22 setembro 2010

TOC

“Essas recordações me matam!”
(Roberto e Erasmo Carlos)

Estou numa festinha de aniversário. Sobre a mesa principal, o bolo a ser futuramente cortado e uma pilha de pratos de louça. O tio da aniversariante aproxima-se da pilha e se põe a arrumá-los com extremo cuidado, um exatamente em cima do outro, sem sobra nenhuma dos lados. Aproximo-me dele e provoco:
- Não resistiu, hein?
Ele cantarola: “Essa minha compulsão me mata!”
Há cerca de 20 anos encontrei um colega, cujo aspecto não deixava margem a dúvida: estava numa crise de depressão. Com a liberdade que nossa amizade me permitia, repito, perguntei-lhe se andava chorando sem motivo aparente. Ele ficou sério. Se tinha medo de suicídio. Ele arregalou os olhos: “quem lhe contou?” De depressão eu conheço mais do que você imagina, respondi. Falei de minhas crises e ele, a partir daí, foi cuidar da saúde psíquica dele, tanto quanto eu já cuidava da minha. Agora, ele, já desembargador, apenas me toca no braço e, com alguma dificuldade, deixa escapar: “Você me salvou a vida”.
Leio numa dessas revistas que quase não têm matéria para ser lida que o cantor Roberto Carlos declarou publicamente que está bem melhor do TOC, doença da qual ainda não está curado de todo, embora esteja em tratamento há mais de dois anos. TOC? A senhora não entendeu? Eu explico.
Viu aquele filme do Jack Nicholson, Melhor é Impossível?
http://www.youtube.com/watch?v=o5A6HIaqzxM&feature=related

