25 março 2013

Legehjelp (1)


Ao Dr. Helano, com estima

 

Dizem que os erros médicos são cobertos pela terra. Na Noruega isso não ocorre. Ali, tais erros são cobertos pela neve. O que sempre nos enche de coragem toda vez que precisamos ir a um consultório médico ou mesmo a um hospital de lá. Saber se alguém morreu de pneumonia dupla ou de mera pneumonia simples pode interessar a algum estatístico, não à família e aos amigos do morto. Menos ainda ao morto. Logo, não saindo vivo de uma cirurgia, que me transformem em cinza e façam dela um bom adubo para minhas orquídeas, eis meu último desejo. Pelo menos se lembrarão de mim cada vez que ela florir, sem terem o trabalho de ir até o cemitério conferir se ainda estou lá bem guardado.
É o que as pessoas geralmente fazem, pois levar flores para quem não pode cheirá-las é perda de tempo e de dinheiro. Igual aos japoneses, que levam arroz para o morto, que teima em permanecer deitado e sem apetite. E saber que ainda serei útil depois de morto me dá uma certa tranquilidade que compensará eventual erro médico que me tenha tirado de cena antes do tempo previsto.
Aliás, os cemitérios da Noruega são tão simpáticos, que não me parece que seus habitantes tenham do que reclamar. Eles não chegam a ser magníficos hotéis cinco estrelas, com espaço cultural e biblioteca circulante como os hospitais de lá, mesmo porque é discutível que os mortos queiram ler alguma coisa. Mas é até prazeroso visitar as campas, todas muito discretas, como convém à igualdade das caveiras que lá estão guardadas, pois não podemos esquecer que aquilo é uma sociedade socialista, uma espécie de Cuba, mas de primeira classe. E aquelas inscrições tão simpáticas, dizendo coisas que talvez faltou dizer em vida. E às vezes há uma igrejinha medieval ao lado, para fazermos nossas orações pelos que se foram.
Isso é algo que sempre me intriga: ou bem acreditamos que haja alma ou não acreditamos. Se acreditamos, sabemos que ela certamente não estará confinada às quatro paredes da sepultura. Se não acreditamos, sabemos que tudo o que há ali embaixo é um corpo em decomposição ou um esqueleto. Logo, para que ir ao cemitério?
Nos Estados Unidos, como é bastante sabido, o pavor de serem obrigados a pagar indenizações astronômicas tem afastado bons cirurgiões das salas de cirurgia. Eles preferem fazer pesquisa ou ministrar medicamentos do que correr o risco de serem chamados à Corte para explicar a morte do paciente ou algum dano sobrevindos da cirurgia. “O paciente queixa-se de que a cicatriz deixada no abdômen dele está um centímetro maior do que o necessário. E pede um milhão de dólares de indenização. O senhor é inocente ou culpado?” E tome acordo, patrocinado pela companhia de seguros, cujo prêmio o médico paga o ano todo.
Antes os médicos inventaram a alergia para diagnosticar tudo aquilo cuja causa desconheciam. Hoje falam em virose, um novo nome para a mesma ignorância. Em compensação, os advogados inventaram a palavra iatrogenia. Esta é utilizável contra os médicos. “Efeito secundário danoso ao paciente, decorrente da atividade médica” segundo qualquer dicionário médico. Previsível e evitável, segundo se diz na petição inicial. E tome pedido de indenização por dano moral.
Amigo meu que passeava nos States, sentiu-se mal e foi levado às pressas a um daqueles hospitais de nome famoso. Feito o diagnóstico, o médico indicou cirurgia de urgência. Meu amigo ficou apavorado, pois não conhecia o tal médico. Foi acalmado pela delicada esposa: “Veja o lado positivo da coisa, querido. Vamos imaginar que ele cometa um erro e você morra. Já imaginou o valor da indenização que eles vão me pagar?” Ele deve ter ficado muito feliz com essa possibilidade! Eu, acontecesse isso comigo, chamaria o escrivão e faria um testamento, deixando meus bens para o taxista que me levou ao hospital!
