22 maio 2010

Cordelismo

Não sei bem quando começou isso de recitar à maneira dos famosos repentistas do Nordeste. A lembrança mais antiga que tenho é de uma reunião de amigos juízes de São Paulo que programaram uma quinzena de férias com as respectivas famílias. Alguns de nós deliberaram fechar um hotel de beira-mar em Santa Catarina, composto de uns tantos chalés. Coincidentemente, o proprietário tinha na família uma juíza, pessoa muito simpática, e um advogado, falante como todos os advogados. O nome dele era Lênine e apenas por isso havia sido recolhido à prisão por alguns dias, ao tempo da gloriosa de 64, até os militares descobrirem que o verdadeiro comunista nunca havia estado no Brasil. “Se alguém deveria ser preso por causa do meu nome, esse alguém é meu falecido pai” dizia o advogado, com toda procedência.

Alugado o hotel todo, rateamos entre nós o custo disso e lá fomos com mulher e filhos. Nessa quinzena criaram-se ou solidificaram-se grandes amizades, especialmente por causa da facilidade das crianças de se entrosarem, além do fato de as esposas conhecerem-se melhor. Um desses juízes chamava-se Antonio Cezar Peluso. Conhece?

Durante uma churrascada, o Gilberto Valente, que eu já conhecia da Faculdade, pôs-se a arreliar os presentes, ao som do seu inseparável pandeiro, imitando o que fazem os cantadores nordestinos nas feiras. Todos riam, mas nenhum tinha coragem de responder aos seus versos. Quando ele se chegou à nossa mesa, ocorreu-me de replicar os versos provocativos dele. Fui ovacionado, pois estava, de certa forma, lavando a honra de todos. Ele treplicou e eu, empolgado, sapequei nova resposta rimada. Aquilo foi longe, ao som do pandeiro e da cerveja. Dentre os presentes estava o Gomes de Amorim, mais tarde desembargador, churrasqueiro que se imortalizou no refrão: "A lingüiça do Amorim é gostosa até o fim".

Depois disso, em mais de uma oportunidade atrevi-me a retomar aquela forma de versejar, empregando, sempre que possível, o linguajar inculto dos cantadores nordestinos.

Recentemente, foi noticiado que certa senhora estava a processar o dono de um galo, porque este perturbava a sensível vizinha, que trabalhava em casa. Isso mereceu este comentário:

Briga de galo

Eu prefiro um cocorico

a buzina de artomove.

Cum isso nem se comove

quem só pensa em ficá rico.

A Natália Teodoro,

qui trabaia no quintá,

qué fazê o galo calá,

e apresenta o seu choro.

Oça aqui dona Natália:

o galo tomém trabáia:

é ele que acorda o sór.

Eu sei bem do que eu falo

que dinhêro vai pagá-lo

por cantar em dó maior?

Zé Preá e Ontõe Gago são os nomes de guerra de dois amigos nordestinos, ambos amantes desse tipo de desafio. Trocaram farpas rimadas e eu entrei na contenda com estas apaziguadoras estofes:

Pra Ontõe Gago e Zé Preá

Ocêis dois pára com isso!

Gente mais da muderninha,

tão procurano é inguiço

seus vendedô de farinha!

Nordestinos mais coquete,

falano coisa difíci

pra não dizê só tolici

só mostrano gabolici

com isso de Internete.

Onde puséro o cordé?

Cadê nossos repentista?

Tão pareceno mané

achano que são artista!

Essa globalização

matô a nossa curtura.

Diga lá: quem mais atura

aicecrim de rapadura

e caubói lá no sertão?

Tenho uns amigos gaúchos que me convidam com insistência para ir ao Sul saborear um bom churrasco com eles. Um paulista que lá esteve saiu corrido. O gaúcho, quando chegou o hóspede, disse ao empregado da instância: “Dê-lhe a janta e depois mate.”

Por motivos vários, isso ainda não foi possível, mas deve concretizar-se ainda neste ano. Na troca de correspondência, um deles, da família Maia, fez uma sábia advertência: “Quem é coxo parte cedo”. Tomei isso como um mote e fiz-lhes esta

Homenagem a um gaúcho

Quem é coxo parte cedo”,

frase mais do que batuta.

Um elogio te concedo:

tu és um filho da luta!

Já tem Maia no pedaço

botano sua cuié,

traz a espada de bom aço

vem tarveis com a muié.

Dança o shótis ou baião,

o amigo do nordeste?

Puxa gaita ou rabecão

gaúcho do sudoeste?

Pra saudar nossa amizade,

e abraçar a rapaziada,

eu canto Mário de Andrade

com sua viola quebrada.


A vantagem desse tipo de poesia é que não tem mais fim, especialmente em tempos de Internet. Essa brincadeira acabou envolvendo meus amigos Zé Preá, Ontõe Gago e Mano Meira.

Desafio

Ontõe Gago e Zé Preá,

gente boa num repente,

se encontraro em Cabrobró

pra alegria dos presente.

Fizero um forrobodó

de botá inveja na gente.

Desafia um daqui

arremete outro de lá

e ameaça arrebentá

a cara desse sagüi.

Eis que chega um forastero

para entrá na brincadera.

Quem é ele? Mano Mero,

vindo do sur brasilero.


No Nordeste é no repente,

lá no sul é califórnia.

Veja o senhor a esbórnia

que ele tem na sua frente.

Zé Preá puxa o punhá

Mano Meira sua espada.

Bota ela ali deitada

no terreno do quintar.

E o gaúcho vem bailando

saltita sobre a danada.

Zé Preá nu intende nada,

Ontõe Gago só mirando.

Toda lida ali termina

com gritinho e alegria,

com abraço e cantoria.

Coisa munta feminina.

Devo agora terminá

este modesto repente.

Me desculpe, Zé Preá,

se lhe fui tão renitente.

Mano Meira vem pra cá

comer churrasco co’a gente.

Ontõe Gago vai dançá

xaxado, todo contente.

Publicados os versos, os três se encheram de brios e se puseram a engrossar o cordel. Espero que eles tragam para cá os versos que então fizeram.



A literatura de cordel é tipicamente nordestina. Um dos maiores cantadores do Nordeste, se não for o maior deles todos, era o cego Aderaldo. Ficaram famosas as cantorias encabeçadas por ele, pois sempre aparecia alguém querendo superá-lo. E quase sempre acabava entregando os pontos. “Apanhando”, como dizem eles. Um desses desafios, por sinal longuíssimo, terminou, porém, empatado, como ele mesmo relatou depois:

“Havia quatro cervejas

que um coronel apostou

dizendo que todas quatro

pertencem ao vencedor.

Nós bebemos as cervejas.

Nem um nem outro apanhou.”

Menos não fez Antonio Gonçalves da Silva, mais conhecido por seu sintomático apelido. Até Luis Gonzaga musicou-lhe longuíssimo poema, uma espécie de Lusíadas nordestino. Talvez você prefira o Patativa do Assaré a descrever a morte da própria filha, com direito a rabeca e viola.

Curiosamente, quem me enviou esse longo lamento foi o Francimar Torres Maia, popular Cearucho, que, nascido no Ceará, hoje vive com a família no Rio Grande do Sul.

Coisas desses brasis.



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