Pois é. Aquilo é, evidentemente, um exagero, próprio de uma comédia, se é que aquilo é uma comédia. O personagem escolhe os ladrilhos em que pisar pela cor deles, coisa que muitos de nós certamente fazíamos quando éramos crianças; conta as barras das grades dos jardins das casas, quem de nós não fez isso? E repete uma série de atos aparentemente absurdos, como se aquilo dependesse da vontade dele. Ocorre que não depende.
O Transtorno Obsessivo e Compulsivo caracteriza-se exatamente pelo fato de o padecente realizar atos aparentemente sem motivo algum, seja por sua natureza, seja por sua reiteração e demora na sua realização. Todos nós trancamos a porta de casa antes de nos deitarmos, mas há pessoas que se levantam no meio da noite para ir conferir, pela décima vez, se, de fato, trancou a porta. No filme, ele não apenas se preocupa com isso, como coloca várias trancas na porta, num evidente exagero. Quantas pessoas há que se reconheceram naquele personagem?
Eu conheci um juiz que não devolvia os autos dos processos à secretaria, acumulando pilhas e pilhas, todas com os votos prontos. “Ainda preciso dar uma última revisão nisso” era sua explicação. Para todos os efeitos, era um juiz vagabundo.
Uma jovem artista de televisão teve, tempos atrás, o desassombro de confessar que tinha necessidade compulsiva de tomar banho. Eram banhos que duravam horas, disse ela. Imagine-se o mal que isso lhe fazia à pele. Não sei como andará isso, mas a reportagem dava conta de que ela também havia tomado consciência de que aquela preocupação nada tinha com o dever de higienizar-se. Também contou que costumava ficar junto à janela de casa e dali não se afastar enquanto não passasse um automóvel de tal marca e tal cor. Com a padronização das cores de automóvel hoje em dia, pois ou são pretos ou cinza, imagine quanto tempo ela ficaria ali, escrava de seu TOC.
Longe de mim querer diagnosticar a conduta de certos jogadores de futebol que não podem deixar de persignar-se quando fazem ou quando perdem um gol. Ou questionar sua religiosidade, mesmo porque esse tema é delicado. Todos vimos o presidente José Sarney entrar de novo na casa de onde havia saído porque a porta pela qual saíra não era a mesma pela qual entrara. E o câmera da TV ali, registrando aquilo que, oficialmente, se chama superstição. Uma senhora só faltou me bater quando tive o atrevimento de, após uma visita feita a ela, abrir eu mesmo a porta da casa. “Isso dá azar!” berrou ela. O que quero dizer é que seria interessante saber se essas pessoas conseguem ou não conseguem ficar sem aquelas “bengalas”. Certamente, não conseguem.
Esses rituais estão, de fato, acima do entendimento e da vontade de quem os pratica. Dizer que são mera superstição não resolve o problema da compulsividade. Qual a raiz do ritual supersticioso?
Diga sinceramente: qual será sua conduta ao verificar que o pão está sobre a mesa com os fundos para cima? Ou um par de sapatos está com as solas voltadas para o teto? O fato de eles estarem “de cabeça para baixo” e, portanto, deverem ser virados, não explica a providência que a senhora um dia tomou diante daquela “anormalidade”, mesmo porque nem o pão nem o sapato têm cabeça. Concorda? Há na rapidez e inevitabilidade com que muitas pessoas se apressam a “corrigir” aquela postura, eu suponho que também seja a sua, algo que foge à racionalidade. Tente explicar. Provoque seus conhecidos, virando o pão que está sobre a mesa e veja a reação deles.
Conheço pessoas que não conseguem ir para casa antes de arrumar todos os objetos que estão sobre a mesa no escritório. Reconheço que a ordem é importante para eu saber onde está isto e aquilo. Facilita o meu trabalho. Mas o que aqui se registra não é a escolha da ordem, mas a imposição feita pela ordem. A rigor, não sou eu que mando nela, é a ordem que manda em mim. O que é um rematado absurdo. E eu não posso deixar de fazer o que ela quer, eis o que a pessoa diria, se tentasse explicar essa compulsividade.
Não sei se a senhora conhece a série Monk, exibida na televisão. Não vi os primeiros episódios nem acompanho com fidelidade os diversos capítulos daquele drama, vencedor de muitos prêmios, desconhecendo, por exemplo, por que motivo o personagem se chama Monge. O fato é que ele era um policial excelente, que entra em crise quando a mulher morre numa emboscada. A partir daí, tornou-se vítima do TOC. Imagine um policial com a mania de limpar o local do crime, apagando eventuais pistas datiloscópicas, para concluir que, como ocorreu no filme, ele acaba sendo aposentado por invalidez. Mas, como era muito eficiente, é chamado pelos colegas para cuidar, em off, de casos difíceis. Que ele resolve precisamente por ser obsessivo, eis a ironia do filme.
Tenho também minhas pequenas manias, mas o que quase me levou a uma aposentadoria precoce foi a síndrome do pânico, um distúrbio tão escravizante quanto aquele. Curioso é que os meus comarcanos ficaram sabendo disso – e o que os comarcanos não sabem a respeito da vida do juiz? - e tome visita de solidariedade, que eu recebia na certeza de que eles iam à minha casa menos para saber de minha saúde e mais para verificar se eu já estava babando na minha excelentíssima gravata. Desculpe, mas tenho essa mania de desconfiar das pessoas.
Um desses gentis visitantes era um modesto comerciante que havia entrado em uma crise profunda de depressão depois que sua empresa havia sido autuada, com aplicação de uma multa astronômica que o levaria à falência, segundo ele. Eu nunca vim a saber exatamente qual o valor da tal multa. Conto apenas o que ele me contou.
Outro visitante era um padre, com aspecto saudável, corado, que conversava normalmente. Ele estava naquela cidade gozando de “férias forçadas”, depois que, como ecônomo de sua congregação, algo que os mortais comuns chamamos de tesoureiro, havia caído num conto do vigário, olha a ironia, e causado um prejuízo enorme à tal congregação, que ele pretendera ajudar quando contratara o bem falante economista, especializado, veio ele a saber depois, em mutretas e coisas afins. E ali estava ele, já que, depois daquele rombo, se recusava a sair da cama. Quando me ouviu falar dos meus sintomas, ele não se agüentou e, a batina que me perdoe, soltou um desabafo inesquecível: “pois eu passo por tudo isso e aqueles filhos da pátria dos meus colegas dizem que não tenho nada!”
Sugeri a ambos que fizessem o que eu estava fazendo para superar a depressão: viagem de trem até a capital uma vez por semana, sessão de psicoterapia por uma hora e nova viagem de trem de volta à minha comarca, pois, dirigir automóvel?, nem pensar. Espero que o tenham feito.
Posso afirmar, meu caro leitor, que pelo menos cinco por cento dos que estão lendo esta crônica padecem de depressão. E olhe que estou sendo otimista. E posso apostar também que mais de cinqüenta por cento dos familiares desses depressivos não dão a menor importância a isso. “Isso no meu tempo se chamava frescura” é como grande parte dos amigos e parentes se referem a uma das doenças mais insidiosas que existe.
Eu vivo cruzando com depressivos e posso dizer que já ajudei a alguns a procurar tratamento. “Você, com esse espírito brincalhão, vem me dizer que é sujeito a depressão? Não acredito!” é o que geralmente ouço. E quando eu passo a descrever os sintomas todos, a resistência deles baixa, como ocorreu com aquele colega, cuja vida minha orientação teria salvo.
A ultima pessoa com quem cruzei e que se encaixa nisso é a mais recente faxineira que tivemos em casa. Educadíssima, fala mansa, mas não aceita “imposições”. Imposição? É, a senhora me mandou arrumar a sala mas eu só arrumo quando tenho vontade. No fim do ano, sintomaticamente, não compareceu ao serviço porque passou na cama, “sem a menor vontade de ver ninguém”. Daí à tentativa de suicídio é um pulo, como sabe quem já teve alguém depressivo na família. Um dia a tal empregada resolveu que não viria mais e não veio mesmo.
Por que falo disso tudo? Para dizer que o Roberto Carlos, que tem uma belíssima música, pouco conhecida, mas que inspirou o nome de um jogador de futebol, até com passagem pela seleção brasileira, talvez não tenha consciência do bem que fez a tanta gente falando de algo que as pessoas preferem silenciar.
A tal música chama-se O Divã, o que produziu o nome do jogador Odivan. Teriam os pais do jogador conhecido a letra daquela música? Ali já se poderiam notar as tendências à depressão naquele admirável compositor, ao recordar o acidente que o aleijou, como narrado numa sessão de psicoterapia. Depois de tanto tempo de tratamento, ele ainda não consegue usar roupa que não seja azul. Vejam o que é o poder do TOC.
E vamos à bela música referida.

01 setembro 2010

O clube do teu coração

O coração tem razões que a própria razão desconhece, dizia o sábio. Não é preciso chamar-se Pascal nem ser matemático para saber isso. Basta examinar-se a si mesmo e concluir que o homem tinha toda razão.
Falemos de futebol.

