13 setembro 2013

Casa de doidos


Findo o jantar, pusemo-nos a conversar, enquanto degustávamos o licor, que era, de fato, delicioso. Fosse pelo assunto, fosse pelo álcool, em pouco tempo aquilo era uma barafunda dos diabos, pois alguém, sentado do lado direito da larga mesa quadrada, retrucava o que dissera alguém que estava à esquerda da mesa, enquanto os demais discutiam, em voz alta, assunto diverso. Procurando por ordem naquilo, bati levemente com a colher no copo e pedi silêncio. Que falasse um de cada vez, pois tempo era coisa que nos sobrava e, segundo o dono da casa, havia mais daquele licor da adega. Um de nós, tido, com razão, como exímio contador de casos, até com livros já publicados, pediu a palavra e narrou uma história que, segundo nos garantiu, era absolutamente verdadeira. Repito-a tal como a ouvi.
Disse ele que, há muitíssimos anos, era representante de uma empresa vendedora de peças de veículos automotivos e tinha como área de atuação a região oeste do Estado, compreendendo as cidades ali em torno de Dracena e Araçatuba, cujo acesso não tinha as facilidades de hoje, tanto que trazia sempre no porta-malas do carro as indefectíveis correntes que, em dias de chuva, deveriam ser colocadas em torno dos pneus, para impedir que eles derrapassem quando passassem por estradas lamacentas, como sabe quem já passou dos sessenta.
Naquele dia específico dirigia-se ele a uma dessas cidadezinhas, tendo a viagem sido retardada exatamente por causa da chuva e as providências que ela exigia, como a trabalhosa colocação das tais correntes. Fez-se necessário, assim, que ele procurasse um local para passar a noite e seguir viagem no dia seguinte. Como ele precisava apenas de uma cama onde despejar o corpo cansado, não fazia sentido hospedar-se num hotel, se é que houvesse algum naqueles ermos, pois o valor modesto de suas comissões não justificava tanto luxo. Assim, atraído pelo luminoso bruxuleante, parou o carro diante de uma simples hospedaria, recolheu a maleta e dirigiu-se à portaria, para registrar-se. Não havia ninguém que o atendesse mas, sobre o balcão, um livro aberto com uma caneta ao lado. Nele estavam registrados vários nomes, com indicação de endereço, data e horário de entrada, bem como o quarto a ser ocupado. Na parede havia um chaveiro, com um gancho correspondente a cada quarto, não mais que meia dúzia. A única chave pendurada correspondia ao quarto número 5.
Ele procurou o banheiro, onde se demorou algum tempo, voltou à portaria, esperou durante um tempo razoável e, como ninguém aparecesse e o sono já o incomodava, lançou ele mesmo os seus dados no livro de registro. Como não trouxesse relógio, valeu-se da indicação do enorme relógio de parede, que marcava 22,20 horas. Pegou a chave do único quarto disponível, subiu o pequeno lance de escada e logo estava abrindo a maleta para a mudança de roupa. Só então reparou que a cama ainda estava desfeita, a sugerir que durante o dia nenhuma camareira ali entrara. Veio-lhe ao rosto um sorriso, ao lembrar-se do filme do Hitchcock e o Bates hotel com seu personagem macabro, que marcou definitivamente a carreira cinematográfica de seu intérprete.
Mal caiu na cama todos os seus temores desapareceram, substituídos por um sono ininterrupto, até porque o barulho do tráfego de veículos da avenida São João, onde morava, fora substituído pelo cri-cri dos grilos, bem mais suaves. Acordou com a luz do sol varrendo o quarto. Saltou da cama assustado e dirigiu-se ao banheiro para as chamadas abluções matinais, como fez questão de ressaltar em seu relato, para gozo dos presentes.
À direita havia um chuveiro e um cano que ia de uma parede a outra, fronteira àquela, com uma cortina de plástico retrátil, coisa comum nas cidades do Interior ou da periferia das grandes cidades, ao contrário das “cortinas de vrido”, como uma faxineira recém vinda do Nordeste denominava os boxes dos banheiros das casas onde trabalhava. No parapeito do vitral havia alguns potes de possíveis cremes de beleza, algo que lhe pareceu bizarro e que ele atribuiu a descuido de hóspede anterior. Enquanto buscava explicação para aquela bizarrice, porém, seu olhar voltou-se para a esquerda, onde só então percebeu a existência ali de uma banheira. Seu espanto agora era infinitamente maior, até porque dentro da banheira, com apenas o rosto e os bicos dos seios acima do nível de água, havia um corpo de mulher.
