"A verdade libertar-vos-á." (João, 8, 32
Foi numa terra distante. Há muito tempo.Ali havia um estranho e inexplicável fenômeno: todas as
pessoas nasciam cegas. Evidentemente, isso decorria de uma graça divina, pois
esse feliz atributo evitava que as pessoas vissem tudo o que há de sórdido nas
realidades que nos cercam. Nem pobres, nem doentes, nem cadáveres. E tanto era
assim que periodicamente eram realizadas cerimônias religiosas, com ação de
graças ao bom deus, por haver-lhes dado o maravilhoso dom da vida e por
havê-los feito à sua imagem e semelhança (pois o deus deles era cego e justo,
tendo na mão direita uma balança, símbolo da ponderação, e na sinistra uma
adaga, símbolo da execução, ainda que nos pareça estranho se possa fazer justiça
na cegueira).
Prendas riquíssimas eram trazidas de todas as regiões da
tribo, para serem ofertadas em tais festividades, cuja freqüência mostrava o elevado
espírito religioso daquele nobre e feliz povo, que não regateava o seu dízimo
ao responsável pela sua prosperidade.
Deu-se que, certo dia, um dos habitantes daquele longínquo e
feliz povoado sofreu um acidente quase fatal. Ou fatal, como também se pode
concluir.
Foi assim: encontrava-se ele encarapitado em uma árvore,
chamada, por motivos que se desconhece, árvore
da vida, colhendo seus frutos (frutos proibidos, pois a árvore pertencia
ao parque público), quando, por ira dos deuses, dali caiu e bateu o crânio em
uma pedra. Durante muitas luas ficou ele entre a vida e a morte. Preces
fervorosas foram feitas por seus familiares; ervas medicinais foram-lhe ministradas;
sacrifícios ofertados em sua intenção; benzimentos e toda sorte de recursos
foram utilizados para restituir a saúde ao chefe da família. Tudo inútil.
Certa manhã, contudo, deu-se o inesperado: quando os
familiares se encontravam no templo, em adoração, implorando por sua saúde, o acidentado
acordou com a saúde recuperada. Um milagre, por certo. Que somente não foi
completo em face de uma particularidade, uma pequena sequela daquele lamentável
acidente: ele não conseguiu recuperar a cegueira. Por efeito da queda ele havia
adquirido o lastimável estigma da visão. O terrível dom de ver. Não te todo, é
verdade, mas o bastante para distinguir um pardal de um falcão.
Mal acreditando no sucedido, foi ele ao templo, pois era dia
de ação de graças, ocasião propícia ao agradecimento pela saúde restabelecida,
parcialmente embora. E momento adequado para fazer penitência, com vistas a recuperar
a cegueira perdida.
Andando com muita cautela, desacostumado da perda da vista,
dirigiu-se ao templo. No caminho impressionou-se com os resíduos que ia
encontrando, o aspecto das moradias, das ruas esburacadas e sujas, em cotejo
com o esplender do templo. Entrou. Procurando esconder sua desgraça, mantinha
os olhos fechados, como se os demais fiéis pudessem perceber aquele pormenor.
Postou-se num canto, muito discretamente, e pôs-se a fazer suas orações, em
silêncio, contritamente. Os olhos, porém teimavam em abrir, por mais que se
esforçasse por fechá-los. Era uma força invencível, realmente um castigo, uma
tentação diabólica. Cedendo, por fim, a ela passou a examinar o que se passava
ao seu redor. As pessoas orando com fervor. A certa altura, as ofertas de
costume. Prendas preciosas sendo levadas ao altar, em honra ao venerado deus.
Uma cerimônia tocante, realmente.
Terminada a liturgia, as pessoas foram saindo, aos magotes,
vagarosamente. O pecador permaneceu no templo, para confessar-se de sua desdita
a algum sacerdote. Olhos pregados no altar, viu, claramente visto, o chefe da
tribo retirar, uma a uma, as oferendas que os fiéis haviam lá entregue. Tocado
pela curiosidade, nosso pecador pôs-se a seguir, em silêncio, aquele transporte
dos bens que, segundo os regulamentos da tribo, deveriam permanecer no templo.
Soube, então, que o chefe e os sacerdotes transportavam para suas casas aqueles
bens todos. Ou quase todos, já que os bens menos valiosos permaneciam, de fato,
no interior do templo. Os demais, os mais ricos, eram objeto daquele
inacreditável descaminho.