Você é daquelas pessoas que vivem dizendo que não sabe nada a respeito do chamado esporte bretão, nem nome de time algum, menos ainda nome de jogador. Aliás, nem sabe o que significa esporte bretão. Provarei que você se engana.
Ou você é torcedor fanático, desses de ir trabalhar na segunda-feira com a camisa do time por baixo do paletó. Quando ele ganha, é claro. Ou vai preparado para dar porradas nos colegas gozadores quando teu time perde. Provarei que o time do teu coração talvez não seja bem aquele que tua camisa mostra.
E farei isso baseado na matemática, coisa que o Pascal certamente não fez. Não leve a sério aquilo do Einstein: Do not worry about your difficulties in Mathematics. I can assure you mine are still greater. Ele diz que as dificuldades dele eram maiores do que as nossas mais por gozação do que por acreditar mesmo nisso. Sou mais aquela outra sacada dele: As far as the laws of mathematics refer to reality, they are not certain; and as far as they are certain, they do not refer to reality. Quando leis matemáticas se referem à realidade elas não estão muito certas; quando estão certas é porque não se referem à realidade.
Pois será com a matemática que provarei que o teu coração tem razões que tua cabeça nem imagina.
Aí estão selecionados o nome de dez times de futebol:

1. Santos Futebol Clube
2. Clube de Regatas Vasco da Gama
3. Grêmio de Futebol Portoalegrense
4. Clube Atlético Mineiro
5. Esporte Clube Bahia
6. Santa Cruz Futebol Clube
7. Ceará Sporting Club
8. Coritiba Football Club
9. Sport Club Corinthians Paulista
10. Avaí Futebol Clube

Independentemente de gostar ou não de futebol, escolha um desses dez clubes, de preferência aquele de tua aparente predileção. Se o nome dele não estiver aí, altere a lista e substitua o nome de um dos dez times pelo nome do teu aparente time do coração.
Agora pegue o número correspondente ao clube escolhido e multiplique por 3. Feito isso, some 3 ao resultado. Feito? Agora multiplique esse novo resultado por 3. Se o número que resultar dessa última operação tiver dois dígitos, some esses dois números. Pronto: você tem em mãos o número do verdadeiro time do seu coração. Vá à lista e veja qual é ele.
Lembre-se: quem escolheu foi você, não fui eu. Não me xingue por uma escolha que foi tua.

14 julho 2010

Spes Nostra

“It has been said that democracy is the worst form of Government except all those other forms that have been tried from time to time.”

Winston Churchill

Quando o desmando dos homens

te cobrir de cicatrizes,

pensando as dores, reflete:

ainda temos juízes!

Autoridades corruptas,

tantos homens infelizes.

Não cede à desesperança:

ainda temos juízes!

Legalistas, burocratas,

ou venais, quais meretrizes.

Maioria ou minoria ?

Ainda temos juízes!

Tão moços, mal preparados,

agindo qual aprendizes.

Melhor isso do que nada:

ainda temos juízes !

Ubi homo, ibi peccata.

Releva dele os deslizes.

Perfeição só cabe em Deus.

Ainda temos juízes !

08 julho 2010

A linguagem nossa de cada dia


“Se o leitor de livros, aquele que gosta de ler, não se limitar àquilo que se faz agora, se ele andar pra trás, se ele começar do princípio, se ele pode ler os primitivos, e os grandes cronistas e depois os grandes poetas, a língua passa a ser algo mais que um mero instrumento de comunicação. Transforma-se numa, digamos, mina inesgotável de beleza e de valor.” (José Saramago)

“Devo muito de minha cultura à televisão. Cada vez que o aparelho lá de casa era ligado, eu ia para o meu quarto ler um livro.” (Grouxo Marx)

Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprova exigência de linguagem acessível em sentença judicial.” (Dos jornais)

Muitas pessoas supõem que a linguagem foi por nós inventada para permitir a comunicação entre as pessoas, coisa, aliás, de que se valem outros animais, porém de modo primitivo. Não preciso conhecer cachorrês para entender o que um cão quer dizer ao latir quando me aproximo do local guardado por ele. Sendo ele um street dog, vulgo vira-lata, certamente me diria: “nun vem que nun tem, mano.” um Yorkshire Terrier latiria: “get out from here, sir.” Nem preciso ter feito curso de passarinhês para saber que o sabiá que vem comer o alpiste que deixo na varanda do apartamento canta não para me agradecer, mas para dizer aos demais machos que não se aproximem de seu território.

A questão é: o cachorro e o sabiá são capazes de formular alguma idéia, por mais simples que seja?

Segundo alguns linguistas, como Noam Chomsky, antes de comunicar uma idéia, o ser humano forma essa idéia para si próprio, para saber se ela tem fundamento lógico. Só depois de aprovada por ele é que a frase será verbalizada pela linguagem. Claro que você e eu conhecemos pessoas que primeiro falam e depois pensam, mas essas constituem exceção à regra.

