14 julho 2010

Spes Nostra

“It has been said that democracy is the worst form of Government except all those other forms that have been tried from time to time.”

Winston Churchill

Quando o desmando dos homens

te cobrir de cicatrizes,

pensando as dores, reflete:

ainda temos juízes!

Autoridades corruptas,

tantos homens infelizes.

Não cede à desesperança:

ainda temos juízes!

Legalistas, burocratas,

ou venais, quais meretrizes.

Maioria ou minoria ?

Ainda temos juízes!

Tão moços, mal preparados,

agindo qual aprendizes.

Melhor isso do que nada:

ainda temos juízes !

Ubi homo, ibi peccata.

Releva dele os deslizes.

Perfeição só cabe em Deus.

Ainda temos juízes !

08 julho 2010

A linguagem nossa de cada dia


“Se o leitor de livros, aquele que gosta de ler, não se limitar àquilo que se faz agora, se ele andar pra trás, se ele começar do princípio, se ele pode ler os primitivos, e os grandes cronistas e depois os grandes poetas, a língua passa a ser algo mais que um mero instrumento de comunicação. Transforma-se numa, digamos, mina inesgotável de beleza e de valor.” (José Saramago)

“Devo muito de minha cultura à televisão. Cada vez que o aparelho lá de casa era ligado, eu ia para o meu quarto ler um livro.” (Grouxo Marx)

Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprova exigência de linguagem acessível em sentença judicial.” (Dos jornais)

Muitas pessoas supõem que a linguagem foi por nós inventada para permitir a comunicação entre as pessoas, coisa, aliás, de que se valem outros animais, porém de modo primitivo. Não preciso conhecer cachorrês para entender o que um cão quer dizer ao latir quando me aproximo do local guardado por ele. Sendo ele um street dog, vulgo vira-lata, certamente me diria: “nun vem que nun tem, mano.” um Yorkshire Terrier latiria: “get out from here, sir.” Nem preciso ter feito curso de passarinhês para saber que o sabiá que vem comer o alpiste que deixo na varanda do apartamento canta não para me agradecer, mas para dizer aos demais machos que não se aproximem de seu território.

A questão é: o cachorro e o sabiá são capazes de formular alguma idéia, por mais simples que seja?

Segundo alguns linguistas, como Noam Chomsky, antes de comunicar uma idéia, o ser humano forma essa idéia para si próprio, para saber se ela tem fundamento lógico. Só depois de aprovada por ele é que a frase será verbalizada pela linguagem. Claro que você e eu conhecemos pessoas que primeiro falam e depois pensam, mas essas constituem exceção à regra.

O ambiente onde vive e convive a criança vai contribuindo para que seu vocabulário se enriqueça e as frases observem a construção vigente no meio onde ela interage. O progresso, que contribui para o aceso de pessoas de baixa renda às fontes formais de aprendizado, traz um problema que muita gente desconhece. É que essa criança, em princípio, se desenvolverá em dois ambientes distintos, no que diz com a comunicação oral. Entre o “nóis vai” que ela ouve em casa e o “nós iremos” que lhe ensinam na escola, qual dessas lições será assimilada? Ou prevalece a ligação afetiva que une a criança aos pais ou quem lhes faça as vezes, ou se submete ela à autoridade do professor, dono do saber. A mãe de um rapaz que eu havia admitido como telefonista no escritório procurou-me tempos depois e, com a liberdade de ser nossa faxineira há muitos anos, indagou-me se o seu filho não estava “virando gay”. É que ele estava agora falando “de um modo afrescalhado”. Passei a reparar no modo como o Antonio Pedro atendia o telefone e descobri, espantadíssimo, que ele imitava o meu jeito de falar. Sem comentários.