Os países latinos têm uma atração pela especialização, que consiste em alguém saber cada vez mais sobre cada vez menos, até o dia em que saberá praticamente tudo sobre praticamente nada, no dizer de um humorista, o nosso professor de Medicina Legal, o Almeidinha. E isso tem produzido situações curiosas, como a daquela senhora que, estando no banho preparando-se para ir a uma festa importante, deparou-se com um caroço no seio esquerdo. Terminou o banho, arrumou-se para a festa, mas a ideia de um câncer de mama não lhe saía da cabeça, o que foi percebido por uma amiga. “Ora”, diz a tal amiga, “tenho um cancerologista extraordinário, ali na Avenida Paulista. Vá ao consultório dele no prédio número 47 e fale com o doutor Xavier”. No dia seguinte, a ainda nervosa senhora lá se foi para a Paulista, mas seu estado de ânimo a fez confundir-se e entrou no prédio número 74, onde funcionava um escritório de advocacia, talvez o do Magalhães. A aflita mulher foi-se logo dirigindo à secretária: “Eu tenho um câncer no seio esquerdo e quero um doutor que me atenda com urgência”. A secretária, sem entender nada, foi logo dizendo: “Mas a senhora está enganada. O doutor Magalhães é especialista em Direito”. E a mulher, surpresa: “Mas isso é especialização demasiada!”
Tal situação certamente jamais ocorreria na Noruega, onde os médicos têm uma visão holística do organismo humano. É como mecânico de automóvel: ou entende de tudo ou não nos serve. Modestamente, um desses mecânicos, num país da América do Sul, colocou uma placa na frente da oficina: “Especializado em carros nacionais e importados”. Ou seja, especializado em tudo, como muitos médicos noruegueses.
Imagine a cena: alguém chega ao consultório do médico, que eles chamam de lege, e informa: “Doutor, eu senti uma vertigem, caí sobre o braço, que se partiu, e, com isso, perdi o apetite.” Fosse no Brasil, seriam três, pelo menos, os médicos  a serem consultados: o tomografista, para verificar a origem da vertigem, talvez um tumor no cérebro; o radiologista, para ver se a lesão no braço não seria uma fratura cominutiva; e o nutricionista, para elaborar uma dieta alimentar para o paciente readquirir o prazer de comer. Além do clínico geral que atendera inicialmente o paciente, é claro. Sendo na Noruega, a secretária do médico retira sangue de teu braço, faz os exames ali mesmo, na salinha contígua, e ele, em seguida, diagnostica, pelo exame de sangue, que a vertigem foi devida à brusca mudança do tempo, o braço deve ser engessado e o paciente deve tomar óleo de fígado de bacalhau para suprir as deficiências alimentares decorrentes da inapetência. “E volte daqui a três meses.”
Em outros países, a coleta de material para exame é feita no laboratório, com toda assepsia possível. Imagino-me indo fazer um exame de urina aqui no Brasil e sendo orientado pela enfermeira. “Com este gaze úmido o senhor lava o seu como-direi? Com este outro, seco, o senhor enxuga o como-direi? e colhe o material com todo cuidado para não haver contaminação. Depois de colhido o material, o senhor o coloca neste frasco sem tocar na parte interna, pois ele está esterilizado. Depois, o senhor fecha o frasco com esta tampa, tomando cuidado para não tocar na parte interna, porque ela também está esterilizada. Feito isso, o senhor me traz o frasco fechado para fazermos o exame”.
Já na Noruega o procedimento é diferente. “O senhor compra na farmácia um frasquinho, urina dentro e me traz tudo aqui”. Eu compro o tal frasquinho, abro, colho o material, fecho o frasquinho e levo ao consultório. Ali mesmo o material é examinado e se conclui que eu tenho sabonete na urina. “Se o senhor me disser a marca do sabonete talvez eu confira se não seria aquele com que lavei a mão antes de iniciar o tal procedimento. Vai ver não enxaguei devidamente o como-direi.”
Imagino como deve ser uma curetagem. Ou uma operação cardíaca. Nesta, talvez o cirurgião abra o peito do paciente, retira o órgão a ser operado e pede ao próprio paciente: “O senhor segure um instante enquanto eu pego a tesoura”. Essa integração entre paciente e médico é muito valiosa para a recuperação do operado. Feita a cirurgia e costurado o peito do paciente, uma surpresa. “Doutor, que faço com este pedaço de safena que o senhor me pediu para segurar?” “Xii! Vai ver que eu usei o caninho plástico da bolsa d’água destilada para fazer a ponte cardíaca!”
Pensando bem vivendo naquele paraíso, você acha que vão preocupar-se com essas miudezas?