O ambiente onde vive e convive a criança vai contribuindo para que seu vocabulário se enriqueça e as frases observem a construção vigente no meio onde ela interage. O progresso, que contribui para o aceso de pessoas de baixa renda às fontes formais de aprendizado, traz um problema que muita gente desconhece. É que essa criança, em princípio, se desenvolverá em dois ambientes distintos, no que diz com a comunicação oral. Entre o “nóis vai” que ela ouve em casa e o “nós iremos” que lhe ensinam na escola, qual dessas lições será assimilada? Ou prevalece a ligação afetiva que une a criança aos pais ou quem lhes faça as vezes, ou se submete ela à autoridade do professor, dono do saber. A mãe de um rapaz que eu havia admitido como telefonista no escritório procurou-me tempos depois e, com a liberdade de ser nossa faxineira há muitos anos, indagou-me se o seu filho não estava “virando gay”. É que ele estava agora falando “de um modo afrescalhado”. Passei a reparar no modo como o Antonio Pedro atendia o telefone e descobri, espantadíssimo, que ele imitava o meu jeito de falar. Sem comentários.

Talvez por força do peso da rotina, ou para exibir cultura, os profissionais do Direito costumam expressar-se em um arremedo de língua culta, que o vulgo apelidou de juridiquês. Todos nós já cedemos a essa tentação. Eu, por exemplo, que sempre fui metido a besta, para usar uma expressão das mais vulgares, e, portanto, absolutamente “acessível” aos iletrados, quando estudante de Direito tive em mãos um acórdão relatado pelo Orozimbo Nonato, profundo conhecedor do idioma português”, segundo sua biografia oficial, inserta (particípio passado do verbo inserir, na forma feminina, digo em “linguagem acessível”) no site do STF, que nos diz ainda que “todas as suas manifestações, em votos, pareceres, conferências e obras publicadas, possuem um estilo peculiar, que identifica o purista da linguagem.” A referência a “estilo peculiar” já diz tudo. É uma forma eufêmica (eufemismo: “palavra, locução ou acepção mais agradável, de que se lança mão para suavizar ou minimizar o peso conotador de outra palavra, locução ou acepção menos agradável”) de dizer que sua linguagem era incompreensível. E eu, estudante atrevido, punha-me a dizer, imitando-o, que tal tema era mera questiúncula indigna de dar ensanchas a disceptações. E quem quisesse que entender que fosse ao dicionário.

Os gramáticos sempre sustentaram que a língua é feita pelo povo. A última flor nascida nos jardins do Lácio que o diga. O português não passa de um latim mal falado, como dizia nosso professor Alexandre Correia, até porque foi levado, às terras conquistadas, pelos soldados romanos, que não dominavam a fala culta, mas o latim falado pela ralé. Ocorre, no entanto, que, depois de Gutenberg, passaram a existir repositórios de textos que os antigos chamavam de livros e que a moçada atual chama de kindle. Com isso, lendo narrativas feitas por autores respeitáveis, passou a ser possível conhecer melhor a língua pátria, aprimorando o modo de expressar o nosso pensamento. Gramáticas e dicionários (no meu tempo de criança se dizia que “nenhuma família que se preza pode deixar de ter em casa uma bíblia e um dicionário”) passaram a complementar essas “fontes de conhecimento”, levando àquilo que se conhece como “cultura”.

Ora, quando um homem inculto chega à Presidência da República e, ao fim de seu duplo mandato, tem aprovação de quase 100% dos seus administrados, todos os nossos preconceitos devem ser revistos, a começar por uma indagação básica: para que serve a cultura?

Cultura, em termos simples, é o conjunto de conhecimentos teóricos e práticos que nós adquirimos e transmitimos aos nossos contemporâneos. A cultura nos mostra como os diversos grupos humanos vão equacionando e resolvendo os problemas que a vida lhes vai apresentando. Graças aos meios de registro (até agora, as bibliotecas), esses conhecimentos passam a ser passíveis de estudo mesmo quando o tempo nos afastou daquela primitivas experiências.

A rigor, pois, o registro da cultura não é feito “pelo povo”, mas por pessoas que, graças a seu saber (cultura acadêmica), estão em condições de efetuar tais registros.

Exemplifiquemos isso.

Súmula do nosso STJ (em “linguagem acessível”, Superior Tribunal de Justiça) diz que “A exceção de pré-executividade é admissível na execução fiscal relativamente às matérias conhecíveis de ofício que não demandem dilação probatória.”

Mostre esse texto à sua secretária, ou à sua manicure, ou ao seu motorista, ou ao seu dentisna, ou ao seu médico e peça que lhe expliquem o que o STJ está querendo dizer. Certamente essa pessoa indagará: “Que é uma exceção de pré-executividade?” Você, se puder, lhe explicará. “Mas que é uma execução fiscal”? Essa é fácil de explicar. “Que é de oficio?” “Que é dilação probatória?”

A súmula n° 393 do STJ pertence a um campo limitado chamado “cultura jurídica”, que, obviamente, é privilégio daqueles que se dispuseram a ser “operadores do Direito”, da mesma forma como outras pessoas resolveram ser capinteiros, balconistas, criadores de codornas ou jogadores de futebol. Cada atividade profissonal dessas possui sua cultura específica, que, logicamente, interessa apenas, em princípo, aos que se dedicam a tal atividade. Quando minha mãe, que era costureira, comentava com uma cliente que aquele vestido ficaria melhor com um debrum vermelho, ou que ela iria chulear a borda interior da saia, que, aliás, ficaria melhor se fosse plissada, eu me limitava a ouvir. A cliente entendeu? Fim de papo (para empregar a tal “linguagem acessível”).