Talvez por força do peso da rotina, ou para exibir cultura, os profissionais do Direito costumam expressar-se em um arremedo de língua culta, que o vulgo apelidou de juridiquês. Todos nós já cedemos a essa tentação. Eu, por exemplo, que sempre fui metido a besta, para usar uma expressão das mais vulgares, e, portanto, absolutamente “acessível” aos iletrados, quando estudante de Direito tive em mãos um acórdão relatado pelo Orozimbo Nonato, profundo conhecedor do idioma português”, segundo sua biografia oficial, inserta (particípio passado do verbo inserir, na forma feminina, digo em “linguagem acessível”) no site do STF, que nos diz ainda que “todas as suas manifestações, em votos, pareceres, conferências e obras publicadas, possuem um estilo peculiar, que identifica o purista da linguagem.” A referência a “estilo peculiar” já diz tudo. É uma forma eufêmica (eufemismo: “palavra, locução ou acepção mais agradável, de que se lança mão para suavizar ou minimizar o peso conotador de outra palavra, locução ou acepção menos agradável”) de dizer que sua linguagem era incompreensível. E eu, estudante atrevido, punha-me a dizer, imitando-o, que tal tema era mera questiúncula indigna de dar ensanchas a disceptações. E quem quisesse que entender que fosse ao dicionário.

Os gramáticos sempre sustentaram que a língua é feita pelo povo. A última flor nascida nos jardins do Lácio que o diga. O português não passa de um latim mal falado, como dizia nosso professor Alexandre Correia, até porque foi levado, às terras conquistadas, pelos soldados romanos, que não dominavam a fala culta, mas o latim falado pela ralé. Ocorre, no entanto, que, depois de Gutenberg, passaram a existir repositórios de textos que os antigos chamavam de livros e que a moçada atual chama de kindle. Com isso, lendo narrativas feitas por autores respeitáveis, passou a ser possível conhecer melhor a língua pátria, aprimorando o modo de expressar o nosso pensamento. Gramáticas e dicionários (no meu tempo de criança se dizia que “nenhuma família que se preza pode deixar de ter em casa uma bíblia e um dicionário”) passaram a complementar essas “fontes de conhecimento”, levando àquilo que se conhece como “cultura”.

Ora, quando um homem inculto chega à Presidência da República e, ao fim de seu duplo mandato, tem aprovação de quase 100% dos seus administrados, todos os nossos preconceitos devem ser revistos, a começar por uma indagação básica: para que serve a cultura?

Cultura, em termos simples, é o conjunto de conhecimentos teóricos e práticos que nós adquirimos e transmitimos aos nossos contemporâneos. A cultura nos mostra como os diversos grupos humanos vão equacionando e resolvendo os problemas que a vida lhes vai apresentando. Graças aos meios de registro (até agora, as bibliotecas), esses conhecimentos passam a ser passíveis de estudo mesmo quando o tempo nos afastou daquela primitivas experiências.

A rigor, pois, o registro da cultura não é feito “pelo povo”, mas por pessoas que, graças a seu saber (cultura acadêmica), estão em condições de efetuar tais registros.

Exemplifiquemos isso.

Súmula do nosso STJ (em “linguagem acessível”, Superior Tribunal de Justiça) diz que “A exceção de pré-executividade é admissível na execução fiscal relativamente às matérias conhecíveis de ofício que não demandem dilação probatória.”

Mostre esse texto à sua secretária, ou à sua manicure, ou ao seu motorista, ou ao seu dentisna, ou ao seu médico e peça que lhe expliquem o que o STJ está querendo dizer. Certamente essa pessoa indagará: “Que é uma exceção de pré-executividade?” Você, se puder, lhe explicará. “Mas que é uma execução fiscal”? Essa é fácil de explicar. “Que é de oficio?” “Que é dilação probatória?”