Mal refeito do segundo susto, o pecador pôs-se a berrar, convocando
toda a tribo par a ágora nativa, a praça fronteira ao templo. Reunidos todos,
tomou da palavra, ainda sob forte emoção, e pôs-se a discursar:
Cidadãos:
como sabeis bem, encontrava-me eu acamado, em razão de haver pecado contra o
nosso deus, tentando provar do fruto da árvore da vida. Pecado de que
publicamente me penitencio, mesmo porque acabo de sair do templo, onde
participei da cerimônia de expiação. O
que não sabeis ainda é algo que me ocorreu hoje e que desejo contar-lhes aqui
publicamente. Hoje, por incrível que isso possa soar, me
foi dado aquilo que a nenhum de vós foi dado até hoje. Após tantos e tantos
anos de existência de nosso povo, com os dias sucedendo as noites e as noites
sucedendo os dias, com nossos sacerdotes vitalícios orientando-nos todos no
caminho do bem e da prosperidade, ocorreu-me hoje algo que poderá modificar
nossos hábitos, nossa maneira de viver, nossos princípios, nosso futuro.
A impaciência começou a tomar conta dos ouvintes, ante
aquela peroração inicial. Aonde pretenderia chegar? Comentários aqui e ali, tentativas
de adivinhação. Apostas (era um povo amante das apostas que realizavam por tudo
e por nada).
O orador concluiu secamente, como se desse uma estocada
final: foi-me
dado o poder de ver.
Um surdo alarido percorreu os ouvintes. Uma onda que ia e
vinha, cruzando-se de todos os lados. Como é ver? Diga-nos lá o que é
isso? Alguns mostravam-se claramente céticos. Descreve-nos
o encontro das árvores com as nuvens do céu. Quão diversa é a
curiosidade humana! Como é o rosto do nosso deus? Fala-nos da diferença
entre o cão e o pássaro.
A impaciência tomava conta de todos.
O homem os examinava um a um, satisfeito com a reação que as suas palavras
estavam provocando. Por fim, prosseguiu:
Pouco teria a dizer-vos quanto a isso.
A visão não mostra o coração do cão, que pulsa tal como o coração da ave. Se as
árvores não tocam no céu é porque ainda não cresceram o bastante. Penso que o
rosto de nosso deus não é visível com estes olhos. Isso seria procura inútil.
Quero-vos contar algo mais relevante, mais precioso, mais fundamental do que
isso. Quero-vos falar de uma visão que tive dentro de nosso templo e que pode
modificar nossa vida e nosso futuro.
Os sacerdotes sempre narravam casos de santos que,
iluminados por seu deus, haviam tido visões interiores. A partir dessas visões,
a fé era incrementada, pois um povo que tivesse alguém assim abençoado por deus
era um povo deveras feliz. O orador por certo falaria agora de suas visões
religiosas.
Fale-nos,
fale-nos, pediram ansiosos.
E o homem falou.
Como sabem todos, periodicamente se
realizam cerimônias para aplacar as iras do nosso deus. Cada um de nós tem
trazido, ao longo de nossas vidas, os nossos bens mais preciosos, nossas
oferendas mais caras para ofertá-los, em holocausto, ao nosso amado criador.
Sempre me perguntei qual seria o tamanho do depósito de nosso templo, para que
ali coubesse tudo o que temos trazido. Hoje, quando me encontrava no templo,
maravilhado com as ofertas que todos fizemos, obtive, por fim, a esperada
resposta. E não poderia silenciar em nome da verdade, escolhido que fui pelo nosso
criador - estou certo disso agora - para ver o que vi.
O silêncio era total. Podia-se ouvir o farfalhar das asas do
pássaro que pulava de uma árvore a outra. A latir distante do cão. O pulsar dos
corações inquietos. A respiração de todos.
Vi nosso chefe, nosso maioral,
aquele em que depositamos toda nossa mais profunda confiança, vi nosso chefe
retirar do templo, juntamente com nossos eternos sacerdotes, as peças mais
preciosas, as doações mais valiosas que havíamos depositado no altar.
Profanamente, traindo nosso deus e nosso povo, eles transportaram para suas
casas aquilo que deveria permanecer no templo.
O murmúrio agora era muito maior. Céticos e ingênuos
trocavam palavras ásperas. Durante muitos minutos a multidão se perguntava se
poderia crer naquilo que estava ouvindo.
O orador pediu silêncio e continuou.
Sugiro, pois, que se forme uma
comissão de cidadãos, dentre os mais respeitáveis, que irá investigar aquilo
que acabo de narra. É irmos agora à casa deles e comprovar o que aqui lhes
digo. Provado isso, deveremos julgar nossos representantes, aqueles que
deveriam fazer de nossos dons coisa sagrada, para depô-los e para que outros,
mais dignos e menos ambiciosos, ocupem seus lugares, cumprindo o que lhes toca.
Novo murmúrio, logo interrompido pela palavra do chefe da
tribo.
Cidadãos, ouvi em silêncio, como
todos vós, a acusação que nos acaba de ser feita. Era o que me competia, pois a
cada um, como bem sabeis, é dada a liberdade de expressar-se, garantia máxima
de nossa comunidade. Mas a todos também é dado o direito de defender-se, quando
acusado. É o que faço neste momento.