[1] Tratamento médico, em norueguês

14 março 2013

Um novo Papa


“Vai, Francisco, e reconstrói a minha Igreja” (palavras de Jesus ouvidas por Francisco de Assis, aos 24 anos de idade, segundo seus biógrafos)

 
Toda religião, qualquer religião, assenta-se em dogmas, que são verdades que devem ser aceitas sem tugir nem mugir. Numa época de rebeldia, como a atual, uma afirmação dessas soa como uma bofetada, um atentado aos direitos fundamentais da pessoa humana. Basta um exemplo bastante simples para demonstrar que essa indignação é fruto da ignorância. Suponha que você é convidado para um baile de formatura. O convite diz traje rigor. “Isso é um absurdo, pois eu tenho o direito de vestir-me como bem entender”, dirá você. E irá ao baile de tênis e calção, exercendo um “direito fundamental”. Não preciso dizer o que ocorrerá quando você tentar entrar na festa. Um dos responsáveis pela segurança certamente lhe dirá “ou você se traja de acordo com a natureza da festa ou não poderá entrar”. E ninguém dirá que ele está errado.
Mal comparando, com a religião ocorre o mesmo. Ou você aceita as regras que regem a conduta dos fiéis ou fica de fora, mesmo porque você não é obrigado a adotar esta ou aquela religião. O que não faz sentido é cada um fazer uma religião adaptada a seus usos e costumes.
O catolicismo, por exemplo, palavra que significa universal, é uma religião que se esparrama por várias culturas e por sociedades que se pretendem democráticas. Sua estrutura, no entanto, não é nem pode ser democrática, dada a premissa de que ela age sob a inspiração do Espírito Santo, outra verdade irrecusável, tendo como cabeça visível o Papa. O dogma central em que se assenta ela é a identidade absoluta entre Jesus e Deus. Assim, ou você aceita essa verdade sem discutir, ou vai procurar outra festa, que tenha exigências mais palatáveis. Por mais anticientífica que seja a história de Maria, também é ela questão de fé. Aliás, enquanto ela é branca na Europa é negra no Brasil. Como isso é possível? “A Deus nada é impossível” certamente lhe responderá um teólogo.
Ficou famoso o bate boca entre o monge dissidente Pelagius e aquele que viria a ser Santo Agostinho. Nessa e em outras dissidências o que se pretende é que qualquer pessoa que tenha uma vida correta deve ser aceita como cristã. Nada contra isso, evidentemente. O problema está no verbo “aceitar”. Aceitar por quem? A Igreja, a quem cabia dar a última palavra (e para a qual só os católicos podiam considerar-se cristãos), decretou que o Pelagismo era heresia, pois contraria dogmas da Igreja.
Postas essas questões, como fica aquilo que muitos chamam de “necessidade de modernização” da Igreja Católica?
Em primeiro lugar, é bastante óbvio que as religiões compreendem, como tudo o mais, “forma” e “fundo”. Por “fundo” devemos entender tudo aquilo que deve permanecer imutável, pois é da essência dessa determinada religião. “Forma”, ao contrário, compreende os meios pelos quais essas verdades inquestionáveis chegam até os fiéis. Os ritos, por exemplo.
Ao que se diz na biografia de Sidarta Gautama Sakia Muni, meditou ele durante 49 dias à sombra de um baobá, o que lhe permitiu ser um “iluminado” (Buda). Em que afetaria a crença de um budista discutirmos se foram, de fato 49 ou 29 dias? Ou se a árvore era um baobá ou um carvalho?
 O Judaísmo usa a expressão “Terra prometida”, dando-lhe um sentido físico. Isso diz com o fundo ou com a forma daquela religião? O teólogo jesuíta e cientista Teilhard de Chardin passou a vida tentando mostrar que fé e ciência não se excluem, pois cuidam de assuntos diversos. Para ele, nem mesmo uma criança acreditaria que o Paraíso (ou Terra Prometida) seria um campo verde onde o leão pasta ao lado da ovelha. O texto bíblico, diz ele, usa de uma paráfrase para dar ideia do que seja a paz desejada por todos. No capítulo X do livro de Josué diz-se que, por determinação de Javé, “o sol se deteve e a lua parou, até que o povo se vingou de seus inimigos”. É claro que isso não condiz com o que nos diz a Astronomia.
Havendo morrido em 1955, deixou escrito, em Mundo, Homem e Deus: “Tenho tentado, nestes últimos anos, circunscrever e definir a razão exata pela qual o Cristianismo, apesar de uma certa renovação de sua tarefa junto aos meios conservadores (ou não desenvolvidos) do mundo, está decididamente prestes a perder, sob os nossos olhos, seu prestígio e seu poder atrativo sobre a parte mais influente e mais progressiva da Humanidade. Não apenas para os Gentios ou simples fiéis, mas até mesmo no âmago das ordens religiosas, o Cristianismo ainda abriga parcialmente, mas já não recobre, nem satisfaz, nem mais conduz a ‘alma moderna’. Algo já não funciona e, portanto, algo é esperado a curto prazo no planeta, em matéria de fé e de religião. Mas o que precisamente?”
É algo que parecer ter sido escrito ontem, a mostrar que, no Cristianismo, essa disputa entre fé e ciência é mais antiga do que a Sé de Braga, para usar uma imagem bem adequada ao tema.
Aliás, pouca gente sabe que a teoria segundo a qual o Universo se teria originado da “explosão” de uma substância que havia sido submetida a uma compressão insuportável e que os céticos apelidaram de Big bang, foi proposta pelo belga Georges-Henri Édouard Lemaître, morto em 1966, que, além de físico, era sacerdote católico.
Por outro lado, o astrofísico Stephen Hawking, ao falar do Grande Projeto relativo à criação do Universo, tenta conciliar a relatividade de Einstein com a física quântica, mesmo afirmando serem elas incompatíveis quando se cuida do macrocosmo. “Deve haver um modo de conciliá-las” conclui ele, admitindo que a física, quanto a isso, lida com elementos apenas supostos, incapaz de demonstrar sua real existência. “O fato de que nós seres humanos tenhamos sido capazes de chegar tão perto da compreensão das leis que governam nosso universo e a nós mesmos é um grande triunfo”, diz ele. “Mas talvez o verdadeiro milagre seja que considerações lógicas abstratas conduzem a uma teoria única que prevê e descreve um vasto universo, repleto da espantosa variedade que vemos. Se a teoria for confirmada pela observação, será a conclusão bem sucedida de uma busca que remonta a mais de três mil anos”, conclui.
Prefiro ficar com S. Agostinho: “Creio para compreender”.