Ora, as decisões judiciais não se destinam, enquanto peças formais, aos interessados, mas a seus procuradores judiciais, mesmo porque é obrigatória a pesença do advogado no processo. O que interessa ao cliente é o reultado da decisão. Ora, para que o cliente saiba qual foi o resultado da causa, basta que pergunte a seu advogado, que, segundo é lícito presumir, está afeito ao linguajar técnico que se emprega no foro.

Quando o tal projeto de lei limita-se a falar em “linguagem acessível” mostra o grau de ignorância de quem o redigiu. Acessível a quem?

Nada melhor para ilustrar essa ridicularia legislativa do que um caso real. Nos velhos tempos de estágio no Departamento Jurídico do XI de Agosto, patrocinamos judicialmente uma causa do interesse de várias famílias de favelados. Alguns dos interessados quiseram assistir à sessão de julgameno do recurso e lá foram conosco. Falou o relator, falaram os advogados, foi proferido o voto do relator, manifestaram-se outros julgadores e o presidente da sessão anunciou o resultado. Nossos clientes ali calados, prestando atenção a tudo aquilo. Encerrado o julgamento, já no corredor do tribunal um deles não se conteve: “Então, doutor, nóis ganhemo o nóis perdemo?”

Acho que foi aí que me veio a idéia de um Tratado de Direito Favelário.

02 julho 2010

Caixinha de surpresas


A vida é, efetivamente, uma caixinha de surpresas, pois os acontecimentos nem sempre surgem como e quando nós esperávamos que ocorressem.

Veja se não é.

Conheço uma senhora, casada, mãe de dois filhos, que nos conta que, jovem ainda, dirigindo um automóvel, provocou colisão dele com outro veiculo, dirigido por um belo rapaz. Saiu ela do seu automóvel chorando, argumentação em que as mulheres são mestras, quase sempre com resultado favorável a elas. O fato é que o rapaz consolou-a, não só naquele como em outros dias e, atualmente, é o pai do casal de filhos acima referido.

Certo deputado estadual, que me honra com sua amizade, quando solteiro, morava em um apartamento onde, como seria natural, reunia de vez em quando amigos e amigas. Quando a reunião avançava no horário, a bela síndica tocava a campainha, pedindo moderação, pois alguns vizinhos estavam a reclamar do barulho. Lá pela terceira ou quarta vez, ele sugeriu à síndica que discutissem o assunto no dia seguinte, durante o jantar. Ou porque um só jantar não foi suficiente, ou porque houvesse outros assuntos a tratar, foram eles multiplicando-se e hoje eu cruzo com o simpático casal no elevador do prédio onde moramos, levando eles no colo uma bela menina de olhos verdes.

Os esportes, por pertencerem à atividade dos seres humanos vivos, não poderiam deixar de incluir-se na tal caixinha.

Veja se não é.

Uma partida de tênis costuma durar, no máximo, 3 horas. Recentemente, em Wimbledon, uma partida dessas durou inimagináveis 11 horas, com o placar também inimaginável de 78 a 80 no derradeiro set. Surpreendente, não?

Quando eu jogava basquete, lá se vão décadas e décadas, houve uma partida final entre dois clubes cujos nomes me escapam. O clube A precisava ganhar por 6 pontos ou mais para sagrar-se campeão. A partida aproximava-se do final e ele ganhava por apenas 2 pontos. Um de seus jogadores, talvez instruído pelo técnico, fez uma cesta contra, empatando a partida. Houve a prorrogação e o clube B foi derrotado por mais de 6 pontos de diferença.

Segundo nos conta Eduardo Galeano, na Ucrânia há uma estátua para registrar um fato insólito. Em 1942, plena ocupação alemã, o Dínamo de Kiev foi “convidado” a disputar uma partida de futebol contra uma equipe alemã, no estádio local. Mesmo advertidos pelo treinador, que pressentia que os nazistas não engoliriam fácil uma derrota, os jogadores locais empenharam-se para valer, vencendo o jogo. Em consequência, “los once fueron fusilados con las camisetas puestas, en lo alto de un barranco, cuando terminó el partido”, registra Galeano.

Mas, fale a verdade: você pensou que eu iria falar de futebol, é ou não é? Pois acertou, só que eu não vou falar da inacreditável e recente partida entre Uruguai e Gana. Serei mais genérico.

Se nos dispusermos a estudar a origem e a motivação dos esportes, veremos que eles estão ligados a fatos naturais da vida do homem, sendo, quase sempre, resultado de uma sublimação, atrevo-me a dizer. Seria cômodo ilustrar isso com o óbvio esporte do boxe, onde, sem subterfúgio algum, temos a briga entre dois homens. A correspondência entre a agressividade natural e a agressividade sublimada é evidente, até porque as normas de civilidade exigem que os punhos sejam cobertos por uma luva acolchoada. Ou exigiam, pois hoje também se pratica luta de boxe com as mãos desprotegidas, um fato bastante sintomático da “evolução” do ser humano a caminho de Cro-Magnon.

Recorde-se que inúmeros esportes coletivos são disputados em torno de uma bola. E que é a bola senão a simbolização da cabeça do adversário, que o vencedor primitivo trazia para sua tribo, como prova do êxito na guerra? Eis o que nos diz um admirador do futebol, o já citado Galeano, a respeito da figura do torcedor típico: “El fanático llega al estadio envuelto en la bandera del club, la cara pintada con los colores de la adorada camiseta, erizado de objetos estridentes y contundentes, y ya por el camino viene armando mucho ruido y mucho lío. Nunca viene solo. Metido en la barra brava, peligroso ciempiés, el humillado se hace humillante y da miedo el miedoso. La omnipotencia del domingo conjura la vida obediente del resto de la semana, la cama sin deseo, el empleo sin vocación o el ningún empleo: liberado por un día, el fanático tiene mucho que vengar”.

