Findo
o jantar, pusemo-nos a conversar, enquanto degustávamos o licor, que era, de
fato, delicioso. Fosse pelo assunto, fosse pelo álcool, em pouco tempo aquilo
era uma barafunda dos diabos, pois alguém, sentado do lado direito da larga mesa
quadrada, retrucava o que dissera alguém que estava à esquerda da mesa,
enquanto os demais discutiam, em voz alta, assunto diverso. Procurando por
ordem naquilo, bati levemente com a colher no copo e pedi silêncio. Que falasse
um de cada vez, pois tempo era coisa que nos sobrava e, segundo o dono da casa,
havia mais daquele licor da adega. Um de nós, tido, com razão, como exímio
contador de casos, até com livros já publicados, pediu a palavra e narrou uma
história que, segundo nos garantiu, era absolutamente verdadeira. Repito-a tal
como a ouvi.
Disse
ele que, há muitíssimos anos, era representante de uma empresa vendedora de
peças de veículos automotivos e tinha como área de atuação a região oeste do
Estado, compreendendo as cidades ali em torno de Dracena e Araçatuba, cujo
acesso não tinha as facilidades de hoje, tanto que trazia sempre no porta-malas
do carro as indefectíveis correntes que, em dias de chuva, deveriam ser
colocadas em torno dos pneus, para impedir que eles derrapassem quando
passassem por estradas lamacentas, como sabe quem já passou dos sessenta.
Naquele
dia específico dirigia-se ele a uma dessas cidadezinhas, tendo a viagem sido
retardada exatamente por causa da chuva e as providências que ela exigia, como
a trabalhosa colocação das tais correntes. Fez-se necessário, assim, que ele
procurasse um local para passar a noite e seguir viagem no dia seguinte. Como
ele precisava apenas de uma cama onde despejar o corpo cansado, não fazia
sentido hospedar-se num hotel, se é que houvesse algum naqueles ermos, pois o
valor modesto de suas comissões não justificava tanto luxo. Assim, atraído pelo
luminoso bruxuleante, parou o carro diante de uma simples hospedaria, recolheu
a maleta e dirigiu-se à portaria, para registrar-se. Não havia ninguém que o atendesse
mas, sobre o balcão, um livro aberto com uma caneta ao lado. Nele estavam
registrados vários nomes, com indicação de endereço, data e horário de entrada,
bem como o quarto a ser ocupado. Na parede havia um chaveiro, com um gancho
correspondente a cada quarto, não mais que meia dúzia. A única chave pendurada
correspondia ao quarto número 5.
Ele
procurou o banheiro, onde se demorou algum tempo, voltou à portaria, esperou
durante um tempo razoável e, como ninguém aparecesse e o sono já o incomodava,
lançou ele mesmo os seus dados no livro de registro. Como não trouxesse
relógio, valeu-se da indicação do enorme relógio de parede, que marcava 22,20
horas. Pegou a chave do único quarto disponível, subiu o pequeno lance de
escada e logo estava abrindo a maleta para a mudança de roupa. Só então reparou
que a cama ainda estava desfeita, a sugerir que durante o dia nenhuma camareira
ali entrara. Veio-lhe ao rosto um sorriso, ao lembrar-se do filme do Hitchcock
e o Bates hotel com seu personagem
macabro, que marcou definitivamente a carreira cinematográfica de seu
intérprete.
Mal
caiu na cama todos os seus temores desapareceram, substituídos por um sono
ininterrupto, até porque o barulho do tráfego de veículos da avenida São João,
onde morava, fora substituído pelo cri-cri dos grilos, bem mais suaves. Acordou
com a luz do sol varrendo o quarto. Saltou da cama assustado e dirigiu-se ao
banheiro para as chamadas abluções matinais, como fez questão de ressaltar em
seu relato, para gozo dos presentes.
À
direita havia um chuveiro e um cano que ia de uma parede a outra, fronteira
àquela, com uma cortina de plástico retrátil, coisa comum nas cidades do
Interior ou da periferia das grandes cidades, ao contrário das “cortinas de
vrido”, como uma faxineira recém vinda do Nordeste denominava os boxes dos
banheiros das casas onde trabalhava. No parapeito do vitral havia alguns potes
de possíveis cremes de beleza, algo que lhe pareceu bizarro e que ele atribuiu
a descuido de hóspede anterior. Enquanto buscava explicação para aquela
bizarrice, porém, seu olhar voltou-se para a esquerda, onde só então percebeu a
existência ali de uma banheira. Seu espanto agora era infinitamente maior, até
porque dentro da banheira, com apenas o rosto e os bicos dos seios acima do
nível de água, havia um corpo de mulher.