11 março 2013

A verdade de sempre


           “Durante o fim de semana, os urubus meteram-se pelas sacadas do palácio presidencial, destroçaram a bicadas as malhas de arame das janelas e espantaram com suas asas o tempo parado no interior, e na madrugada da segunda-feira a cidade despertou de sua letargia de séculos com uma morna e terna brisa de morto grande e apodrecida grandeza. Só então nos atrevemos a entrar sem investir contra os carcomidos muros de pedra fortificada, como queriam os mais decididos, nem arrombar com juntas de bois a entrada principal, como outros propunham, pois bastou que alguém os empurrasse para que cedessem em seus gonzos os portões blindados que nos tempos heroicos da casa haviam resistido aos canhões de William Sampier. Foi como penetrar no âmbito de outra época, porque o ar era mais tênue nos poços de escombros da vasta guarida do poder, e o silêncio era mais antigo, e as coisas eram arduamente visíveis na luz decrépita. Na extensão do primeiro pátio, cujas lajotas haviam cedido à pressão subterrânea do mato, vimos o refém na desordem da guarda fugitiva, as armas abandonadas nos armários, a longa mesa de tábuas toscas com os pratos das sobras do almoço dominical interrompido pelo pânico, vimos o galpão na penumbra, onde estiveram os escritórios civis, os fungos coloridos e os lírios pálidos entre os memoriais não atendidos cujo curso ordinário havia sido mais lento que as vidas mais áridas, vimos no centro do pátio a pia batismal onde foram cristianizadas com sacramentos marciais mais de cinco gerações, vimos no fundo a antiga cavalariça dos vice-reis transformada em garagem, e vimos entre as camélias e as mariposas o cupê dos tempos ruidosos, o furgão da peste, a carruagem do ano do cometa, o carro fúnebre do progresso dentro da ordem, a limusine sonâmbula do primeiro século de paz, todos em bom estado sob a teia poeirenta e todos pintados com as cores da bandeira.” – Gabriel García Márquez, O Outono do Patriarca, 1975, p. 7