E já que estamos em época de Copa do Mundo, qual a origem da mais clássica das provas olímpicas, a corrida da maratona? Segundo reza a lenda, após uma árdua batalha na região de Marathon, quando os persas acabaram desistindo de invadir a Grécia, no ano 490 a.C., o soldado Filípides foi encarregado de avisar os seus compatriotas da vitória dos atenienses. Para isso, correu cerca de 36 quilômetros, para levar a boa-nova. Depois de fazer o feliz anúncio, morreu de exaustão. Aquela prova seria uma homenagem àquele herói grego (e, portanto, recordação de uma batalha sangrenta).

Não é de admirar, pois, que ao vencedor de uma disputa desportiva se entregue uma taça, onde, simbolicamente, ele beberá o sangue dos vencidos.

Portanto, quando se transforma uma simples partida de futebol em festa cívica, algo está errado, pois estamos invertendo o processo civilizatório. Fechar repartição pública em dia de jogo, então, é algo simplesmente impensável.

Não chegamos, é verdade, ao desvario do governo de um país africano que teria decretado que os jogadores da seleção nacional lá deles não poderão sair do país nos próximos dois anos, como punição pela desclassificação da equipe na recente Copa da África. Nem à xenofobia francesa que considerou a diminuta presença de franceses puro-sangue na seleção a causa maior da sua precoce desclassificação.

Como diria certo estadista europeu, “ces là ne sont pas des pays sérieux”.

13 junho 2010

Há um Direito Internacional?

“Oficiais do Exército de Israel exigem que Netanyahu inicie investigação.”
(Folha de S.Paulo, edição de 06.06.2010)

Em seu célebre Manual de Direito Internacional (Cambridge University Press, 1997), Malcolm Shaw inicia sua apresentação dizendo que, na longa caminhada da Humanidade das cavernas ao computador, um papel central tem sido atribuído à idéia do Direito: a idéia de que a ordem é necessária e o caos é inimigo de uma justa e estável existência.

A questão, como ele demonstrará nas 900 páginas seguintes, é: que é o Direito?

Nascido em Babel, em 1818 a.C., Hammurabi governou a Babilônia de 1792 até sua morte, ocorrida em 1750 a.C., depois de fundar o Império Babilônico, unificando o mundo mesopotâmico. Todo estudante de Direito é a-presentado a ele no primeiro ano do curso, em razão do código de normas que leva seu nome. São 282 preceitos, um dos quais a famosa “lei de talião” (“olho por olho”), constante de uma lápide descoberta no início do século XX por pesquisadores franceses e que hoje pode ser visto no Museu do Louvre. É, na verdade, um tronco de cone de pedra negra (diorito) de 2,25m de altura, 1,60m de cir-cunferência na parte superior e 1,90m de base, cuja superfície está coberta por texto escrito em alfabeto cuneiforme. O que os professores não dizem é que, acima do texto, está representado o rei, sentado em seu trono, tendo diante de si um oráculo, a sugerir a origem divina do texto.

Não é difícil concluir que Hammurabi, pretendendo-se impor a toda a Mesopotâmia, como bom demagogo, não atribuiu a si a autoria do texto, sugerindo que os desobedientes se haveriam com ninguém menos do que o seu autêntico autor, Deus, qualquer que fosse o conceito que tivessem disso.

Nascido posteriormente (por volta de 1590 a.C., segundo alguns, 1250, para outros, pois não há dados confiáveis a respeito de sua real existência), Moisés assumiu o duro encargo de comandar a fuga de hebreus que haviam sido levados para o Egito. Com o claro propósito de impedir a dispersão da-quela horda de fugitivos, mesmo porque pertenciam eles a tribos diversas, uti-lizou-se o líder do mesmo expediente já utilizado com êxito por Hammurabi. Exibiu àquele povo disperso um conjunto de normas de conduta, onde não faltava a mesma lei de talião (cf. Êxodo 34, 28), para confirmar que o autor havia sido o mesmo.

Alguns séculos mais tarde, o bispo Stephan Langton, eis a ironia!, foi encarregado pela Igreja e nobreza inglesas de elaborar uma petição propondo ao rei que o poder divino, sobre o qual se assentava o ilimitado pode real, não mais se confundisse com o poder humano. O próprio rei, contudo, dera-lhes esse motivo quando, insurgindo-se contra a autoridade papal, se recusou a aceitar a designação de Stephen para assumir o Arcebispado de Canterbury, em 1206. O papa Inocêncio III, em represália, além de excomungar o rei, determinou o fechamento de todas as igrejas do país, o que significou ficar o povo inglês sem o refrigério trazido por sua fé. A insatisfação popular levou o soberano a reconsiderar seu ato, submetendo-se à autoridade papal em 1213. Esse precedente seria habilmente explorado pela nobreza no futuro.