Fez uma pausa, procurando estabelecer um hiato entre a
palavra do outro e seus futuros argumento.
Todos sabem também que nosso povo
tem o dom excepcional da cegueira. Graça divina que reiteradamente temos
agradecido ao nosso criador. Benesse que nos trouxe a felicidade suprema de não
vermos os andrajos de um mendigo, nem o rosto de um ancião, nem o desfazimento
de um cadáver, nem o lixo de nossas ruas. Sabemos de sua existência, mas pela
graça de nosso deus, não vemos. Não ver o insolúvel é já evitar preocupação
inútil. Podemos, assim, olhar para dentro de nós mesmos e aí descobrirmos tudo
o que há de bom e de belo em nós mesmos. Descobrirmos lá dentro, no nosso
âmago, aquele pedaço de deus que ali existe. Quando existe. Frisou bem a última afirmativa.
As pessoas voltaram-se o rosto, expressando um sorriso que
não passou despercebido ao denunciante. Era como se todos sorrissem para ele.
Ou rissem dele, não sabia bem.
O chefe continuou.
Qual dentre vós alguma vez sentiu-se
mal olhando para dentro de si? Quem dentre vós alguma vez lamentou não ter
olhos para ver o lixo, o cadáver, a velhice? Pois bem. Agora aparece no meio de
nós alguém que nos diz ter visto. Confessadamente ele provou do fruto proibido,
foi castigado por nosso deus e, depois disso, adquiriu o poder de ver. Viu o
céu separado das árvores, viu o cão igual ao pássaro. Ele viu, segundo nos diz.
Ora, senhores, diante de tal afirmação somente podemos concluir que estamos
diante de uma verdade ou diante de uma mentira.
A lógica da conclusão era inarredável e levou o auditório a
não reparar na falsidade das premissas. As conseqüências imediatas do sofisma
não foram percebidas desse modo pelo denunciante, que tudo acompanhava em
respeitoso silêncio, como convinha e era norma.
O orador prosseguiu.
Aceitemos
que ele está a falar verdade. Ele realmente viu. Nesse caso, este homem é um
maldito, um amaldiçoado por deus, que nos fez todos à sua imagem e semelhança.
Se nosso deus não fosse cego, algum de nós teria a salvação eterna? Se ele
visse todos os nossos pecados, quem de nós teria a salvação? A cegueira de
nosso deus é a nossa esperança, amados irmãos. Como ter
fé em um deus que tudo vê e que tudo sabe? Como esconder-se dele? Como amá-lo
plenamente se somos imperfeitos e, por definição, temos a impossibilidade de
amá-lo tal como ele merece ser amado? Só sua cegueira nos salva! Como é possível,
pois, que um homem, feito à imagem e semelhança de nosso deus cego, seja mais
do que ele é? Se é verdade que este
homem vê, ele é um réprobo, cuja presença entre nós somente poderá significar
provocação às iras de nosso bom, porém justo, deus. É um novo lúcifer, que se
supõe ser dotado de mais luz do que quem lhe deu à luz e lhe deu a luz! Saboreou, vaidosamente, o jogo de palavras que, sabia-o muito bem,
pouquíssimos ali teriam percebido.
O denunciante percebeu a movimentação das pessoas, que se
puseram a formar um círculo de ferro em torno dele. Via-lhes a expressão inamistosa,
demonstrando que suas palavras já haviam caído no limbo do esquecimento. As
palavras do chefe, contudo, continuavam a martelar os ouvidos da multidão. Ele concluiu
o raciocínio de forma fulminante, como quem dá um xeque-mate:
A
não ser assim, este homem mentiu. E mentiu no propósito inequívoco de semear a
discórdia entre nós, no seio de nossa feliz comunidade, quebrando a serenidade
e a paz social de que todos desfrutamos, em nossa santa cegueira. O objetivo
desse pecador é a nossa cizânia. Tertium
non datur, sentenciou, em remate o orador.
As palmas que o denunciante esperava não vieram. Em lugar disso, um sólido silêncio. Mas eles já haviam feito seu julgamento. O círculo de ferro
foi-se fechando sobre o denunciante, que jamais pensaria em tentar fugir.
Se este homem é um maldito de deus,
ou se este homem é um subversivo, pouco importa. O que é certo e verdadeiro,
tão verdade como a cegueira de nosso deus, é que ele não pode mais continuar
entre nós.
E mais não disse. O círculo fechou-se de vez. Ali mesmo na
ágora o povo executou o maldito, linchando-o. Como se não tivessem pecados,
apedrejaram-no até a morte. Depois, seu corpo foi esquartejado. As postas foram
deixadas apodrecendo ao sol, para que o cheiro servisse de advertência aos incautos.
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