“Enquanto isso, no salão do conselho de governo invocávamos a união de todos contra o despotismo de séculos para repartir em partes iguais o espólio do seu poder, pois todos haviam voltado o exorcismo da notícia sigilosa mas incontível de sua morte, haviam voltado os liberais e os conservadores reconciliados no remorso de tantos anos de ambições postergadas, os generais do alto-comando que haviam perdido o rumo da autoridade, os três últimos ministros civis, o arcebispo-primaz, todos os que ele não teria querido que estivessem estavam sentados à volta da longa mesa de nogueira tentando por-se de acordo sobre a forma como se deveria divulgar a notícia daquela morte enorme para impedir a explosão prematura das multidões na rua, primeiro um boletim número um do correr da primeira noite sobre ligeiro percalço de saúde que havia obrigado a cancelar compromissos públicos e as audiências civis e militares de sua excelência; em seguida um segundo boletim médico no qual se anunciava que o ilustre enfermo se havia obrigado a permanecer em suas habitações privadas em consequência de uma indisposição própria de sua idade; e, por último, sem nenhum aviso, os dobres rotundos dos sinos da catedral do amanhecer radiante da cálida terça-feira de agosto de uma morte oficial que ninguém haveria de saber nunca com toda certeza se em realidade era a sua.” – Gabriel García Márquez, O Outono do Patriarca, 1975, p. 165

06 março 2013

Dura lex?

No meu tempo de jovem havia um estranho slogan de um creme assentador de cabelos: “Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex”. Que tinha a ver a dureza da lei com os cabelos bem assentados? Publicitário tem cada uma! Recentemente, quando da suspensão do Corinthians pela morte de um garoto em um estádio de futebol peruano, a expressão voltou à baila pela boca de um comentarista esportivo, sem o produto capilar evidentemente.

Ele poderia ter dito também que “a lei é clara”, como costuma dizer um seu colega. Qual lei? Seria a contra pergunta.

Na verdade, o Direito Civil cuida da chamada “responsabilidade por ato de terceiro”, que é uma exceção à regra segundo a qual cada um responde pelos danos que causa. De fato, uma criança ou um animal não podem ter responsabilidade pelos atos danosos que cometem, pois o culpado são os pais ou outro responsável pelo menor e o dono pelos atos do animal. A responsabilidade aí decorre da “culpa in vigilando”, para voltarmos ao latim. Ou seja, o dever que alguém tem de fiscalizar seus filhos e seus animais.

Outro caso de responsabilidade por ato de terceiro ocorre quando a empresa é chamada a responder por dano produzido a terceiro por seu funcionário, como ocorre nos acidentes produzidos por ônibus.

Vamos ao esporte. Imaginemos que um jogador de futebol, dolosamente, agride um jogador adversário, provocando-lhe danos físicos. Pelo princípio acima referido, o clube empregador pode ser acionado civilmente para indenizar o jogador lesionado.

Alguém, no entanto, não sei bem quem, inventou mais um caso de responsabilidade por ato de terceiro: o clube responsável pelo estádio é também responsável pelos danos causados por torcedor ali. Só torcedor desse clube ou qualquer torcedor? Eis a primeira questão.

A responsabilidade aí também estaria baseada na “culpa in vigilando”, pois o clube “mandante” tem o dever de fiscalizar quem pretende entrar em suas dependências, exatamente para prevenir abusos que possam ser cometidos por qualquer torcedor, qualquer seja o clube de sua admiração. Logo, se um torcedor do time “visitante” causa dano a alguém, o time “mandante” deve responder por isso, não por causa de ser o autor pessoa ligada emocionalmente a ele, mas porque o clube faltou a seu dever de fiscalizar devidamente o ingresso em suas dependências.

Logo, sob o ponto de vista jurídico, não há qualquer ligação entre o torcedor e o time pelo qual ele diz torcer. Eu ressalvo “pelo qual ele diz torcer” para mostrar o absurdo do entendimento segundo o qual a camisa do torcedor responsabiliza o clube que ela representa. Imagine-se que arruaceiros italianos entrem no campo de Camp Nou e se ponham a jogar garrafas e rojões dentro do campo num jogo entre Barcelona e Milan. Quem será punido por essa arruaça? Acontece que esses italianos vestem, maliciosamente, a camiseta do Barcelona. Alguém pensaria em punir o Milan, por serem italianos os arruaceiros? E se os tais arruaceiros fossem ingleses?