A súmula n° 393 do STJ pertence a um campo limitado chamado “cultura jurídica”, que, obviamente, é privilégio daqueles que se dispuseram a ser “operadores do Direito”, da mesma forma como outras pessoas resolveram ser capinteiros, balconistas, criadores de codornas ou jogadores de futebol. Cada atividade profissonal dessas possui sua cultura específica, que, logicamente, interessa apenas, em princípo, aos que se dedicam a tal atividade. Quando minha mãe, que era costureira, comentava com uma cliente que aquele vestido ficaria melhor com um debrum vermelho, ou que ela iria chulear a borda interior da saia, que, aliás, ficaria melhor se fosse plissada, eu me limitava a ouvir. A cliente entendeu? Fim de papo (para empregar a tal “linguagem acessível”).

Ora, as decisões judiciais não se destinam, enquanto peças formais, aos interessados, mas a seus procuradores judiciais, mesmo porque é obrigatória a pesença do advogado no processo. O que interessa ao cliente é o reultado da decisão. Ora, para que o cliente saiba qual foi o resultado da causa, basta que pergunte a seu advogado, que, segundo é lícito presumir, está afeito ao linguajar técnico que se emprega no foro.

Quando o tal projeto de lei limita-se a falar em “linguagem acessível” mostra o grau de ignorância de quem o redigiu. Acessível a quem?

Nada melhor para ilustrar essa ridicularia legislativa do que um caso real. Nos velhos tempos de estágio no Departamento Jurídico do XI de Agosto, patrocinamos judicialmente uma causa do interesse de várias famílias de favelados. Alguns dos interessados quiseram assistir à sessão de julgameno do recurso e lá foram conosco. Falou o relator, falaram os advogados, foi proferido o voto do relator, manifestaram-se outros julgadores e o presidente da sessão anunciou o resultado. Nossos clientes ali calados, prestando atenção a tudo aquilo. Encerrado o julgamento, já no corredor do tribunal um deles não se conteve: “Então, doutor, nóis ganhemo o nóis perdemo?”

Acho que foi aí que me veio a idéia de um Tratado de Direito Favelário.

02 julho 2010

Caixinha de surpresas


A vida é, efetivamente, uma caixinha de surpresas, pois os acontecimentos nem sempre surgem como e quando nós esperávamos que ocorressem.

Veja se não é.

Conheço uma senhora, casada, mãe de dois filhos, que nos conta que, jovem ainda, dirigindo um automóvel, provocou colisão dele com outro veiculo, dirigido por um belo rapaz. Saiu ela do seu automóvel chorando, argumentação em que as mulheres são mestras, quase sempre com resultado favorável a elas. O fato é que o rapaz consolou-a, não só naquele como em outros dias e, atualmente, é o pai do casal de filhos acima referido.

Certo deputado estadual, que me honra com sua amizade, quando solteiro, morava em um apartamento onde, como seria natural, reunia de vez em quando amigos e amigas. Quando a reunião avançava no horário, a bela síndica tocava a campainha, pedindo moderação, pois alguns vizinhos estavam a reclamar do barulho. Lá pela terceira ou quarta vez, ele sugeriu à síndica que discutissem o assunto no dia seguinte, durante o jantar. Ou porque um só jantar não foi suficiente, ou porque houvesse outros assuntos a tratar, foram eles multiplicando-se e hoje eu cruzo com o simpático casal no elevador do prédio onde moramos, levando eles no colo uma bela menina de olhos verdes.

Os esportes, por pertencerem à atividade dos seres humanos vivos, não poderiam deixar de incluir-se na tal caixinha.

Veja se não é.

Uma partida de tênis costuma durar, no máximo, 3 horas. Recentemente, em Wimbledon, uma partida dessas durou inimagináveis 11 horas, com o placar também inimaginável de 78 a 80 no derradeiro set. Surpreendente, não?

Quando eu jogava basquete, lá se vão décadas e décadas, houve uma partida final entre dois clubes cujos nomes me escapam. O clube A precisava ganhar por 6 pontos ou mais para sagrar-se campeão. A partida aproximava-se do final e ele ganhava por apenas 2 pontos. Um de seus jogadores, talvez instruído pelo técnico, fez uma cesta contra, empatando a partida. Houve a prorrogação e o clube B foi derrotado por mais de 6 pontos de diferença.