De fato, no ano seguinte, uma fracassada tentativa do rei de retomar parte das terras ocupadas pela França elevou o clima de confronto entre o baronato e o soberano. Estrategicamente, encarregaram ninguém menos do que o arcebispo de Canterbury para redigir uma petição dirigida ao rei John I, on-de era reivindicado o reconhecimento de alguns direitos dos súditos em face do monarca. Eram 63 temas, a maioria dos quais, porém, interessando apenas ao baronato.

Inicialmente o rei recusou-se a apor o selo real no documento, o que justificou que bispos e nobres realizassem a marcha do Exército de Deus e da Santa Igreja em direção à cidade de Londres, que foi por eles tomada, ameaçando alastrar a revolta por todo o país. No dia 15 de junho de 1215, porém, o rei finalmente reconheceu que não tinha escolha e acolheu a petição, com-prometendo-se a pautar sua conduta em relação aos súditos de acordo com o ali proposto. Apôs o selo real no documento, exclamando a frase célebre: “As well may they ask my crown!”. Algo como “bem que vocês poderiam pedir também a minha coroa!”

Os princípios constantes de tal documento, conhecido como Magna Carta Libertatum, alastraram-se pelo mundo, chegando às colônias que religiosos ingleses haviam plantado na parte norte do continente americano. Em lugar de invocar mais uma vez o nome de Deus, os fundadores da pátria norte-americana invocaram a vontade do povo, mes-mo sabendo que negros, mulheres e nativos ainda não mereciam o título de cidadãos. Ironicamente, porém, até hoje, um ateu, ou meramente agnóstico, quando ali depõe perante uma autoridade pública, é obrigado a colocar a mão espalmada sobre um certo livro que, para o depoente, é apenas um livro como qualquer outro, fazendo uma promessa que, para ele, não tem o menor sentido. Isso para não falar na afirmação constante das notas de dólares (“In God we trust”), que não condiz com uma proposta de governo laico (“Congress shall ma-ke no law respecting an establishment of religion ...”)

No campo do Direito Internacional, a maioria das nações do planeta, após o mais recente conflito mundial, houve por bem criar organismos internacionais destinados a resolver, de forma pacífica, conflitos envolvendo nações soberanas a eles filiadas. Justamente por causa dessa soberania, o funcionamento dessas entidades são de proposital complexidade, como registra An-tonio Cassese (International Law, editado por Malcom Evans e publicado pela Oxford University Press, 2003), mesmo quando se cuide de crime de guerra, crime contra a Humanidade ou genocídio.

Que os governantes, reis ou não, se utilizem de certos expedientes para melhor impor sua autoridade intra muros, é uma questão a ser discutida nas eleições em que, nas democracias, são os governantes substituídos de tempos em tempos.

Quando, porém, nações que juraram submeter-se às decisões de entidade internacionais, a que se filiaram livremente e das quais poderão desligar-se quando lhes convenha, invocam sua própria autoridade para desacatar tais decisões e ignorar tais entidades, é para temer o que ainda nos trará o futuro.

07 junho 2010

Let it be


El amor que nace muere,

como la flor de un jardín.

Nada es para siempre!

Deja ir.


Hoy la luna está en el cielo

y mañana, va a venir?

Nada es para siempre!

Deja ir.


Deja ir, deja ir, deja ir, deja ir

Nada es para siempre!

Deja ir.


Se la lluvia molla el pelo

en su modo de caer.

Déjala que escurra.

Deja ir.


Que le importa noche oscura

pronto el sol va a lucir.

Piensa siempre en esto.

Deja ir.


Deja ir, deja ir, deja ir, deja ir

Nada es para siempre!

Deja ir.


22 maio 2010

Cordelismo

Não sei bem quando começou isso de recitar à maneira dos famosos repentistas do Nordeste. A lembrança mais antiga que tenho é de uma reunião de amigos juízes de São Paulo que programaram uma quinzena de férias com as respectivas famílias. Alguns de nós deliberaram fechar um hotel de beira-mar em Santa Catarina, composto de uns tantos chalés. Coincidentemente, o proprietário tinha na família uma juíza, pessoa muito simpática, e um advogado, falante como todos os advogados. O nome dele era Lênine e apenas por isso havia sido recolhido à prisão por alguns dias, ao tempo da gloriosa de 64, até os militares descobrirem que o verdadeiro comunista nunca havia estado no Brasil. “Se alguém deveria ser preso por causa do meu nome, esse alguém é meu falecido pai” dizia o advogado, com toda procedência.

Alugado o hotel todo, rateamos entre nós o custo disso e lá fomos com mulher e filhos. Nessa quinzena criaram-se ou solidificaram-se grandes amizades, especialmente por causa da facilidade das crianças de se entrosarem, além do fato de as esposas conhecerem-se melhor. Um desses juízes chamava-se Antonio Cezar Peluso. Conhece?

Durante uma churrascada, o Gilberto Valente, que eu já conhecia da Faculdade, pôs-se a arreliar os presentes, ao som do seu inseparável pandeiro, imitando o que fazem os cantadores nordestinos nas feiras. Todos riam, mas nenhum tinha coragem de responder aos seus versos. Quando ele se chegou à nossa mesa, ocorreu-me de replicar os versos provocativos dele. Fui ovacionado, pois estava, de certa forma, lavando a honra de todos. Ele treplicou e eu, empolgado, sapequei nova resposta rimada. Aquilo foi longe, ao som do pandeiro e da cerveja. Dentre os presentes estava o Gomes de Amorim, mais tarde desembargador, churrasqueiro que se imortalizou no refrão: "A lingüiça do Amorim é gostosa até o fim".