Como se vê, “nem a lei é sempre clara” nem o “dura lex” resolve todos os problemas jurídicos, tanto que os romanos também diziam “summum jus summa injuria”, para significar que se a lei for aplicada sem bom senso, ela pode levar à negação do Direito.

Para terminar em latinório, a lei deve ser interpretada “com grano salis”. Ou seja, com um grãozinho de bom senso.

01 março 2013

Kon Tiki


 
Quando era criança, eu tinha a curiosidade de saber que tipo de livros meu pai lia, pois ele era um apaixonado por livros, que comprava geralmente em sebos, onde encontrava autênticas preciosidades. Eu ainda não conhecia essa história de “objeto primário do amor”, mas tinha consciência de minha admiração por ele. Ele não era um homem letrado, no sentido pernóstico da palavra, mas um self-made man, que aprendera francês utilizando três elementos básicos: um livro escrito obviamente em francês, um dicionário e uma gramática francesa. Simples, não é?
Dele sempre me lembro sentado numa poltrona, com um livro ou uma caneta na mão, ou dedilhando sobre a mesa a métrica de algum poema em fase de elaboração. Depois passou para a máquina de escrever, que ele tricotava, como dizia, utilizando-se, com rapidez, de apenas um dedo de cada mão. Daquela Royal, modelo 1938, saíram muitos livros, alguns deles não só publicados como premiados.
Quis o destino que ele viesse a falecer justamente depois de haver feito aquilo que mais gostava de fazer: discursar sobre suas leituras, transmitindo, com sua voz tonitruante e entusiasmo, aos ouvintes a emoção que sentira quando da leitura que fizera. Falara sobre Petrarca, o notável poeta italiano, e, certamente, sua musa, Laura, um amor platônico, como tantas loucas paixões dos poetas, que pretendem transformar suas musas em pessoas de carne e osso. O que geralmente acaba em tragédia.
Meu pai teve uma morte tranquila. Morte feliz para ele e muito difícil para nós, que levamos muito tempo para nos acostumarmos com sua ausência definitiva, até porque o esperávamos para celebrarmos - o que é a ironia do destino! - o Dia dos Pais, em cuja véspera deu-se seu passamento. A cada dia depois disso era como se ele estivesse para chegar da viagem que fizera para participar de um congresso de escritores, onde a morte o recolheu. Íamos até a porta, e nada! Até que sua imagem foi sendo levada cada vez para mais fundo da memória e ali ficou, pendurada na parede do panteão que dentro de cada um de nós homenageia os nossos mortos ilustres. E cujo pó nós vamos tirando com a lembrança constante de sua imagem tão cara. Ele, que havia falado sobre poesia e recitado com sua bela voz aquilo sobre que falava, se emocionou certamente como das demais vezes em que falara em público. Ali, porém, por algum motivo especial, a emoção foi mais forte e o coração dele não suportou. Morreu como tanta gente gostaria de morrer: praticamente depois de um orgasmo, como Raffaelo Sanzio, ainda que o do meu pai fosse meramente intelectual. Um prazer parúsico, uma visão beatífica de Deus, certamente.
Retorno às estantes de sua variada biblioteca. Os livros do Tarzan me levavam, como a tantos outros jovens, para uma África onde o Edgar Rice Burroughs jamais havia estado. Ou saberia que aquelas árvores imensas, dignas de uma floresta amazônica, só existiam em sua imaginação de escritor, sempre perdoado, como todos os que escrevemos, por nosso direito à chamada “licença poética”, que não se aplica apenas à poesia, é claro. O campeão olímpico Johnny Weissmuller e seu inesquecível grito (mais tarde, para minha decepção, uma dentre tantas que o conhecimento acaba nos impondo, vim a saber que era uma construção de laboratório, que mesclava três ou quatro sons diferentes) completava nossa fértil imaginação. Não tínhamos ainda malícia suficiente para perceber que as lutas dele contra os crocodilos esparramavam tanta água para que não percebêssemos que os animais eram, na verdade, feitos de borracha. O DVD está aí para confirmar esse primarismo de “efeito especial”, que lograva nos enganar.