Fez-se
um silêncio entre os ouvintes, todos ansiosos para os esclarecimentos que
certamente viriam. Ele, como bom narrador, fez uma pausa, encheu um copo de
água, sorveu-a sem pressa, passou o guardanapo sobre os lábios e só então
prosseguiu.
Segundo
ele, aproximou-se da moça, que estava com os olhos fechados, e tentou
sentir-lhe o pulso, sem êxito. Apalpou então a jugular dela e constatou que,
como tudo indicava, ela estava morta.
Que
fazer diante daquele cadáver boiando na água já fria? Recapitulando rapidamente
os fatos, chegou à conclusão de que passara a noite no quarto de uma hóspede
que, agora, está morta. Morte acidental? Estivera mais alguém no quarto antes
dele? Algum parceiro? Algum vizinho de quarto?
Seu
instinto de sobrevivência aconselhou-o a cair fora dali o mais rápido possível,
pois, descoberto o cadáver, lhe seriam feitas inúmeras perguntas que ele,
certamente, não teria como responder. Recolocou a roupa da véspera, recolheu o
pijama, fechou a maleta e com ela na mão saiu do quarto, pensando em descer a
escadinha da frente. Antes disso, porém, notou que o quarto onde dormira, era,
ao contrário do que lhe parecera na véspera, não o de número 5, mas o de número
3. É que a simplicidade das chaves daquele tipo, sem possibilidade de muitas
variações na ranhura, como ocorre hoje, permitira que a porta fosse aberta
mesmo com a utilização de uma chave que não correspondia exatamente à
respectiva fechadura. Mais um complicador na já não pequena série de
explicações que ele teria de dar.
Dirigiu-se,
então, ao fundo do corredor, onde, como imaginara, havia uma saída de
emergência, por onde foi ter a uma outra escada, de dois lances, que o levou ao
escuro porão da casa. Às apalpadelas, conseguiu chegar à sua porta. Abrindo-a,
deu de cara com um empregado do hotel, que vinha buscar algo no porão.
“Cheguei
da rua e estou precisando urinar. Achei que o banheiro fosse aqui” justificou
ele, com presença de espírito que nem ele sabe onde conseguiu, conforme nos
confessou. Coincidentemente, havia, de fato, o banheiro dos empregador, cuja
porta ficava ao lado daquela. Ele agradeceu, entrou lá e produziu todos os
barulhos próprios de tal lugar, inclusive o da descarga.
Saindo,
dirigiu-se à portaria, sem saber muito bem o que dizer. Perguntou se havia
quarto disponível, recebendo resposta negativa.
“Aliás,
aconteceu uma coisa curiosa”, acrescentou. “Eu fui deitar à meia-noite e um dos
quartos ainda estava vago. Alguém deve ter entrado depois disso e se registrou,
levando a chave do quarto faltante. No entanto, para o senhor não perder a
viagem convido-o a tomar o café da manhã, por conta da casa.”
“Mas
vocês servem café da manhã depois das 10 horas?”, indagou ele, pois o enorme
relógio da parede indicava 10,20 horas.
O
atendente deu uma sonora gargalhada.
“Ainda
são oito horas”, disse o atendente. “Esse relógio está sem funcionar há quase
um mês e o gerente ainda não mandou consertar”.
Ele
rejeitou o convite, despediu-se apressadamente, pegou o automóvel e
escafedeu-se daquela casa de doidos. Sabe-se lá o que ainda lhe faltava
ocorrer.
Empolgante narrativa. Excelente escrita. Ótimo blogue.
ResponderExcluirVerdadeiramente, um tesouro a revisitar.
um abraço,
Ilona
... ficou faltando o próximo numero, ... fiquei curioso com os desdobramentos desse historia, ... quero saber mais, ... vai ver que essa pobre vitima tem algum parentesco comigo, ... me senti incluso nessa historia, ficaram faltando muitas respostas, ... sem falar nas perguntas, ou seja, tudo que um bom cronista tem que instigar, ...
ResponderExcluirCaro amigo Cleanto. Penso que entre o escritor e o leitor deve haver uma parceria. Já imaginou que chatice seria um texto em que o escritor disse tudo o que havia a dizer?
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