosto de mundo, um cheiro de vida, fazendo esse índio meio bruto, esse gaúcho cru, agradecer a cada dia ao Altíssimo - que agora parece estar bem de advogado - o privilégio de poder privar dessas maravilhas, produzidas por essa grande alma, por esse ser humano raro, por esse abençoado morador da Vila de São Vicente, ... do catecúmeno, Cleanto Farina Weidlich - Carazinho RS.
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