Aliás, uma das brincadeiras prediletas de nossa turma de jovens era um singular jogo de pega-pega. Alguém, devidamente sorteado, deveria contar até dez e, depois disso, alcançar um de nós que, obrigatoriamente, nos “escondíamos” no cimo de uma árvore de um limitado bosque nas proximidades de nossas casas. Como as árvores eram próximas umas das outras, à medida que subíamos, o galho vergava com o peso e passávamos de uma árvore para outra, no melhor estilo do Tarzan. Vez ou outra um de nós despencava lá do alto e vinha-se agarrando nos galhos inferiores, para impedir a queda ou amainar os efeitos dela, quando ela era inevitável. Não era raro um de nós ficar deitado algum tempo no chão, tentando superar os efeitos da inevitável queda.
Outros livros me chamavam a atenção na estante de meu pai. Como muitos eram escritos em francês, ficava no garoto aquele assombro por ter em casa alguém que tinha acesso a um mundo fantástico a que eu ainda não tinha condições de ir. Muitos deles falavam da Índia e seus mistérios, pois meu pai era chegado ao budismo. Chamavam-me a atenção as ilustrações que, embora ainda em preto-e-branco, mostravam aqueles deuses incríveis, cujas histórias ele pacientemente me contava. Shiva e Shatki, o homem em sua dualidade, cujos nomes, evidentemente, não guardei na ocasião, mas fui aprender já adulto, quando entendi ser indispensável a alguém minimamente culto o conhecimento da sabedoria que o Oriente teima em nos transmitir, por mais que sejamos impermeáveis a essa milenar cultura.
Dentre os outros livros, interessei-me por um de nome estranho, que eu supus se referisse a algum deus hindu ou ao nome de algum lugar onde se passaria alguma das inúmeras aventuras de Tarzan: Kon Tiki. Que diabos seria aquilo? Li e me convenci de que o autor era tão imaginoso como o Edgar Rice Bourroughs, pois atravessar o Pacífico em uma autêntica casca de noz era algo tão impensável como o homem pisar na Lua. Algo absolutamente impossível de ser concretizado. Coisas de um Júlio Verne, que ali também estava contemplado, com sua Volta ao Mundo em 80 Dias e, mais atraente por seu conteúdo, A Guerra dos Mundos, livros que me faziam viajar com meu foguete imaginário, como costumava fazer outros heróis daqueles tempos, o Buck Rogers e o Flash Gordon.
Tendo vivido algum tempo na Noruega, aproveitava o tempo livre em Oslo para o prazer de passear pelos museus do Bygdøy, num dos quais está precisamente a réplica da incrível embarcação. Se em condições normais eu já teria minha curiosidade despertada, graças àqueles antecedentes que guardei na cabeça, fui ali lendo tudo o que era possível ler, vendo fotografia por fotografia que registram a extraordinária aventura, esgotando o material de cada parede do museu com avidez. E o filme feito na ocasião por algum cinematografista amador, cuja coragem, também digna de todo louvor, é impressionante. 
A balsa Kon Tiki foi construída como uma cópia de um barco pré-histórico, fico ali sabendo. Feita com nove troncos de madeira leve, uma tripulação de apenas seis pessoas embarcou nela em 28 de abril de 1947, em Callao, no Peru, chegando à Polinésia depois de 100 dias. Thor Heyerdahl também construiu uma réplica de uma embarcação egípcia, em 1969, que, saindo do Marrocos, percorreu cerca de 3.000 milhas até chegar a Barbados. Construiu mais tarde outra embarcação semelhante, com a qual percorreu 4.000 milhas em 57 dias, fazendo o mesmo curso, demonstrando, assim, ser possível que as civilizações do Velho Mundo tivessem tido contato com o ainda não descoberto Novo Mundo.
E vejo por toda parte o rosto do extraordinário navegador Thor Heyerdahl, desde a juventude até a idade avançada, sempre sorridente, de bem com a vida, que ele amou mais do que tudo.  Um antropólogo que não ficou no gabinete, mas foi a campo fazer suas experiências concretas, como ao visitar a ilha de Páscoa e trazer para a Noruega alguns daqueles bonecões de pedra enormes, que, por sinal, também estão no museu.
Ao fim da visita, chega-se a um mini auditório, onde alguém dá uma palestra a jovens universitários. Mistura frases em inglês com outras em norueguês. É um homem magro, alto, cabelos grisalhos. E tem o mesmíssimo rosto do navegador. Mas é simplesmente impensável que, nascido em 1914, ainda esteja vivo e com tamanha lucidez.