Depois disso, em mais de uma oportunidade atrevi-me a retomar aquela forma de versejar, empregando, sempre que possível, o linguajar inculto dos cantadores nordestinos.

Recentemente, foi noticiado que certa senhora estava a processar o dono de um galo, porque este perturbava a sensível vizinha, que trabalhava em casa. Isso mereceu este comentário:

Briga de galo

Eu prefiro um cocorico

a buzina de artomove.

Cum isso nem se comove

quem só pensa em ficá rico.

A Natália Teodoro,

qui trabaia no quintá,

qué fazê o galo calá,

e apresenta o seu choro.

Oça aqui dona Natália:

o galo tomém trabáia:

é ele que acorda o sór.

Eu sei bem do que eu falo

que dinhêro vai pagá-lo

por cantar em dó maior?

Zé Preá e Ontõe Gago são os nomes de guerra de dois amigos nordestinos, ambos amantes desse tipo de desafio. Trocaram farpas rimadas e eu entrei na contenda com estas apaziguadoras estofes:

Pra Ontõe Gago e Zé Preá

Ocêis dois pára com isso!

Gente mais da muderninha,

tão procurano é inguiço

seus vendedô de farinha!

Nordestinos mais coquete,

falano coisa difíci

pra não dizê só tolici

só mostrano gabolici

com isso de Internete.

Onde puséro o cordé?

Cadê nossos repentista?

Tão pareceno mané

achano que são artista!

Essa globalização

matô a nossa curtura.

Diga lá: quem mais atura

aicecrim de rapadura

e caubói lá no sertão?

Tenho uns amigos gaúchos que me convidam com insistência para ir ao Sul saborear um bom churrasco com eles. Um paulista que lá esteve saiu corrido. O gaúcho, quando chegou o hóspede, disse ao empregado da instância: “Dê-lhe a janta e depois mate.”

Por motivos vários, isso ainda não foi possível, mas deve concretizar-se ainda neste ano. Na troca de correspondência, um deles, da família Maia, fez uma sábia advertência: “Quem é coxo parte cedo”. Tomei isso como um mote e fiz-lhes esta

Homenagem a um gaúcho

Quem é coxo parte cedo”,

frase mais do que batuta.

Um elogio te concedo:

tu és um filho da luta!

Já tem Maia no pedaço

botano sua cuié,

traz a espada de bom aço

vem tarveis com a muié.

Dança o shótis ou baião,

o amigo do nordeste?

Puxa gaita ou rabecão

gaúcho do sudoeste?

Pra saudar nossa amizade,

e abraçar a rapaziada,

eu canto Mário de Andrade

com sua viola quebrada.


A vantagem desse tipo de poesia é que não tem mais fim, especialmente em tempos de Internet. Essa brincadeira acabou envolvendo meus amigos Zé Preá, Ontõe Gago e Mano Meira.

Desafio

Ontõe Gago e Zé Preá,

gente boa num repente,

se encontraro em Cabrobró

pra alegria dos presente.

Fizero um forrobodó

de botá inveja na gente.

Desafia um daqui

arremete outro de lá

e ameaça arrebentá

a cara desse sagüi.

Eis que chega um forastero

para entrá na brincadera.

Quem é ele? Mano Mero,

vindo do sur brasilero.


No Nordeste é no repente,

lá no sul é califórnia.

Veja o senhor a esbórnia

que ele tem na sua frente.

Zé Preá puxa o punhá

Mano Meira sua espada.

Bota ela ali deitada

no terreno do quintar.

E o gaúcho vem bailando

saltita sobre a danada.

Zé Preá nu intende nada,

Ontõe Gago só mirando.

Toda lida ali termina

com gritinho e alegria,

com abraço e cantoria.

Coisa munta feminina.

Devo agora terminá

este modesto repente.

Me desculpe, Zé Preá,

se lhe fui tão renitente.

Mano Meira vem pra cá

comer churrasco co’a gente.

Ontõe Gago vai dançá

xaxado, todo contente.

Publicados os versos, os três se encheram de brios e se puseram a engrossar o cordel. Espero que eles tragam para cá os versos que então fizeram.



A literatura de cordel é tipicamente nordestina. Um dos maiores cantadores do Nordeste, se não for o maior deles todos, era o cego Aderaldo. Ficaram famosas as cantorias encabeçadas por ele, pois sempre aparecia alguém querendo superá-lo. E quase sempre acabava entregando os pontos. “Apanhando”, como dizem eles. Um desses desafios, por sinal longuíssimo, terminou, porém, empatado, como ele mesmo relatou depois:

“Havia quatro cervejas

que um coronel apostou

dizendo que todas quatro

pertencem ao vencedor.

Nós bebemos as cervejas.

Nem um nem outro apanhou.”

Menos não fez Antonio Gonçalves da Silva, mais conhecido por seu sintomático apelido. Até Luis Gonzaga musicou-lhe longuíssimo poema, uma espécie de Lusíadas nordestino. Talvez você prefira o Patativa do Assaré a descrever a morte da própria filha, com direito a rabeca e viola.

Curiosamente, quem me enviou esse longo lamento foi o Francimar Torres Maia, popular Cearucho, que, nascido no Ceará, hoje vive com a família no Rio Grande do Sul.

Coisas desses brasis.