Segundo nos conta Eduardo Galeano, na Ucrânia há uma estátua para registrar um fato insólito. Em 1942, plena ocupação alemã, o Dínamo de Kiev foi “convidado” a disputar uma partida de futebol contra uma equipe alemã, no estádio local. Mesmo advertidos pelo treinador, que pressentia que os nazistas não engoliriam fácil uma derrota, os jogadores locais empenharam-se para valer, vencendo o jogo. Em consequência, “los once fueron fusilados con las camisetas puestas, en lo alto de un barranco, cuando terminó el partido”, registra Galeano.

Mas, fale a verdade: você pensou que eu iria falar de futebol, é ou não é? Pois acertou, só que eu não vou falar da inacreditável e recente partida entre Uruguai e Gana. Serei mais genérico.

Se nos dispusermos a estudar a origem e a motivação dos esportes, veremos que eles estão ligados a fatos naturais da vida do homem, sendo, quase sempre, resultado de uma sublimação, atrevo-me a dizer. Seria cômodo ilustrar isso com o óbvio esporte do boxe, onde, sem subterfúgio algum, temos a briga entre dois homens. A correspondência entre a agressividade natural e a agressividade sublimada é evidente, até porque as normas de civilidade exigem que os punhos sejam cobertos por uma luva acolchoada. Ou exigiam, pois hoje também se pratica luta de boxe com as mãos desprotegidas, um fato bastante sintomático da “evolução” do ser humano a caminho de Cro-Magnon.

Recorde-se que inúmeros esportes coletivos são disputados em torno de uma bola. E que é a bola senão a simbolização da cabeça do adversário, que o vencedor primitivo trazia para sua tribo, como prova do êxito na guerra? Eis o que nos diz um admirador do futebol, o já citado Galeano, a respeito da figura do torcedor típico: “El fanático llega al estadio envuelto en la bandera del club, la cara pintada con los colores de la adorada camiseta, erizado de objetos estridentes y contundentes, y ya por el camino viene armando mucho ruido y mucho lío. Nunca viene solo. Metido en la barra brava, peligroso ciempiés, el humillado se hace humillante y da miedo el miedoso. La omnipotencia del domingo conjura la vida obediente del resto de la semana, la cama sin deseo, el empleo sin vocación o el ningún empleo: liberado por un día, el fanático tiene mucho que vengar”.

E já que estamos em época de Copa do Mundo, qual a origem da mais clássica das provas olímpicas, a corrida da maratona? Segundo reza a lenda, após uma árdua batalha na região de Marathon, quando os persas acabaram desistindo de invadir a Grécia, no ano 490 a.C., o soldado Filípides foi encarregado de avisar os seus compatriotas da vitória dos atenienses. Para isso, correu cerca de 36 quilômetros, para levar a boa-nova. Depois de fazer o feliz anúncio, morreu de exaustão. Aquela prova seria uma homenagem àquele herói grego (e, portanto, recordação de uma batalha sangrenta).

Não é de admirar, pois, que ao vencedor de uma disputa desportiva se entregue uma taça, onde, simbolicamente, ele beberá o sangue dos vencidos.

Portanto, quando se transforma uma simples partida de futebol em festa cívica, algo está errado, pois estamos invertendo o processo civilizatório. Fechar repartição pública em dia de jogo, então, é algo simplesmente impensável.

Não chegamos, é verdade, ao desvario do governo de um país africano que teria decretado que os jogadores da seleção nacional lá deles não poderão sair do país nos próximos dois anos, como punição pela desclassificação da equipe na recente Copa da África. Nem à xenofobia francesa que considerou a diminuta presença de franceses puro-sangue na seleção a causa maior da sua precoce desclassificação.

Como diria certo estadista europeu, “ces là ne sont pas des pays sérieux”.