Em 1947, com pouco mais de 30 anos portanto, o notável antropólogo norueguês se dispôs a explorar, com o mesmo material por eles antes utilizado, a rota que teria sido observada pelos incas, que, saindo do Peru, cruzaram o Oceano Pacífico. A distância física entre a Costa do Peru e as ilhas Tuamotu é de cerca de 4.000 milhas, mas os incas teriam descoberto que, explorando adequadamente as correntes marítimas, essa distância poderia ser feita em menor tempo, correspondente a 1.000 milhas físicas.
O barco, construído com o auxílio dos nativos, utilizando talos de papiro, tinha cerca de 15 metros de comprimento por 6 metros de largura. Era uma autêntica jangada, impulsionada por uma vela quadrada. E como não afundou? O segredo dos incas estava justamente nisso: não era um barco para enfrentar as águas, mas um objeto para ser levado por ela, a seu bel prazer. Logo, escolhendo adequadamente a corrente marítima, era só deixar-se levar, rendendo-se às forças da natureza, que se chegaria ao destino.
Algo muito próprio do espírito de um norueguês. Realmente, enquanto em outros países as pessoas “questionam” os fatos naturais, até mesmo quando qualificam o tempo de “bom” e “mau”, como se a natureza estivesse sujeita a avaliação ética (“piove, governo ladro!”, como se diz em algum lugar da Europa), na Noruega convive-se com a natureza, aceitando o que ela nos traz.
Chuva e frio não impedem que as mães saiam às ruas com crianças de poucos meses, mesmo porque é em tal ambiente que elas viverão. Assim, deixá-las na calçada enquanto a mãe entra na loja para fazer compra, em pleno inverno, é das coisas mais comuns na Noruega. Diz-se que uma delas, quando fez isso em outro país, foi chamada ao distrito policial, onde queriam processá-la por haver abandonado o filho à própria sorte.
Como autênticas bonecas, elas ali ficam, com o corpo todo agasalhado e apenas os olhos, o nariz e as bochechas vermelhas de fora. E a boquinha aberta, com a qual elas vão recolhendo, quando calha, a garoa ou a neve que lhe cai no rosto. Nada a admirar, portanto, na escolha feita pelo viking do século XX, que trazia na alma a tradição que lhe foi transmitida por seus antepassados.
Consta que quando Francisco Pizarro, considerado o desbravador do Oceano Pacífico, vinha do Panamá para o leste, por volta de 1526, encontrou no caminho embarcações feitas de madeira leve, com cerca de 20 peruanos remando. O segredo dessas embarcações é que, além de feitas com madeira que não afundava, não tinham como reter água, que retornava naturalmente ao mar pelas brechas deixadas ao amarrar o material utilizado em sua confecção, pois ainda não haviam imaginado aquilo que a prof. Maria Helena Rolim, especialista em Direito do Mar, tanto conhece: a ballast water, ou água de lastro.
Isso impressionou tanto o navegador espanhol que ele recolheu vários dos nativos para ensinarem a seus homens a técnica de confecção daquele tipo de embarcação.
Pois nosso bravo Thor Heyerdhal resolveu explorar a mesma técnica, o que fez com sucesso, como se vê do material constante do museu, cujo logotipo é internacionalmente conhecido.
Terminada a exposição, fomos cumprimentar o expositor, que, de fato, se chama Thor Heyerdhal, nome que carrega com muito orgulho e ao qual o pai acrescentou um Júnior. É também pesquisador e nos deu várias indicações a respeito do tema que há tanto tempo ocupa a família Heyerdhal. Além de um livro autografado.
Seu pai, em verdade, faleceu em 2002, segundo nos conta o orgulhoso filho, reconhecendo que, de fato, se parece muito com o extraordinário navegador, o que, compreensivelmente, o enche de orgulho ainda maior do que o que já lhe traz o nome. E que me acrescenta que os objetos que ali se encontram não são réplicas, como eu imaginara, mas os originais utilizados na famosa viagem.
Uma autêntica viagem no tempo!
Voltei para o hotel imaginando como se sentiria meu pai se passasse pela experiência por que acabo de passar. Não creio que seu coração tivesse suportado.