Fez-se um silêncio entre os ouvintes, todos ansiosos para os esclarecimentos que certamente viriam. Ele, como bom narrador, fez uma pausa, encheu um copo de água, sorveu-a sem pressa, passou o guardanapo sobre os lábios e só então prosseguiu.
Segundo ele, aproximou-se da moça, que estava com os olhos fechados, e tentou sentir-lhe o pulso, sem êxito. Apalpou então a jugular dela e constatou que, como tudo indicava, ela estava morta.
Que fazer diante daquele cadáver boiando na água já fria? Recapitulando rapidamente os fatos, chegou à conclusão de que passara a noite no quarto de uma hóspede que, agora, está morta. Morte acidental? Estivera mais alguém no quarto antes dele? Algum parceiro? Algum vizinho de quarto?
Seu instinto de sobrevivência aconselhou-o a cair fora dali o mais rápido possível, pois, descoberto o cadáver, lhe seriam feitas inúmeras perguntas que ele, certamente, não teria como responder. Recolocou a roupa da véspera, recolheu o pijama, fechou a maleta e com ela na mão saiu do quarto, pensando em descer a escadinha da frente. Antes disso, porém, notou que o quarto onde dormira, era, ao contrário do que lhe parecera na véspera, não o de número 5, mas o de número 3. É que a simplicidade das chaves daquele tipo, sem possibilidade de muitas variações na ranhura, como ocorre hoje, permitira que a porta fosse aberta mesmo com a utilização de uma chave que não correspondia exatamente à respectiva fechadura. Mais um complicador na já não pequena série de explicações que ele teria de dar.
Dirigiu-se, então, ao fundo do corredor, onde, como imaginara, havia uma saída de emergência, por onde foi ter a uma outra escada, de dois lances, que o levou ao escuro porão da casa. Às apalpadelas, conseguiu chegar à sua porta. Abrindo-a, deu de cara com um empregado do hotel, que vinha buscar algo no porão.
“Cheguei da rua e estou precisando urinar. Achei que o banheiro fosse aqui” justificou ele, com presença de espírito que nem ele sabe onde conseguiu, conforme nos confessou. Coincidentemente, havia, de fato, o banheiro dos empregador, cuja porta ficava ao lado daquela. Ele agradeceu, entrou lá e produziu todos os barulhos próprios de tal lugar, inclusive o da descarga.
Saindo, dirigiu-se à portaria, sem saber muito bem o que dizer. Perguntou se havia quarto disponível, recebendo resposta negativa.
“Aliás, aconteceu uma coisa curiosa”, acrescentou. “Eu fui deitar à meia-noite e um dos quartos ainda estava vago. Alguém deve ter entrado depois disso e se registrou, levando a chave do quarto faltante. No entanto, para o senhor não perder a viagem convido-o a tomar o café da manhã, por conta da casa.”
“Mas vocês servem café da manhã depois das 10 horas?”, indagou ele, pois o enorme relógio da parede indicava 10,20 horas.
O atendente deu uma sonora gargalhada.
“Ainda são oito horas”, disse o atendente. “Esse relógio está sem funcionar há quase um mês e o gerente ainda não mandou consertar”.
Ele rejeitou o convite, despediu-se apressadamente, pegou o automóvel e escafedeu-se daquela casa de doidos. Sabe-se lá o que ainda lhe faltava ocorrer.

3 comentários:

  1. Empolgante narrativa. Excelente escrita. Ótimo blogue.
    Verdadeiramente, um tesouro a revisitar.
    um abraço,
    Ilona

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  2. ... ficou faltando o próximo numero, ... fiquei curioso com os desdobramentos desse historia, ... quero saber mais, ... vai ver que essa pobre vitima tem algum parentesco comigo, ... me senti incluso nessa historia, ficaram faltando muitas respostas, ... sem falar nas perguntas, ou seja, tudo que um bom cronista tem que instigar, ...

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  3. Caro amigo Cleanto. Penso que entre o escritor e o leitor deve haver uma parceria. Já imaginou que chatice seria um texto em que o escritor disse tudo o que havia a dizer?

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